Sandra Bozza
www.sandrabozza.com.br
Devemos alfabetizar antes dos seis anos?
Não é prejudicial ao desenvolvimento da criança
introduzi-la muito cedo no mundo da escrita?
Quando devemos iniciar o processo de alfabetização?
Depende de como concebemos a alfabetização.
Se o conceito que temos é aquele no qual a
alfabetização é tomada como a aquisição do código escrito, cujo
princípio norteador está vinculado à concepção estruturalista de linguagem e à
concepção inatista e/ou ambientalista de aprendizagem, a resposta a esses
quesitos, obviamente, seria não, pois antes dos seis anos as
estruturas mentais do indivíduo não possibilitariam a ele a apropriação
significativa das estruturas escritas da linguagem. Em outras palavras, as crianças,
em função de seu desenvolvimento cronológico, não teriam maturidade suficiente
para aprender operações tão complexas.
Se, ao invés disso, entendemos a alfabetização
como aquisição da língua escrita, a resposta óbvia seria sim. Desde
o nascimento! Essa seria a resposta mais coerente com a concepção
sócio-histórica de linguagem e aprendizagem que temos estudado e defendido.
Se nossas crianças nascem em uma comunidade letrada,
desde seus primeiros contatos (sistemáticos ou não) com a escrita já estão
sendo alfabetizadas e as noções adquiridas sobre a escrita contribuem para que
ela elabore conceitos fundamentais para a leiturização, como por exemplo, para
que serve a escrita, o que a escrita representa e onde
podemos utilizá-la.
No entanto, conceber a aquisição da escrita por essa
via pressupõe o estabelecimento de uma definição do termo alfabetização, aqui
empregado como sinônimo de letramento, e não somente como aquisição do código
gráfico.
Na acepção aqui abordada, o termo alfabetização é
tomado como a aquisição da língua escrita, sendo, por esse
motivo, a apropriação escrita de uma unidade de sentido da linguagem que é
o texto. O texto em seu caráter dialógico, através do qual o
sujeito lê, compreende e representa o mundo em suas relações societárias. O
texto em seu caráter discursivo, por meio do qual o sujeito toma conhecimento e
assume posições perante fatos sociais. O texto em seu caráter literário, onde
tudo é permitido e onde viver não obedece a regras pequenas como a dos homens.
Enfim, o discurso produzido historicamente e materializado através da palavra
escrita. Ou, uma compreensão da linguagem escrita como algo vivo e
eminentemente político. A que assume a mesma importância que a fala para
Bourdieu: “A linguagem não é utilizada somente para veicular informações (…). O
poder da palavra é o poder de mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e
concentrá-la num ato linguístico”.
Dessa forma, dada a sua importância e a sua
necessidade, o que pretendemos defender é que esse processo inicie o mais cedo
possível, pois, nesta perspectiva, a aprendizagem precede o desenvolvimento,
isto é, para se desenvolver é preciso aprender, inclusive a ler e a escrever, e
não o contrário: não há necessidade de se aguardar a maturidade. É preciso
produzi-la. E produzir maturidade significa mobilizar processos
intencionais de mediação.
Todavia, ainda são inúmeras as vozes que se alteiam
defendendo o fato de que é preciso respeitar o tempo de cada criança, de que é
prejudicial iniciar um trabalho tão complexo como esse, sem antes preparar a
criança com exercícios de psicomotricidade ou, ainda, que existem conceitos
mais elementares a serem ensinados antes de se ensinar a ler e a escrever.
O que temos percebido sobre essa polêmica é que
existem duas vertentes daqueles que se declaram contrários a alfabetizar na
educação infantil: ou as pessoas acreditam na maturidade como resultante do
desenvolvimento bio-cronológico e não admitem queimar etapas tidas como
imprescindíveis ao desenvolvimento infantil ou concebem o desenvolvimento como
construção espontânea e, portanto, sem necessidade de mediação, cuja atuação desvirtuaria
o processo em andamento, pois o aluno deve aprender testando suas hipóteses.
De qualquer forma, o que é preciso ficar registrado,
neste momento, é que também condenamos a mecanização de letras, sílabas e
palavras sem a compreensão por parte da criança do que elas representam. Isso,
de fato, seria exigir uma habilidade que pouco contribuiria para o
desenvolvimento da competência linguística que se pretende e, consequentemente,
para o desenvolvimento intelectivo da criança.
O que pretendemos clarear nesse espaço é o fato do
ensino da linguagem escrita ser muito mais amplo do que o trabalho de ensinar a
traçar símbolos e a estabelecer a correspondência gráfico-sonora (letra/som)
entre os mesmos. A apropriação da língua escrita, bem como a compreensão de seu
funcionamento, necessita muito mais do que o simples desenvolvimento da
motricidade e da memorização. Muito antes de escrever ortograficamente, o aprendente
da escrita precisa consolidar conceitos linguísticos básicos, que ousamos
arrolar a seguir:
- Função social: para que serve a escrita, onde é utilizada, qual sua importância social, quem a utiliza, de que forma os diferentes segmentos sociais a utilizam…
- Relação oralidade/escrita: que a escrita é a representação da fala, isto é, que tudo que se fala pode ser escrito e vice-versa.
- Ideia de representação: que é possível representar o mundo físico e abstrato através de diferentes linguagens: gestos, desenhos, dobradura, fotografia, filme, escultura, modelagem etc. Enfim, explicitar o conceito de que representar é utilizar um símbolo no lugar de algo.
- Sistema de representação: a escrita é uma representação de segunda ordem. Não representa diretamente o objeto (ou ideias). Ela é uma representação dos sons que compõem as palavras que nomeiam os objetos/ideias.
- Diferença entre as linguagens: que apesar de uma ser a representação da outra, cada linguagem tem leis próprias e que devem ser respeitadas para que o ato interativo se efetive através da escrita.
- Direção escrita: que se escreve, no mais das vezes, da esquerda para a direita e de cima para baixo.
- Alfabeto como conjunto próprio da escrita: com apenas 26 letras pode-se escrever qualquer palavra.
- Outros sinais gráficos da escrita: que com apenas as letras é impossível veicular ideias. São necessários sinais diacríticos (de acentuação, pontuação e gráficos).
- Espaçamento: embora seja a representação da fala, a escrita necessita de espaçamento entre as palavras, fato que na oralidade não existe: fala-se em fluxos contínuos e os segmentos sonoros são determinados pela unidade de sentido, separados por pausas e não pelas palavras.
- Unidade temática: que todo texto se propõe a discorrer sobre aspecto específico e com intenção determinada.
- Unidade estrutural: que dependendo da intenção e do tema, a forma do texto tende a apresentar uma estrutura específica, determinando o gênero especial do mesmo.
Esses conceitos são tidos como imprescindíveis para
que o sujeito elabore uma base sólida para o letramento. Letrar-se é uma
condição indispensável à inserção do sujeito em uma sociedade cujas bases se
respaldam, principalmente, nas atividades escritas. Se a escola prima por uma
aprendizagem significativa, viva e dinâmica, não há como essa instituição se
imiscuir de iniciar o processo de letramento desde a fase berçária da criança.
Ou seria impossível cantarmos, lermos histórias, apresentarmos livros e materiais
escritos para esses bebês? E o que seria isso que não a introdução deles no
mundo letrado?
“Ah! Mas isso é diferente!” poderiam arguir alguns.
Por quê? Por acaso os bebês somente ouvem, são
passivos, não agem sobre esse ato dialógico? Eis aí mais um conceito a ser
clarificado. Nenhum ouvinte é passivo. Ainda que completamente calados ou
lacônicos, sempre haverá interação entre ouvinte/leitor,
texto/discurso e falante/autor.
O ato de ouvir (seja música, ordens, adivinhas,
notícias ou uma história) coloca em prontidão e exercício todas as capacidades
superiores do cérebro: memória, atenção voluntária, inferência, abstração,
generalização e a própria linguagem. Essas capacidades, uma vez ativadas, não
só ampliam significativamente o potencial cerebral, como, acima de tudo,
consolidam habilidades que servirão como base de referência para a aquisição de
habilidades mais complexas. E esse processo, de caráter espiral e infinito,
tende a se repetir e aprofundar-se conforme o nível de mediação nele presente.
Não somente pesquisas acadêmicas, mas nosso
acompanhamento ao trabalho de babás, atendentes e educadores infantis, tem
comprovado que as práticas de leitura e contação de histórias, de recitação de
quadrinhas, adivinhas e parlendas e a cantoria de músicas de agradável melodia
têm se mostrado eficazes no que diz respeito ao desenvolvimento da capacidade
de atenção e comunicação de crianças cada vez mais novas. Da mesma forma, a
intimidade das crianças com material escrito e o manuseio de diferentes
portadores de textos, sempre mediados por aqueles que leem ou escrevem por/para
elas servem de base para seus gestos quando em atividades gráficas coletivas ou
individuais.
Quanto às crianças de quatro a seis anos, quando têm
suas atividades sobre a escrita organizadas em torno do eixo USO > REFLEXÃO
> USO, isto é, quando o objeto de estudo é retirado do cotidiano social
(USO), refletido em suas diferentes instâncias (código/forma e
significado/ideia – REFLEXÃO) e devolvido à sociedade sob a forma de escrita (USO),
mesmo que coletivamente, estarão formando um bom lastro para a caminhada
infinda da aprendizagem da língua escrita. Em outras palavras: em qualquer fase
da educação infantil (como de resto de todo ensino) podemos ler e escrever pela
criança, para a criança e com a criança. Até que ela consiga fazer isso
sozinha.
Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais
(vol. 2) afirmam que para aprender a ler é preciso: pensar sobre
a escrita; pensar sobre o que a escrita representa;
pensar como a escrita representa graficamente a fala. Para
isso, o aluno precisa ler, embora ainda não saiba ler e escrever, apesar
de ainda não saber escrever. Talvez se origine desse conceito a insistência que
se percebe em algumas propostas curriculares quanto à prática do texto coletivo
(a professora como escriba do aluno) e à prática intensa da leitura oral, feita
pelo professor, com ritmo, fluência e entonação adequados.
Em nenhuma das atividades supracitadas é exigido da
criança que ela escreva ortograficamente ou leia com fluência. O que está
proposto é que ela viva imersa no mundo da escrita para que possa perceber sua
importância, sua utilidade na sociedade e vá compreendendo, com o uso, seu
funcionamento.
Desta forma, sensibilizada para a importância da
escrita e para a possibilidade de interagir socialmente através dela, é da
criança que parte a necessidade (por muitos tida como curiosidade natural) de
perguntar cada vez mais frequentemente sobre os fatos linguísticos: Como eu
faço tal letra? Como se escreve tal palavra? É com X ou com CH? Como se escreve
o nome da vovó? O que está escrito aqui (alguns rabiscos ou letras traçadas
aleatoriamente pela criança no papel)?
A nosso ver, elas só chegam a esse estágio de
questionamento se consolidaram os conceitos supracitados e sentem a necessidade
de avançar. Percebem a possibilidade e a riqueza de ampliarem seus domínios e
horizontes por meio da leitura e da escrita. Esse fato trará como resultado um
progresso intenso do processo alfabetizador, bem como a ampliação intelectiva
facilmente constatada pela capacidade de estabelecer relações, da rapidez no
raciocínio lógico, da facilidade de abstração e da memorização e a ampliação da
linguagem oral.
Por essas e por outras questões que não puderam ser
contempladas neste espaço de discussão (como o ingresso e a permanência da
criança na escola) é que não acreditamos precoce se alfabetizar na educação
infantil. E nossa práxis com essa faixa etária nos comprova que todas as outras
habilidades, atitudes e necessidades poderão ser trabalhadas simultaneamente às
ações de alfabetizar.
Para finalizar, é interessante salientar que o
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (vol. 3, pág. 131)
aponta para essa direção, principalmente em seus objetivos, não só para
crianças de quatro a seis anos, como também para os de zero a três anos de
idade. Da mesma forma, sua concepção de aquisição da linguagem escrita,
reitera essas questões quando afirma:
“… a aprendizagem da linguagem escrita é concebida
como:
- A compreensão de um sistema de representação e não somente como aquisição de código que transcreve a fala;
- Um aprendizado que coloca diversas questões de ordem conceitual, e não somente perceptivo-motoras, para a criança;
- Um processo de construção de conhecimento pelas crianças por meio de práticas que têm como ponto de partida e de chegada o uso da linguagem e o livre trânsito pelas diversas práticas sociais de escrita.”
Assim, o que gostaríamos que tivesse ficado clara é a
possibilidade, bem como a necessidade, colocada pela sociedade e pelos avanços
teóricos nas áreas da Psicologia e da Linguística a respeito desta
desnecessária celeuma: é possível e necessário se alfabetizar na educação
infantil. Outro intento nosso, que subjaz ao primeiro, seria a
conclamação dos educadores, agora não só da educação infantil, para uma grande
e coerente mobilização para a melhor compreensão de que seja, de fato, ensinar
a ler a escrever. Para tanto, respaldamo-nos mais uma vez em Vygotsky quando
afirma “Se quiséssemos resumir todas essas demandas práticas e expressá-las de
uma forma unificada, poderíamos dizer que o que se deve fazer é ensinar às
crianças a linguagem escrita e não apenas a escrita de letras”.
Sandra Bozza
Mestre em Ciências de Educação
Professora de Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa
Autora de livros técnicos e didáticos
Formadora de Educadores em Língua Portuguesa,
Avaliação e Leitura
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