No centenário da
Semana de 22, debates virtuais discutem o legado modernista e sua relação com
as culturas indígenas que tanto influenciaram esses artistas
Há 100 anos, acontecia em São Paulo, a Semana de Arte
Moderna, também conhecida como Semana de 22. Entre exposições de arte e sessões
de música e literatura, o Theatro Municipal de São Paulo recebeu alguns dos
artistas mais importantes da época para apresentações e debates sobre os rumos da
arte no país. Influenciados pelas vanguardas europeias, mas também em busca de
raízes nacionais e populares, esses artistas propunham experimentações e uma
renovação nas linguagens artísticas brasileiras. Entre os nomes da literatura
no período, temos autores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel
Bandeira e Graça Aranha. Nas artes plásticas, destaque para Anita Malfatti, Di
Cavalcanti e Victor Brecheret, além de Heitor Villa-Lobos, na música.
Comemorando seu centenário neste mês, a Semana de 22
tem sido tema de uma série de debates e palestras por todo o país. Presente no
Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, e em obras como Macunaíma, de
Mário de Andrade, a influência indígena tem aparecido em muitas das reflexões
sobre o modernismo brasileiro. Acompanhamos as discussões e reunimos algumas
das reflexões feitas por artistas e estudiosos, indígenas e não-indígenas.
Reantropofagia
“Não há dúvida de
quanto as culturas indígenas foram importantes para o movimento modernista de
22 sobretudo em sua segunda fase. As conquistas mais radicais do modernismo
paulista se deram pelo contato desses artistas com as culturas dos povos
originários do Brasil”, diz a professora Lúcia Sá, da Universidade de
Manchester, no ciclo de encontros “1922:modernismos em debate”, evento organizado pelo Instituto Moreira Salles,
Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC) e Pinacoteca de São Paulo, e realizado
ao longo de 2021. Ela também afirma que o Manifesto Antropófago é resultado de
estudos das fontes coloniais sobre a cultura tupi. “A antropofagia que esses povos praticavam traz a ideia de que ingerir
ritualisticamente o inimigo os ajudava a adquirir a sua força, mas também, como
vem sendo analisado hoje em dia, a adquirir a diferença em si, para incorporar
o outro na sociedade.”
Já o livro Macunaíma, de Mário de Andrade, publicado
em 1928 – no mesmo ano que o Manifesto Antropófago –, é para a pesquisadora uma
colcha de retalhos: ele une ditados populares a cenas do folclore europeu, mas
sua base são narrativas indígenas coletadas pelo pesquisador alemão Theodor
Koch-Grümberg. “De lá saem as citações,
as situações e, sobretudo, o tipo de herói que é o Macunaíma. É das culturas
indígenas que sai o que é mais revolucionário do modernismo brasileiro”,
aponta Lúcia. Ela retoma a análise do crítico Benedito Nunes de que a
antropofagia é, para os modernistas, ao mesmo tempo, diagnóstico e proposta de
cura. “Para as elites brancas era penoso
pensar que o Brasil era formado por culturas não modernas e a antropofagia é o
significante maior dessa ‘barbaridade’. Os modernistas constatam o problema e
oferecem a própria antropofagia como cura, transformando-a no signo do que é a
brasilidade em si. Invertem o processo para celebrar culturas indígenas, mas
fazem isso utilizando um processo colonial”.
Numa resposta à antropofagia modernista, o artista
indígena Denilson Baniwa pintou a cabeça de Mário de Andrade em uma bandeja.
Ele explica que considera o quadro uma vingança ritual à apropriação que o
autor fez do mito Makünaimî, de seu povo. “Na
ética baniwa, só se pode devorar um igual, só fazemos um troféu se o devorado
for parecido em coragem, força, inteligência, sagacidade”, explica. Em sua
antropofagia pela arte, Denilson considera os modernistas iniciados, mesmo que
não sejam indígenas, e com quem é possível, portanto, aprender e incorporar.
“O problema é que é
impossível aprender a arar lendo livros”, diz ainda o artista baniwa.
Ele explica que os modernistas se informaram sobre o mundo indígena apenas
pelos livros, geralmente escritos por outros brancos. “Como pensar a experiência indígena se não foram a uma aldeia? Não é
possível aprender tudo pelos livros.” (Confira o encontro com o artistaDenilson Baniwa e a professora Lúcia Sá).
Formas de narrar
No evento “Centenário
da Semana de Arte Moderna”, organizado pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), Sheila Praxedes Pereira Campos, professora da
Universidade Federal de Roraima (UFRR), defende que a linguagem moderna de
Mário de Andrade em Macunaíma é também influência das narrativas indígenas. “Ele usa a narrativa indígena não como
narrativa exótica, mas de vanguarda. Ele toma esse modo de narrar como base
para seu projeto nacionalista”, explica a docente. Entre os exemplos dessas
estruturas usadas nas narrativas tradicionais indígenas e aproveitadas por
Mário de Andrade, ela cita a ausência de linearidade na construção
espaço-tempo, a alteração aleatória entre personagens ou espaços e os
personagens polimorfos, entre outros. Para ela, Mário tinha consciência da
apropriação que fazia e de sua busca por transformar um discurso que se queria
popular em culto.
Ela ainda lembra uma narrativa recente do artista
indígena Jaider Esbell, que se autointitula neto de Makunaima – com k –,
publicada na Revista Iluminuras, em 2018. O artista narra suas conversas com
esse avô, que conta ter se “grudado” na capa da obra de Mário de Andrade de
forma intencional, pois sabia que, com isso, sua vida ganharia outra dimensão e
ajudaria a propagar a causa indígena. “Essa
interlocução mostra como as vozes vão conversar e como nesse Mário tudo assume
uma multiplicidade, se mistura e traz à tona questões em torno da narrativa
indígena.” (Confira a mesa com a professora Sheila Praxedes PereiraCampos).
Pedro Coelho Fragelli, pesquisador de pós-doutorado na
Universidade de São Paulo (USP), também fala sobre o uso dos elementos
indígenas feitos de forma vanguardista por Mário de Andrade. “Ele extrai elementos, reagrupa em uma nova
ordem e cria um texto com um significado diferente do original. Ele mobiliza os
materiais como artista moderno e seu modo de usar esses deslocamentos e
reorganizações criadoras lembra as técnicas vanguardistas de colagem.”
Dessacralização de
mitos
O distanciamento, a dessacralização e o uso muitas
vezes irônico que Mário faz do mito indígena também faz parte dessa arte
moderna. “Trata-se de uma obra literária,
não etnográfica, portanto, não há problemas em misturar e inventar a partir de
uma narrativa mítica. Não se trata de desrespeito, mas de um exercício de
liberdade.”
O pesquisador ainda responde a críticas de que ao
associar o personagem Macunaíma à preguiça, Mário de Andrade estaria reforçando
preconceitos e estereótipos contra os indígenas. Segundo ele, Mário via na
preguiça uma forma de trabalho, um exercício da imaginação e de onde surge a
arte. “O elogio à preguiça, para Mário, é
anterior ao Macunaíma, e uma recusa ao positivismo e à civilização da máquina”,
diz. Assim, a preguiça teria um outro significado para o autor, sendo o
fundamento de um outro modo de ser e de uma civilização contrária à do
dinheiro. (Confira a mesa com o pesquisador Pedro Coelho Fragelli).
Se as discussões sobre a Semana de 22 e a influência
indígena não se esgotam, a reflexão do escritor indígena Daniel Munduruku pode
nos levar a novos pontos de partida: “em
1922 não estávamos e hoje nós estamos? Estamos de fato nas instituições, nas
universidades e nos governos, como participantes? O fato de alguns indígenas
terem reconhecimento não significa que os povos indígenas estejam com seus
direitos garantidos na sociedade brasileira.” (Confira a mesa com oescritor Daniel Munduruku).
Texto Publicado no site Escrevendo o futuro