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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

A face das gramáticas

 É preciso separar questões estritas de gramática das que envolvem gosto ou posições político-culturais

 Sírio Possenti

 

 


Em geral, quando se fala de gramática, superpõem-se, quando não se confundem, dois conceitos. É preciso que eles fiquem claros, até para que se possa propor (ou discutir) qual a relação entre eles. Para isso, seria produtiva a leitura mais fina dos volumes de “Nova (Novíssima, Moderna) gramática (resumida, bem-humorada) da língua portuguesa”... Descobre-se que tratam de questões bem diferentes. As definições fundamentais são:


1) Uma gramática é a reunião de um conjunto de regras que devem ser seguidas para falar e escrever corretamente. Este aspecto inclui regras ortográficas (grafia, divisão silábica etc.), de pronúncia (mencionam poucas palavras - rubrica, ibero etc.), regras morfológicas (especialmente as de flexão de nomes e verbos - com ênfase nas formas irregulares ou pouco usadas) e regras sintáticas (especialmente as que tocam na variação e na mudança de certos aspectos da língua, e para dar conta de irregularidades e exceções; os casos mais salientes são a regência e a concordância verbais);


2) Uma gramática é um conjunto de conceitos e análises, destinados não ao ensino do uso da língua (poderiam servir para analisar formas não padrões da língua ou outras línguas), mas a produzir certo saber da estrutura da língua, como a classificação de sons e palavras, a análise morfológica e sintática, e tópicos de semântica (nomes designam seres, sujeitos praticam ações, adjuntos explicitam qualidades ou circunstâncias). É crucial reconhecer que se trata de dois tipos de conhecimento, seja no que se refere a métodos de trabalho (uma coisa é corrigir um “erro” de regência, outra é descobrir um sujeito), seja no que se refere a estratégias de aprendizado (escrever “certo” é uma coisa, fazer análise sintática é outra).

 

Aprender grafias, regências e concordâncias corretas é como aprender aspectos de uma língua estrangeira (que o que se diz assim em português popular se diz assado em português culto é mais ou menos como aprender que o que se diz assim em português se diz assado em inglês). Já aprender análise morfológica ou sintática é como aprender matemática, física ou biologia.


Distinções

Mas é relevante dar-se conta de que uma gramática trata também de outras questões. Algumas ligadas à correção, mas em outro sentido da palavra. Por exemplo, os estrangeirismos podem ser vistos como problema de correção, mas agora estamos no âmbito da política linguística (não usar estrangeirismos é uma forma de patriotismo) e não no capítulo “seguir regras da língua”. O mesmo se pode dizer da avaliação feita de gíria, regionalismos, termos populares ou chulos. No caso, o interesse não é pela sílaba tônica do palavrão, nem pela classificação dos verbos na 1ª ou 2ª conjugação... Quando uma gramática trata desses temas, está sugerindo que sejamos mais nacionais do que regionais, mais elegantes do que grosseiros. As gramáticas tratam até do que, a rigor, é moral (como os cacófatos) ou relativos a comportamentos mais ou menos aceitáveis na sociedade. Exemplo: quando dizer “ele e eu” ou “eu e ele”? Gramáticas respondem com sugestões que são relativas à virtude da modéstia, não à sintaxe (diga “eu e ele” quando se trata de algo negativo, e “ele e eu”, se positivo). Gramáticas tratam até de questões de outra ordem, como clareza (com críticas à ambiguidade e ao anacoluto), elegância ou beleza (como a eufonia).

 

A abordagem desses temas é feita segundo critérios diferentes, para definir a questão, analisar os fatos ou recomendar alternativa. Uma coisa é não gostar de construções como “Vamos estar providenciando”, outra é afirmar que a construção não segue regras da gramática. Aqui, a questão é explicitar quais regras são seguidas: por que a ordem é “ir + estar + gerúndio” e não outra, e por que as formas verbais são “vamos”, “estar” e “providenciando”, em vez de serem, por exemplo, “vamos”, “estando” e “providenciar”?

 

Outro exemplo: incorporar ou não termos estrangeiros (acessar, deletar, printar, inicializar etc.) é uma questão. Dar-se conta de que esses verbos são todos regulares e da primeira conjugação é de outra natureza. Uma coisa é gostar ou não de palavras novas (imexível, alavancar, descatracalizar); outra é reconhecer que sua estrutura é perfeitamente regular do ponto de vista da morfologia derivacional.

 

Em suma, é produtivo separar questões de gramática, no sentido de análise de uma estrutura característica de uma língua, das questões que envolvem gosto ou posições político-culturais, por exemplo.


Critérios

Uma palavra a respeito do caráter de certas regras: é vantajoso ter claras algumas de suas características, para desmontar crenças equivocadas ou preconceituosas. 1) É óbvio que há uma norma culta (desconhecer isso é desconhecer uma característica factual das línguas) e há exigências da sociedade em relação a seu uso. 2) É produtivo saber que a norma culta muda. Isso não é facilmente percebido numa época dada, mas a comparação entre textos de duas épocas deixa o movimento claro. 3) É bom saber que se pode expressar um mesmo sentido tanto na norma culta quanto em variedades não padrões (são claras, evidentemente, as construções: “Meu relógio marca 3 horas”; “Meu relógio, ele marca 3 hora”; “Meu reloge, ele marca 3 hora” etc.). Ou seja, não se deve confundir características mentais do falante (ser claro, saber o que diz) com seu conhecimento ou uso das normas valorizadas numa sociedade.

 

Finalmente, creio que se acrescenta mais clareza às questões do ensino sabendo que os aspectos normativos de uma gramática (de uma língua) assemelham-se mais a regras de etiqueta do que a de “bem pensar”. Falar de maneira diferente é só falar de maneira diferente - em duas línguas ou dialetos da mesma língua. Falar de maneira aceitável em certos ambientes é aceitar (ou poder) ser socialmente valorizado. Ou seja: ser entendido é uma coisa, estar “de acordo” é outra.

 

Sírio Possenti é professor associado do departamento de linguística da Unicamp e autor de Língua, Texto e Discurso (Contento)

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