A comunicação escrita é muito eficiente, inclusive
porque tem o dom de atravessar os séculos. Tomemos Camões. Claro que se algum
cinegrafista amador tivesse registrado o naufrágio do poeta, perto da foz do
Rio Mekong, nos confins da Ásia, e as cenas em que ele, como diz a lenda,
procurava a salvação simultânea da própria vida e da obra, nadando com um braço
e com o outro segurando os originais dos Lusíadas, acima da linha d’água para
mantê-los secos, seria um documento de grande valor. Teríamos uma edição de
gala do Jornal Nacional. Mas o filme só despertaria esse interesse porque
Camões é Camões. Ou seja, porque é autor de uma obra escrita que atravessou os
séculos. Camões comunica-se conosco, quatro séculos depois de sua morte, porque
se utilizou dessa ferramenta insubstituível que é a palavra gravada num papel,
ou num papiro, ou numa prensa.
O pensador italiano Norberto Bobbio, em seu último
livro publicado no Brasil (O Tempo da Memória), afirma que se irrita em falar
ao telefone. Bobbio cita outro italiano, Guido Ceronetti, que escreveu: “Sempre
que posso (…) faço apaixonada apologia de escrever cartas entre seres
pensantes, ainda não embrutecidos, que se comunicam apenas pelo telefone, ou
então por fax ou telefone celular. (…) O homem que pensa de verdade escreve
cartas aos amigos”.
O homem do século XX acostumou-se a pensar que o
século XX é maravilhoso. Em matéria de ciência e tecnologia, suas conquistas
seriam inigualáveis. Vá lá, o telefone representou um avanço. Mas consideremos,
por um momento, o que ele pôs a perder. O hábito de escrever cartas, como diz
Ceronetti, e o exercício de inteligência que isso representa. A conversa
direta, olho no olho. O hábito de fazer visitas, de procurar diretamente as
pessoas. Com telefone, não teria havido este ponto alto da criação humana que é
o romance do século XIX. Os enredos têm base em visitas, encontros inesperados,
notícias que chegam tarde. Com telefone, não há história de Dostoievski,
Balzac, Dickens ou Eça de Queiroz que resista.
A desvalorização da comunicação escrita, em nosso
tempo, começa numa banalidade como as portas dos toaletes e culmina neste
símbolo do século que é o culto das conquistas tecnológicas – do rádio ao
telefone celular, no caso das comunicações. Ora, conquista por conquista, continua
insuperável, no mesmo ramo das comunicações, em primeiro lugar a invenção de
uma língua em comum, em cada determinada comunidade, e em segundo a reprodução
dessa língua em símbolos escritos.
Lorde Thomson of Monifieth, um inglês que já presidiu
a Independent Broadcasting Authority, órgão de supervisão do sistema de rádio e
televisão na Grã-Betanha, disse certa vez numa conferência que lamenta não ter
surgido na história da humanidade primeiro a televisão, e depois os tipos
móveis de Gutenberg. “Penso que imprimir e ler representam formas mais
avançadas de comunicação civilizada do que a transmissão de TV”, afirmou. Esse
lúcido inglês confessou que, em seus momentos sombrios, se sente incomodado com
o pensamento de que a humanidade caminhou milhões de anos para voltar ao ponto
de partida. Começou magnetizada pelos desenhos nas paredes das cavernas e
terminou magnetizada diante da figura de alta definição nas paredes onde se
embutem os aparelhos de televisão.
TOLEDO, Roberto Pompeu de.
Ensaio. Revista Veja, 25 jun. 1997. © 1997, Abril S.A.
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