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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Artigo: Sobre a dificuldade de ler


Giorgio Agamben (Arte Revista Cult / Foto Christina Bocayuva)

Gostaria de lhes falar não da leitura e dos riscos que ela comporta, mas de um risco ainda maior, ou seja, da dificuldade ou da impossibilidade de ler; gostaria de tentar lhes falar não da leitura, mas da ilegibilidade.

Cada um de vocês terá feito a experiência daqueles momentos nos quais gostaríamos de ler, mas não conseguimos, nos quais nos obstinamos a folhear as páginas de um livro, mas ele nos cai literalmente das mãos.

Nos tratados sobre a vida dos monges, este era, aliás, o risco por excelência ao qual o monge sucumbia: a acédia, o demônio do meio-dia, a tentação mais terrível que ameaça os homines religiosi se manifesta, antes de mais nada, com a impossibilidade de ler. Eis a descrição que S. Nilo lhe dá:

“Quando o monge acedioso tenta ler, interrompe-se inquieto e, um minuto depois, cai no sono; esfrega o rosto com as mãos, estende os dedos e continua a ler por algumas linhas, balbuciando o fim de cada palavra que lê; e, entretanto, se enche a cabeça com cálculos ociosos, conta o número das páginas que ainda restam a ler e as folhas dos cadernos e se lhe tornam odiosas as letras e as belas miniaturas que tem diante dos olhos até que, por último, torna a fechar o livro e o usa como um travesseiro para a sua cabeça, caindo em um sono breve e profundo…”.

A saúde da alma coincide aqui com a legibilidade do livro (que é também, para o medievo, o livro do mundo), o pecado com a impossibilidade de ler, com o tornar-se ilegível do mundo.

Simone Weil falava, nesse sentido, de uma leitura do mundo e de uma não-leitura, de uma opacidade que resiste a toda interpretação e a toda hermenêutica. Gostaria de lhes sugerir que prestassem atenção aos seus momentos de não leitura e de opacidade, quando o livro do mundo cai das suas mãos, porque a impossibilidade de ler lhes diz respeito tanto quanto a leitura e é, talvez, tanto ou mais instrutiva do que esta.

Há também uma outra e mais radical impossibilidade de ler, que até poucos anos atrás era, antes de tudo, comum. Refiro-me aos analfabetos, esses homens muito apressadamente esquecidos, que, há apenas um século, eram, ao menos na Itália, a maioria. Um grande poeta espanhol do século 20 dedicou um livro de poesia seu ao analfabeto para/por quem eu escrevo. É importante compreender o sentido desse “para/por”: não tanto ou não somente “para que o analfabeto me leia”, visto que por definição não poderá fazê-lo, quanto “no seu lugar”, como Primo Levi dizia testemunhar por/para aqueles que no jargão de Auschwitz se chamavam de muçulmanos, isto é, aqueles que não podiam nem poderiam ter testemunhado, porque, pouco depois do seu ingresso no campo, tinham perdido toda consciência e toda sensibilidade.

Gostaria que vocês refletissem sobre o estatuto especial desse livro que, na sua essência, é destinado a olhos que não podem lê-lo e foi escrito com uma mão que, em um certo sentido, não sabe escrever. O poeta ou o escritor que escreve pelo/para o analfabeto tenta escrever o que não pode ser lido, põe no papel o ilegível. Mas precisamente isso torna a sua escrita mais interessante do que a que foi escrita apenas por/para quem sabe ler.

Há, finalmente, um outro caso de não leitura do qual gostaria de lhes falar. Refiro-me aos livros que não encontraram aquela que Benjamin chamava de a hora da sua inteligibilidade, que foram escritos e publicados, mas estão – talvez para sempre – à espera de serem lidos. Eu conheço – e cada um de vocês, eu acredito, poderia citar – livros que mereciam ser lidos e não foram lidos, ou foram lidos por pouquíssimos leitores. Qual é o estatuto desses livros? Eu penso que, se esses livros eram verdadeiramente bons, não se deveria falar de uma espera, mas de uma exigência. Esses livros não esperam, mas exigem ser lidos, mesmo que não o tenham sido ou não o serão jamais. A exigência é um conceito muito interessante, que não se refere à esfera dos fatos, mas a uma esfera superior e mais decisiva, cuja natureza deixo a cada um de vocês precisar.

Mas agora gostaria de dar um conselho aos editores e àqueles que se ocupam de livros: parem de olhar para as infames, sim, infames classificações de livros mais vendidos e – presume-se – mais lidos e tentem construir em vez disso na mente de vocês uma classificação dos livros que exigem ser lidos. Só uma editora fundada nessa classificação mental poderia fazer o livro sair da crise que – pelo que ouço ser dito e repetido – está atravessando.

Um poeta compendiou uma vez a sua poética com a fórmula: “ler o que não foi jamais escrito”. Trata-se, como vocês veem, de uma experiência de algum modo simétrica àquela do poeta que escrevia por/para o analfabeto que não pode lê-lo: à escrita sem leitura, corresponde aqui uma leitura sem escrita. Com a condição de precisar que também os tempos estão invertidos: lá uma escrita que não é seguida por nenhuma leitura, aqui uma leitura que não é precedida por nenhuma escrita.

Mas talvez em ambas essas formulações está em questão algo de similar, ou seja, uma experiência da escrita e da leitura que põe em questão a representação que nos fazemos habitualmente dessas duas práticas tão estreitamente ligadas, que se opõem e ao mesmo tempo remetem a algo de ilegível e de inescrevível que as precedeu e não cessa de acompanhá-las.

Vocês terão compreendido que me refiro à oralidade. A nossa literatura nasce em íntima relação com a oralidade. Porque o que faz Dante quando decide escrever na língua vulgar, senão justamente “escrever o que não foi jamais lido e ler o que não foi jamais escrito”, isto é, aquele “falar materno” analfabeto, que existia somente na dimensão oral? E tentar colocar por escrito o falar materno o obriga não simplesmente a transcrevê-lo, mas, como vocês sabem, a inventar aquela língua da poesia, aquela língua vulgar ilustre, que não existe em nenhuma parte, mas, como a pantera dos bestiários medievais, “espalha em toda parte o seu perfume, mas reside em lugar nenhum”.

Eu creio que não se possa compreender corretamente o grande florescimento da poesia italiana no século 20, se não se percebe nela algo como a reconvocação daquela ilegível oralidade que, diz Dante, “uma e única é primeira na mente”. Isto é, se não se entende que ela é acompanhada pelo igualmente extraordinário florescimento da poesia em dialeto. Talvez a literatura italiana do século 20 seja toda ela atravessada por uma memória inconsciente, quase por uma afanosa comemoração do analfabetismo. Quem teve entre as mãos um desses livros, nos quais a página escrita – ou, melhor, transcrita – em dialeto está ao lado da tradução em vernáculo, não pode não se perguntar, enquanto os seus olhos atravessavam inquietos de uma página à outra, se o lugar verdadeiro da poesia não estaria, por acaso, nem em uma página nem na outra, mas no espaço vazio entre ambas.

E gostaria de concluir esta breve reflexão sobre a dificuldade da leitura, perguntando a vocês se o que nós chamamos de poesia não seria, na verdade, algo que incessantemente habita, trabalha e sustém a língua escrita para restituí-la àquele ilegível do qual provém e para o qual se mantém em viagem.

O presente texto foi apresentado em uma intervenção na Feira da Pequena Editora, em Roma, em outubro de 2012.

Tradução de Cláudio Oliveira

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