Pesquisar este blog

quarta-feira, 10 de março de 2021

Artigo: Afetividade e Cognição

Afetividade e Cognição: Rompendo a Dicotomia na educação

 

Valéria Amorim Arantes

 

Pensar e sentir são ações indissociáveis. Esta é a ideia que tentaremos imprimir e defender ao longo do texto, tendo como preocupação central transpô-la para o campo educacional. E o faremos expondo algumas reflexões acerca do papel da afetividade no funcionamento psicológico e na construção de conhecimentos cognitivo-afetivos.

O leitor ou leitora podem estar se perguntando: por que conhecimentos cognitivo-afetivos? Haveria conhecimentos exclusivamente cognitivos ou exclusivamente afetivos? A essa segunda pergunta poder-se-ia responder sim ou não. Se a resposta for sim, tratar-se-á de uma concepção centrada na justaposição dicotômica entre cognição e afetividade, embasada no princípio de que a razão e as emoções constituem dois aspectos diferenciados no raciocínio humano. Ao contrário disso, se a resposta for não, conceber-se-á a intrínseca relação entre os processos cognitivos e afetivos no funcionamento psíquico humano. Assumimos a segunda perspectiva, daí o emprego da expressão conhecimentos cognitivo-afetivos, e duas razões nos levam a tal posição.

A primeira é de cunho psicológico: não corremos o risco de sermos interpretados a partir de crenças arraigadas em nossa cultura, que consideram a inteligência e a afetividade dicotômicos e/ou separados, no processo de construção do conhecimento. Ao contrário, acreditamos que o conhecimento dos sentimentos e das emoções requer ações cognitivas, da mesma forma que tais ações cognitivas pressupõem a presença de aspectos afetivos. Talvez nos faltem em nossas linguagens cotidiana e acadêmica expressões como "conhecimento sentido" ou – porque não? –, "sentimento conhecido".

Em decorrência desse primeiro aspecto, no campo educacional, aparece uma segunda razão que nos leva a rechaçar a divisão histórica e culturalmente estabelecida entre os "saberes racionais" e os "saberes emocionais". Se os aspectos afetivos e cognitivos da personalidade não constituem universos opostos, não há nada que justifique prosseguirmos com a ideia de que existem saberes essencialmente ou prioritariamente vinculados à racionalidade ou à sensibilidade. Posto dessa maneira, a indissociação entre pensar e sentir nos obriga a integrar nas explicações sobre o raciocínio humano as vertentes racional e emotiva dos conceitos e fatos construídos. Partimos da premissa de que no trabalho educativo cotidiano não existe uma aprendizagem meramente cognitiva ou racional, pois os alunos e as alunas não deixam os aspectos afetivos que compõem sua personalidade do lado de fora da sala de aula, quando estão interagindo com os objetos de conhecimento, ou não deixam "latentes" seus sentimentos, afetos e relações interpessoais enquanto pensam.

Apresentadas tais razões, já adentramos no objeto do presente texto: refletir sobre o tema da afetividade nos contextos psicológico e educacional.

 

Um pouco de história

 

Vários foram os pensadores e filósofos que, desde a Grécia Antiga, postularamuma suposta dicotomia entre razão e emoção. Quando Platão definiu como virtude a liberação e troca de todas as paixões, prazeres e valores individuais pelo pensamento, considerado, por ele, um valor universal e ligado à imutabilidade das formas eternas (Silva, 2002), e quando Descartes criou a tão conhecida e famosa afirmação na história da filosofia – "Penso, logo existo" –, sugeriam a possibilidade de separação entre razão e emoção ou, o que seria mais adequado, assumiram implicitamente uma hierarquia entre tais instâncias do raciocínio humano, em que o pensamento tem valor de excelência.

Nessa mesma direção, Immanuel Kant, na obra Fundamentação da metafísica dos costumes (1786), nos advertiu sobre a impossibilidade do encontro entre razão e felicidade, quando afirmou que "quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da vida e da felicidade, tanto mais o homem se afasta do verdadeiro contentamento". Afirmou também que se Deus tivesse feito o homem para ser feliz não o teria dotado de razão. Esse filósofo considerava, ainda, as paixões como "enfermidades da alma".  Tais reflexões denotam, também, como Kant estabelecia uma hierarquia entre a razão e as emoções.

Longe de terem sido esquecidas, essas premissas da filosofia  permanecem vivas até os dias atuais, muitas vezes traduzidas sob metáforas que ouvimos freqüentemente na vida cotidiana: "não aja com o coração", "coloque a cabeça para funcionar", "seja mais racional". Nessa perspectiva, parece-nos que para uma pessoa tomar decisões corretas é necessário que ela se livre ou se desvincule dos próprios sentimentos e emoções. Fica a impressão de que, em nome de uma resolução sensata, deve-se desprezar, controlar ou anular a dimensão afetiva.  

Na história da psicologia, o cenário parece não ser muito diferente. Por influência evidente da filosofia, de onde surgiram, durante muitas décadas as teorias psicológicas estudaram separadamente os processos cognitivos e afetivos. Seja por dificuldade em estudá-los de forma integrada, seja por crença dos psicólogos e cientistas que se debruçaram sobre a temática, tal separação parece ter nos conduzido a uma visão parcial e distorcida da realidade, com reflexos nas investigações científicas e no modelo educacional ainda vigente. Os cientistas comportamentais, por um lado, ao centrarem seus estudos apenas nos comportamentos externos dos sujeitos – e, portanto, relegando a um segundo plano experiências mais subjetivas, como a das emoções –, e algumas concepções cognitivistas que buscam compreender o raciocínio humano apenas em sua dimensão semântica ou por meio de formalizações puramente lógicas, são exemplos desse modelo. Por outro lado, e de forma também distorcida, podemos entender algumas teorias que privilegiam os aspectos afetivos e/ou inconscientes nas explicações dos pensamentos humanos, dedicando um papel secundário aos aspectos cognitivos.

Tanto no campo da psicologia quanto no campo da neurologia, algumas perspectivas teóricas e científicas questionam os tradicionais dualismos do pensamento ocidental, apontando caminhos e hipóteses que prometem inovar as teorias sobre o funcionamento psíquico humano, na direção de integrar dialeticamente cognição e afetividade, razão e emoções.

 

Novas compreensões sobre o funcionamento psíquico humano

 

Um primeiro autor que podemos citar como tendo questionado as teorias que tratavam a afetividade e a cognição como aspectos funcionais separados foi o biólogo e epistemólogo suíço Jean Piaget (1896-1980). Em um trabalho publicado a partir de um curso que ministrou na Universidade de Sorbonne (Paris) no ano acadêmico de 1953-54, "Les relations entre l'intelligence et l'affectivité dans le développement de l'enfant", o autor nos advertiu sobre o fato de que, apesar de diferentes em sua natureza, a afetividade e a cognição são inseparáveis, indissociadas em todas as ações simbólicas e sensório-motoras. Ele postulou que toda ação e pensamento comportam um aspecto cognitivo, representado pelas estruturas mentais, e um aspecto afetivo, representado por uma energética, que é a afetividade.

De acordo com Piaget, não existem estados afetivos sem elementos cognitivos, assim como não existem comportamentos puramente cognitivos. Quando discute os papéis da assimilação e da acomodação cognitiva,  afirma que esses processos da adaptação também possuem um lado afetivo: na assimilação, o aspecto afetivo é o interesse em assimilar o objeto ao self (o aspecto cognitivo é a compreensão); enquanto na acomodação a afetividade está presente no interesse pelo objeto novo (o aspecto cognitivo está no ajuste dos esquemas de pensamento ao fenômeno).

Nessa perspectiva, o papel da afetividade para Piaget é funcional na inteligência. Ela é a fonte de energia de que a cognição se utiliza para seu funcionamento. Ele explica esse processo por meio de uma metáfora, afirmando que “a afetividade seria como a gasolina, que ativa o motor de um carro, mas não modifica sua estrutura” (ibidem., p.5). Ou seja, existe uma relação intrínseca entre a gasolina e o motor (ou entre a  afetividade e a cognição) porque o funcionamento do motor, comparado com as estruturas mentais, não é possível sem o combustível, que é a afetividade.

Na relação do sujeito com os objetos, com as pessoas e consigo mesmo, existe uma energia que direciona seu interesse para uma situação ou outra, e a essa energética corresponde uma ação cognitiva que organiza o funcionamento mental. Nessa linha de raciocínio, diz Piaget, “é o interesse e, assim, a afetividade que fazem com que uma criança decida seriar objetos e quais objetos seriar” (ibidem., p.10). Complementando, todos os objetos de conhecimento são simultaneamente cognitivos e afetivos, e as pessoas, ao mesmo tempo que são objeto de conhecimento, são também de afeto.

No transcorrer de seu trabalho, Piaget incorpora um outro tema na relação entre a afetividade e a cognição, que são os valores. Ele considera os valores como pertencentes à dimensão geral da afetividade no ser humano e afirma que eles surgem a partir de uma troca afetiva que o sujeito realiza com o exterior, com objetos ou pessoas. Eles surgem da projeção dos sentimentos sobre os objetos que, posteriormente, com as trocas interpessoais e a intelectualização dos sentimentos, vão sendo cognitivamente organizados, gerando o sistema de valores de cada sujeito. Os valores se originam, assim, do sistema de regulações energéticas que se estabelece entre o sujeito e o mundo externo (desde o nascimento), a partir de suas relações com os objetos, com as pessoas e consigo mesmo.

O psicólogo Lev Semenovich Vygotsky (1896-1934) também tematizou as relações entre afeto e cognição, postulando que as emoções integram-se ao funcionamento mental geral, tendo uma participação ativa em sua configuração. Reconhecendo as bases orgânicas sobre as quais as emoções humanas se desenvolvem, Vygotsky buscou no desenvolvimento da linguagem – sistema simbólico básico de todos os grupos humanos –, os elementos fundamentais para compreender as origens do psiquismo.

Produto e expressão da cultura, a linguagem configura-se, na teoria de Vygotsky, como um lugar de constituição e expressão dos modos de vida culturalmente elaborados. A linguagem forneceria, pois, os conceitos e as formas de organização do real. Em suma, "um modo de compreender o mundo, se compreender diante e a partir dele e de se relacionar com ele". (In: Oliveira, Ivone M., 2000).

Vygotsky explicita claramente sua abordagem unificadora entre as dimensões cognitiva e afetiva do funcionamento psicológico. Afirma ele que (1996): 

 

"A forma de pensar, que junto com o sistema de conceito nos foi imposta pelo meio que nos rodeia, inclui também nossos sentimentos. Não sentimos simplesmente: o sentimento é percebido por nós sob a forma de ciúme, cólera, ultraje, ofensa. Se dizemos que desprezamos alguém, o fato de nomear os sentimentos faz com que estes variem, já que mantêm uma certa relação com nossos pensamentos."

 

Marta Kohl de Oliveira (1992), numa explanação acerca da afetividade na teoria de Vygotsky, salienta que o autor soviético distinguia, no significado da palavra, dois componentes: o "significado" propriamente dito (referente ao sistema de relações objetivas que se forma no processo de desenvolvimento da palavra) e o "sentido" (referente ao significado da palavra para cada pessoa). Neste último, relacionado às experiências individuais, é que residem as vivências afetivas. Em tal sentido, a autora afirma que "no próprio significado da palavra, tão central para Vygotsky, encontra-se uma concretização de sua perspectiva integradora dos aspectos cognitivos e afetivos do funcionamento psicológico humano".

Henri Wallon (1879-1962), filósofo, médico e psicólogo francês, reconhecendo na vida orgânica as raízes da emoção, nos trouxe, também, contribuições significativas acerca da temática. Interessado em compreender o psiquismo humano, Wallon se debruçou sobre a dimensão afetiva, criticando vorazmente as teorias clássicas contrárias entre si, que concebem as emoções ou como reações incoerentes e tumultuadas, cujo efeito sobre a atividade motora e intelectual é perturbador, ou como reações positivas, cujo poder sobre as ações é ativador, energético. Criticando tais concepções, pautadas, a seu ver, numa lógica mecanicista e linear, Wallon rompe com uma visão valorativa das emoções, buscando compreendê-las a partir da apreensão de suas funções, e atribuindo-lhes um papel central na evolução da consciência de si. Em suas postulações concebe as emoções como um fenômeno psíquico e social, além de orgânico.

Assim como Piaget e Vygotsky, Wallon mostra-nos, em seus escritos, compartilhar da ideia de que emoção e razão estão, intrinsecamente, conectadas (1986):

 

"A comoção do medo ou da cólera diminui quando o sujeito se esforça para definir-lhe as causas. Um sofrimento físico, que procuramos traduzir em imagens, perde algo de sua agudez orgânica. O sofrimento moral, que conseguimos relatar a nós mesmos, cessa de ser lancinante e intolerável. Fazer um poema ou um romance de sua dor era, para Goethe, um meio de furtar-se a ela." 

                                                                               

Na perspectiva genética de Henri Wallon, inteligência e afetividade estão integradas: a evolução da afetividade depende das construções realizadas no plano da inteligência, assim como a evolução da inteligência depende das construções afetivas. No entanto, o autor admite que, ao longo do desenvolvimento humano, existem fases em que predominam o afetivo e fases em que predominam a inteligência.

Após um período inicial em que se destacam as necessidades orgânicas da criança, Wallon identifica um outro período – aproximadamente a partir dos seis meses –, em que a sensibilidade social começa a se configurar. Esta etapa vai sendo superada à medida que os processos de diferenciação – entre si e o outro –, vão se tornando cada vez mais elaborados. Assim, considera o psiquismo como uma síntese entre o orgânico e o social. Para tal, as emoções vão se subordinando cada vez mais às funções mentais. Em suma, a afetividade reflui para dar espaço à atividade cognitiva. Vale a pena recorrermos a uma afirmação de Heloisa Dantas (1990), estudiosa da obra de Wallon, que parece ilustrar a relação entre emoção e razão, posta pelo autor: "A razão nasce da emoção e vive da sua morte." Ou, como afirmou Galvão (1995): "é uma relação de filiação e, ao mesmo tempo, de oposição."

A preocupação em superar as tradicionais dicotomias entre razão e emoções e entre as dimensões cognitiva e afetiva do funcionamento psíquico humano pode ser identificada também em estudos mais recentes, no campo da neurologia.

Nessa perspectiva, o neurologista Antônio R. Damásio, em sua notável obra O erro de Descartes (1996), postula a existência de uma forte interação entre a razão e as emoções, defendendo a ideia de que os sentimentos e as emoções são uma percepção direta de nossos estados corporais e constituem um elo essencial entre o corpo e a consciência.

Damásio identificou, no acompanhamento de pacientes com lesões cerebrais – especialmente pré-frontais –, características comuns. Dentre elas, uma significativa redução das atividades emocionais. Isso o levou a estabelecer relações entre áreas cerebrais, raciocínio e tomada de decisões e emoções. Afirmou ele:

 

"Parece existir um conjunto de sistemas no cérebro humano consistentemente dedicados ao processo de pensamento orientado para um determinado fim, ao qual chamamos raciocínio, e à seleção de uma resposta, a que chamamos tomada de decisão, com uma ênfase especial no domínio pessoal e social. Esse mesmo conjunto de sistemas está também envolvido nas emoções e nos sentimentos e dedica-se em parte ao processamento dos sinais do corpo."

   

Para Damásio, a emoção e o sentimento assentam-se em dois processos básicos, que funcionam em paralelo: "o primeiro, a imagem de um determinado estado do corpo justaposto ao conjunto de imagens desencadeadoras e avaliativas que o causaram; e o segundo, um determinado estilo e nível de eficácia do processo cognitivo que acompanha os acontecimentos descritos no primeiro." Estabelecendo uma intrínseca relação entre os sentimentos e os modos cognitivos, postula ainda que "a essência da tristeza ou da felicidade é a percepção combinada de determinados estados corporais e de pensamentos que estejam justapostos, complementados por uma alteração no estilo e na eficiência do processo de pensamento."

Apontemos a essência do erro de Descartes, segundo Damásio:

 

"... a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independentemente do corpo. Especificamente: a separação das operações mais refinadas da mente, para um lado, e da estrutura ou funcionamento do organismo biológico para o outro."

 

Preocupado em articular as emoções com os processos cognitivos - "emoções bem direcionadas e bem situadas parecem constituir um sistema de apoio sem o qual o edifício da razão não pode operar a contento" –, Damásio rompe também com a ideia cartesiana de uma mente separada do corpo. Como ele mesmo apontou, talvez a famosa frase filosófica – Penso, logo existo- devesse ser substituída pela anti cartesiana – Existo e sinto, logo penso.

Outro autor, ligado ao campo da neurologia, que também compartilha da premissa de que os processos cognitivos e os processos afetivos são indissociáveis é Joseph LeDoux. Segundo LeDoux (1993; 1999), o sistema da amígdala ministra a memória emocional inconsciente, enquanto o hipocampo proporciona a memória consciente de uma experiência emocional. Sendo assim, o autor postula que os sentimentos e os pensamentos conscientes são parecidos e que ambos são gerados por processos inconscientes, e que a influência das emoções sobre a razão é maior do que a da razão sobre as emoções. Para ele, ambas as memórias "se unem em nossa experiência consciente de um modo tão imediato e rigoroso que não podemos analisá-la minuciosamente mediante a introspeção". Mas voltemos, então, para o campo da psicologia.

O psicoterapeuta americano Greenberg (1993; 1996) também nos adverte sobre a intrínseca relação entre cognição e emoção quando se refere  aos chamados esquemas emocionais: "... não baseiam-se unicamente na emoção, implicam uma síntese complexa de afeto, cognição, motivação e ação, que proporciona a cada pessoa um sentido integrado dele ou dela mesma e do mundo, assim como também um significado subjetivamente sentido". Para Greenberg, enquanto a emoção nos sinaliza a respeito do que está nos afetando e estabelece a meta para que possamos alcançá-la, a cognição nos ajuda a dar sentido à nossa experiência, assim como a razão nos ajuda a imaginar o melhor modo de alcançarmos a meta. Como Damásio e LeDoux, Greenberg parece compartilhar da tese de que o afetivo estabelece os problemas para que o cognitivo os resolva.          

É impossível não fazermos referência, ainda, à perspectiva de Howard Gardner e de sua equipe da Universidade de Harvard, muito em voga nos dias atuais, que, partindo do pressuposto de que o ser humano desenvolve diferentes funções intelectuais, apregoa a ideia das "inteligências múltiplas", contrapondo-a à da inteligência como uma função única. Sem entrarmos no mérito da quantificação da inteligência posta por tal enfoque, parece-nos relevante o paradigma colocado por estes estudiosos que pressupõe a substituição da percepção simplista do ser humano, por uma visão de que as pessoas são dotadas de ampla diversidade de competências e linguagens. Gardner postula que a inteligência é uma atitude que se expressa por meio de sistemas simbólicos diferentes, e isso supõe uma clara ruptura com a ideia de inteligência como entidade única e abstrata. Dentro dessa linha, salientamos, especialmente, o grande impacto e sucesso obtido pelo trabalho de Daniel Goleman, intitulado Inteligência emocional. Embora não estejamos de acordo com os pressupostos teóricos e epistemológicos desses autores, reconhecemos a importância que seus estudos vêm tendo na mudança dos paradigmas científicos que procuram ressignificar o papel das emoções no raciocínio humano.

Um autor que também aponta, em seu recente trabalho, para a conexão entre os aspectos afetivos e cognitivos é o holandês Nico Fridja (Fridja et al. 2000). Ele o faz postulando, especificamente, a forte influência que as emoções exercem sob as crenças. Salienta que, enquanto o pensamento racional não é suficiente para a ação, as emoções induzem as pessoas a atuarem de uma determinada maneira. Em suma, os sentimentos estão apoiados pelas crenças, e as crenças pelos sentimentos.

Entre todos esses enfoques que questionam a dicotomia historicamente posta entre razão e emoções e entre cognição e afetividade, podemos incluir a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento (Moreno, Sastre, Bovet, Leal, 1998), segundo a qual o sujeito elabora e organiza sínteses complexas de significados a partir de processos afetivos e cognitivos.

Os modelos organizadores são conjuntos de representações mentais que as pessoas realizam em situações específicas e que as levam a compreender a realidade e a elaborar seus juízos e suas ações. Construídos não somente a partir da lógica subjacente às estruturas de pensamento, os modelos organizadores do pensamento comportam os desejos, sentimentos, afetos, representações sociais e valores de quem os constrói. Tal referencial teórico procura, pois, demonstrar como os aspectos cognitivos e afetivos se articulam de maneira dialética no funcionamento psíquico.

 

Aspectos cognitivos e afetivos presentes na organização do pensamento

 

Fundamentando-nos na Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento e em seus pressupostos realizamos um  trabalho de investigação (Arantes, V., 2000), que nos permitiu adentrar no estudo acerca da correlação entre os aspectos afetivos e cognitivos subjacentes ao funcionamento psíquico. Pudemos identificar como as pessoas pensam e analisam uma determinada situação de acordo com seus estados emocionais. Optamos por um caminho metodológico em que nossa amostra de pesquisa foi dividida em três grupos distintos de docentes, sendo cada um deles induzido a experienciar um determinado estado emocional antes de solicitado a resolver uma situação-problema. Enquanto no primeiro grupo, denominado positivo, foi solicitado aos docentes que recordassem, escrevessem, comentassem e dramatizassem uma experiência pessoal na qual se sentiram satisfeitos e felizes por terem ajudado alguém, no segundo, denominado negativo, a mesma atividade solicitada esteve centrada numa experiência negativa. Tratava-se, pois, de solicitar que recordassem uma situação, vivida por eles, em que se sentiram insatisfeitos e infelizes por não poderem ajudar alguém. Com o terceiro grupo, denominado neutro, não foi realizada nenhuma atividade prévia à coleta de dados. Nós o denominamos grupo neutro apenas por esta razão, o que não significa que esses sujeitos estivessem emocionalmente neutros.

Escolhemos uma situação dilemática relacionada a conteúdos de natureza moral para essa investigação por ser de entendimento corrente que alguns conteúdos morais solicitam, implicitamente, a articulação entre os aspectos cognitivos e afetivos durante o raciocínio. Assim, apresentamo-lhes um conflito ligado a uma temática que faz parte do cotidiano das escolas públicas brasileiras e que mobiliza a preocupação daqueles que ali trabalham: o consumo de drogas pelos alunos e alunas. Pedimo-lhes que opinassem sobre os sentimentos, pensamentos e desejos de uma professora, ao flagrar um aluno fumando maconha durante o horário de aula.

Os resultados obtidos nessa investigação (Arantes, V., 2000; 2001) mostraram que um mesmo conflito pode receber tratamentos diferentes e antagônicos, dependendo do estado emocional prévio do sujeito que o enfrenta. Enquanto o grupo positivo encarou o aluno drogado como uma pessoa boa e com um futuro promissor, o grupo negativo o viu como uma pessoa problemática, perigosa e, portanto, indesejável. Enquanto o grupo positivo apresentou em suas respostas diferentes formas de ajudar o aluno, o grupo negativo apontou, como  melhor forma de resolver o conflito enfrentado, excluí-lo da instituição escolar.

Os resultados dessa investigação parecem nos dizer que, quando estamos felizes, preparamos nossas "cabeças" para analisarmos e compreendermos as necessidades e problemas dos demais, elaborando estratégias de ação mais solidárias e generosas. Os mesmos resultados nos indicam também que os estados emocionais influenciam nossos pensamentos e ações tanto quanto nossas capacidades cognitivas. Assim, ao sermos solicitados a resolver problemas, a forma como organizamos nosso raciocínio parece depender tanto dos aspectos cognitivos quanto dos aspectos afetivos presentes durante o funcionamento psíquico, sem que um seja mais importante que o outro.

Finalizando o quadro até aqui esboçado, ficamos com a certeza de que não devemos mais admitir as polarizações entre o campo da racionalidade e da afetividade presentes nas explicações do funcionamento psíquico. O comportamento e os pensamentos humanos se sustentam naindissociação – de forma dialética –, de emoções e pensamentos, de aspectos afetivos e cognitivos. As emoções não são obstáculos a serem evitados, como sugerem algumas teorias psicológicas, sociológicas e filosóficas. Nas interações com o meio social e cultural criamos sistemas organizados de pensamentos, sentimentos e ações que mantêm entre si um complexo entrelaçado de relações. Assim como a organização de nossos pensamentos influencia nossos sentimentos, o sentir também configura nossa forma de pensar. Assim, acreditamos que pensar e sentir são ações indissociáveis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário