"Nenhum ser humano nunca nasceu com impulsos agressivos ou hostis e nenhum se tornou agressivo ou hostil sem aprendê-lo."
Ashley Montagu
A discussão esboçada na primeira parte nos traz a certeza de que necessitamos construir um sistema educativo que supere a clássica contraposição entre razão e emoção, cognição e afetividade, e que rompa com uma concepção – por nós tão conhecida –, que atribui ao desenvolvimento do intelecto, dos aspectos cognitivos e racionais, um lugar de destaque na educação, relegando os aspectos emocionais e afetivos de nossa vida a um segundo plano. Assim é que a educação tradicional e os currículos escolares, ao trabalharem de maneira puramente cognitiva a matemática, a língua, as ciências, a história, etc., acabam por priorizar apenas um desses aspectos constituintes do psiquismo humano, em detrimento do outro (ou dos outros).
Para discorrermos sobre a dimensão afetiva no campo da educação, vislumbramos a possibilidade de reflexão sob duas perspectivas diferentes, inter-relacionadas e complementares: a do desejo, aqui entendida apenas em sua dimensão motivacional, de interesse; e a dos sentimentos e afetos como objetos de conhecimento. Mesmo reconhecendo a importância da motivação e dos interesses como uma dimensão essencial da afetividade na vida psíquica e para a educação, no fundo tal perspectiva costuma ficar presa a uma visão dicotômica que reduz o papel dos sentimentos e emoções a uma energética. Vamos, no presente texto, nos dedicar apenas à segunda perspectiva.
Acreditamos poder avançar as discussões que apontam para a articulação das relações intrínsecas entre cognição e afetividade, no campo da educação, se incorporarmos no cotidiano de nossas escolas o estudo sistematizado dos afetos e sentimentos, encarados como objetos de conhecimento. Defendemos a idéia de que tais conteúdos relacionados à vida pessoal e à vida privada das pessoas podem ser introduzidos no trabalho educativo, perpassando os conteúdos de matemática, de língua, de ciências, etc. Assim, o princípio proposto é de que tais conteúdos sejam trabalhados na forma de projetos que incorporem de maneira transversal e interdisciplinar os conteúdos tradicionais da escola e aqueles relacionados à dimensão afetiva.
Um bom caminho para a promoção de tal proposta é lançar mão do emprego de técnicas de resolução de conflitos no cotidiano das escolas, principalmente se os conflitos em questão apresentarem características éticas que solicitem aos sujeitos considerar ao mesmo tempo os aspectos cognitivos e afetivos que caracterizam os raciocínios humanos.
Para justificar tais princípios nos pautamos em idéias como as de Moreno (2000), especialmente quando afirma que: "os suicídios, os crimes e agressões não têm como causa a ignorância das matérias curriculares, mas estão frequentemente associados a uma incapacidade de resolver os problemas interpessoais e sociais de uma maneira inteligente." A autora nos leva a refletir sobre o fato de que os conteúdos curriculares tradicionais servem – mesmo que não somente –, para "passar de ano", ingressar na universidade, mas parecem não nos auxiliar a enfrentar os males de nossa sociedade ou os conflitos de natureza ética que vivenciamos no cotidiano.
Se recorrermos à epígrafe utilizada anteriormente, em que Montagu afirma que nenhum ser humano torna-se agressivo ou hostil sem aprendê-lo, temos de admitir que, se vivemos momentos de intensa violência, em algum momento da história, tal violência foi, por nós, construída, aprendida. As relações e os conflitos interpessoais do cotidiano, com os sentimentos, pensamentos e emoções que lhes são inerentes, exigem de nós autoconhecimento e um processo de aprendizagem para que possamos enfrentá-los adequadamente.
Apesar de os conflitos acontecerem continuamente em nossas vidas, nossa sociedade parece vê-los sempre de forma negativa e/ou destrutiva. Diante de um conflito vivido, por exemplo, entre dois irmãos ou irmãs, a conduta do pai ou da mãe normalmente contempla a ideia de que extingui-lo é a melhor forma de resolvê-lo. Nesse sentido, é comum argumentarem que o melhor é que façam "as pazes" e voltem a ser amigos(as), como eram antes do início da situação conflitiva. Em suma, o conflito é visto como algo desnecessário, que viola as normas sociais e que, portanto, deve ser evitado.
Em outro sentido, Johnson e Johnson (1995) afirmam que: "o que determina que os conflitos sejam destrutivos ou construtivos não é sua existência, mas sim a forma como são tratados". Para esses autores, as escolas que desprezam os conflitos os tratam de forma destrutiva e aquelas que os valorizam os tratam de forma construtiva. Assim, os conflitos tratados construtivamente podem trazer resultados positivos, melhorando o desempenho, o raciocínio e a resolução de problemas.
Estamos de acordo com esses autores e acreditamos que uma escola de qualidade deve transformar os conflitos do cotidiano em instrumentos valiosos na construção de um espaço autônomo de reflexão e ação, que permita aos alunos e alunas enfrentarem, autonomamente, a ampla e variada gama de conflitos pessoais e sociais. Sentimo-nos encorajadas a investir na reorganização curricular da escola, para que seja um lugar onde, de forma transversal, se trabalhem os conflitos vividos no cotidiano.
Nesta perspectiva, consideramos, por um lado, que os sentimentos, as emoções e os valores devem ser encarados como objetos de conhecimento, posto que tomar consciência, expressar e controlar os próprios sentimentos talvez seja um dos aspectos mais difíceis na resolução de conflitos. Por outro lado, a educação da afetividade pode levar as pessoas a se conhecerem e a compreenderem melhor suas próprias emoções e as das pessoas com quem interagem no dia a dia. Grosso modo, tratar-se-á de desenvolver uma postura analítica perante sentimentos e valores.
A título de ilustração, descreveremos, brevemente, uma atividade realizada por uma professora de ensino fundamental, desenvolvida sob nossa orientação, que demonstra como é possível promover a educação dos sentimentos e emoções em uma perspectiva transversal e interdisciplinar, por meio de técnicas de resolução de conflitos. Ela iniciou a atividade solicitando que seus alunos e alunas relatassem situações por eles experienciadas, que lhes tivessem causado intensa tristeza e/ou insatisfação. Depois de alguns voluntários apresentarem seus relatos, foi solicitado a todos os alunos e alunas, individualmente, que registrassem a situação recordada por meio de desenhos e/ou escrita, contemplando os sentimentos, pensamentos e desejos vividos naquela situação. Os temas mais freqüentes no grupo foram: agressão física e psíquica dos maridos ou companheiros (pais das crianças) contra as mulheres (mães das crianças); a morte (roubos seguidos de assassinatos e vítimas do HIV); conflitos interpessoais que envolviam bens materiais. Após o registro individual a professora solicitou que aqueles que quisessem mostrassem o desenho feito, o texto escrito e comentassem sobre a situação.
Na sequência, solicitou aos alunos e alunas que buscassem formas de solucionar o conflito apresentado, com o objetivo de levá-los a refletir sobre a forma como haviam atuado no passado e como atuariam hoje, caso revivessem o mesmo conflito. As crianças elaboraram soluções de diferentes naturezas: organizar uma festa, dar-se um presente, rezar, ressuscitar a pessoa falecida, conversar com amigos, chorar, dentre outras. Após escreverem e desenharem as estratégias de atuação ante o conflito vivido, abriu-se novamente o espaço para reflexão em grupo, quando a professora e alunos(as) tiveram oportunidade de apresentarem questionamentos quanto à eficácia ou não das soluções elaboradas, bem como dos sentimentos, valores e pensamentos subjacentes a cada uma delas.
Após este trabalho inicial, quando os alunos e alunas tiveram a oportunidade de se expressarem e discutirem com o grupo suas ideias acerca dos conflitos vividos, desenvolvendo não só a percepção e tomada de consciência dos sentimentos e emoções, como também sua capacidade dialógica e cognitiva, várias atividades foram elaboradas e realizadas, utilizando-se das diferentes áreas do conhecimento "científico" como instrumentos para a formação desses alunos e alunas. Assim, foram desenvolvidas atividades como: expressão oral e corporal dos sentimentos; produção de textos, classificação e seriação das causas dos sentimentos negativos do grupo; a "localização" corporal dos sentimentos; história de vida; e a questão do consumismo compensando carências afetivas.
Com esse exemplo, nosso intuito foi o de ilustrar como a educação da afetividade pode e deve levar em consideração a vertente racional e emotiva dos conceitos e fatos que os alunos e alunas estão aprendendo, dispondo de um planejamento de atividades e técnicas que incluam e detalhem os conteúdos e objetivos curriculares específicos de cada uma delas.
Assim, sem abrir mão dos conteúdos tradicionais da escola, a professora em questão trabalhou conteúdos de natureza afetiva, entendendo-os como objetos de conhecimentos para a vida dos estudantes, da mesma forma que a matemática e a língua são vistas como objetos de conhecimento a serem aprendidos. Resumindo, com esse tipo de proposta educacional, a escola entende que da mesma forma que os estudantes aprendem a somar, a conhecer a natureza e a se apropriar da escrita, é fundamental para suas vidas que conheçam a si mesmos e a seus colegas, e as causas e consequências dos conflitos cotidianos. Trabalhando dessa maneira, por meio de situações que solicitem a resolução de conflitos, a educação atinge o duplo objetivo de preparar alunos e alunas para a vida cotidiana, ao mesmo tempo que não fragmenta as dimensões cognitiva e afetiva no trabalho com as disciplinas curriculares.
A título de encerramento, recorremos a uma afirmação de Moreno (1998): "Integrar o que amamos com o que pensamos é trabalhar, de uma só vez, razão e sentimentos; supõe elevar estes últimos à categoria de objetos de conhecimento, dando-lhes existência cognitiva, ampliando assim seu campo de ação." Trabalhar pensamentos e sentimentos – dimensões estas indissociáveis – requer dos profissionais da educação a disponibilidade para se aventurarem por novos campos de conhecimento e da ciência para darem conta, minimamente, de realizarem as articulações que a temática solicita. Eis uma nova e difícil empreitada, que exige coragem para enfrentarmos o desafio posto: buscar novas teorias e abrir mão de verdades há muito estabelecidas em nossa mente. Desafio salutar para o avanço da educação. De mais a mais, a recusa a este trabalho contribuirá para a consolidação do "analfabetismo emocional" na sociedade contemporânea.
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