Eu tinha um tio que era vidrado em literatura. Lia
sempre, lia vorazmente. Lia de tudo, desde simples poesias a livros complexos
de filosofia. Era influência do meu avô Geraldo, que incentivou nos filhos o
prazer da leitura desde criancinha. Aos doze anos, meu tio José já havia lido
mais de 200 livros, e por causa disso ele escrevia como ninguém.
Um belo dia, chegando à casa da minha avó Gertrudes,
com quem meu tio José morava (ficou solteiro uma vida inteira), o encontrei em
sua biblioteca – seu local preferido da casa – como sempre lendo. Ele era
professor universitário, dava aula na Universidade Federal que havia em nossa
cidade.
Ao perceber minha presença, me convidou para sentar-me
ao lado dele. De pronto aceitei (gostava de ouvi-lo contar as histórias
literárias), ele estava preparando uma de suas aulas. Era início de semestre e
o tema era Trovadorismo. Ele, olhando minha curiosidade, me perguntou: “Você sabe o que foi o Trovadorismo?”.
Mesmo tentando lembrar-me de algo, respondi: “Não!”. Ele deu um sorriso de canto de boca (como quem tratava o
tema com uma simplicidade extrema) e disse: “Se
já falou com sua avó, fica aí que te contarei tudo”.
Já havia falado com a vovó, que estava ocupada costurando,
logo puxei um banco e sentei-me perto dele. Tio José abriu um livro e começou:
“Garoto, toda e
qualquer história a ser contada precisa ser contextualizada, lembre-se sempre
disto. Não há entendimento sem contexto histórico. E a história que vou lhe contar
começa, mais precisamente, no século XII, na Idade Média. A Europa era dominada
pela Igreja Católica, que detinha boa parte das terras. A outra parte ficava a
cargo dos monarcas, que as cediam aos nobres, que por sua vez cediam a outros
nobres em troca de proteção (relações de suserania e vassalagem,
respectivamente), e, na base da pirâmide, apareciam os servos que exploravam as
terras e repartiam parte de sua produção com os acima deles. A Europa estava em
constante guerra devido as invasões dos povos germânicos. Deus era o centro da
vida (teocentrismo), o homem buscava a salvação de sua alma e a Igreja
realizava as Cruzadas, que em nome de Deus, faziam expedições para “libertar” a
Terra Santa dos muçulmanos e dos heréticos”.
Prosseguindo, ele perguntou: “Entendeu?”. Não havia
como não entender. Ele contava a história com um brilho no olhar diferente,
parecia que ele estava vivendo o momento.
“Garoto, toda
escola literária tem suas características e a maior do Trovadorismo é, sem
dúvidas, o amor platônico. Os trovadores (nobres que escreviam as cantigas)
foram influenciados pela lírica grega, ou seja, traziam em sua obra as
características da arte clássica, como por exemplo: o canto, o acompanhamento
musical (as cantigas eram cantadas por trovadores e acompanhadas por músicos e
seus instrumentos musicais), a devoção a Igreja Católica e a reafirmação do
sistema feudal citado acima. O Trovadorismo teve como marco inicial a Cantiga
da Ribeirinha de Paio Soares de Taveirós. A poesia da época era chamada de
poesia Provençal, pois se originou na região de Provença na França, tendo ampla
divulgação na Península Ibérica. Os textos escritos eram chamados de cantigas,
sendo subdivididos em: cantiga de amor, de amigo, de maldizer e de escárnio” –
explicou calmamente meu tio.
Eu ficava imaginando como era na época. Imaginava uma
corte cheia de música e poesia, cheia de namorados apaixonados, guerreiros se
vangloriando de seus feitos. Realmente, tio José sabia como falar sobre
literatura, mas ele não havia acabado e eu não tinha coragem de interrompê-lo.
“A Cantiga de
Amor retratava o amor idealizado de um homem por uma mulher. Era escrita em
primeira pessoa e o eu-lírico era masculino. O cenário era o dia a dia da corte
e o tema, a amada inatingível. Devido a este amor platônico, o sofrimento
amoroso era constantemente descrito, pois, para o amado, a mulher era tão
idealizada que o amor era impossível. Já a Cantiga de Amigo retratava o amor de
uma mulher pelo seu “amigo”, a saudade e a distância por motivos de guerras. O
eu-lírico era feminino, mas quem escrevia era um trovador. Esta cantiga tinha
um tom mais confessional, ou seja, a mulher se dirigia sempre a Deus, à mãe, a
uma irmã ou amiga. O linguajar era mais simples que a primeira. Portanto, ambas
retratavam a manifestação dos sentimentos, sendo também classificadas como
cantigas líricas” – relatava empolgado com sua
explicação.
Eu me pegava pensando como deveria ser sofrer por amor
na Idade Média. As maiores informações que nós temos sobre o período, vemos em filmes
e nos livros de história. Nesse momento, me lembrava dos meus professores Ivan
e Martha, História e Literatura, respectivamente. Minha avó trouxe um lanchinho
para nós, mas mesmo assim meu tio não quis parar e acrescentou:
“Falta pouco
para acabar menino. Chegamos agora nas cantigas satíricas, aquelas que de uma
maneira, direta ou indireta, faziam críticas sociais. Era uma modalidade de
poesia da época que era cantada por jograis (trovadores que não eram da
nobreza). Nas cantigas satíricas eram permitidas cantar coisas que em outras
situações não poderiam. Essas produções eram divididas em cantigas de maldizer
e escárnio, que ao contrário das líricas, a diferença entre elas era quase
imperceptível. Nas Cantigas de Maldizer a crítica era bem direta, falava-se o
nome de quem era criticado e o linguajar era bem irônico. Já na Cantiga de
Escárnio, as críticas eram indiretas, o linguajar mais sutil e o nome do
criticado não era dito”.
E para terminar de fato, ele completou:
“Quer ler umas
cantigas do período trovadoresco? Para isto, basta procurar algum Cancioneiro
(coletâneas de cantigas com diversos autores), os mais conhecidos são: da
Ajuda, da Vaticana e da Biblioteca Nacional. Não deixando de falar que os
principais autores são: Paio Soares de Taveirós, Martim Codax, Ricardo Coração
de Leão, entre outros”.
Ele terminou toda a explicação. O café que minha avó
havia trazido estava quentinho e cheirava como ninguém. Meu tio fechou o livro
e me convidou a lanchar com ele e assim terminou o nosso primeiro encontro
sobre literatura.
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