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sábado, 14 de março de 2020

Velha praga – um século depois


Em 1914, Monteiro Lobato (1882-1948) publicou um pequeno texto no jornal O ESTADO DE SÃO PAULO que o lançou ao estrelato, “Velha praga”. À época, encontrava-se no início de sua vida de fazendeiro (herança dos avós) e causava-lhe incômodo a prática de se realizar queimada da vegetação no preparo do solo para o plantio de lavouras. A virulência do texto é dirigida ao caboclo, homem da roça, geralmente um agregado do grande latifundiário, analfabeto e sem nenhum apoio institucional. Furioso, Lobato compara as ações do matuto paulista ao fogo germânico que assolava a Europa, durante a primeira guerra mundial. Além desta aproximação, acrescentou a de o caboclo ser tal qual um parasita, um piolho da terra. É nesse escrito que surge o Jeca, símbolo do homem brasileiro atrasado, ignorante e preguiçoso.

Entretanto, quatro anos mais tarde, o futuro criador do sítio do pica-pau amarelo, aproveitando-se das lições de Arthur Neiva (1880-1943), Belisário Pena (1868-1939) e de outros sanitaristas brasileiros, reformula totalmente sua concepção a respeito do caboclo brasileiro, ao penitenciar-se no prefácio da quarta edição de Urupês (1918): “Eu ignorava que eras assim, meu caro Jeca, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte."

A partir daí, não ficou apenas na criação de personagens fictícias de obras fundantes da literatura brasileira para crianças e jovens, O poço do Visconde, Gramática da Emília e A chave do tamanho como representação da sua convicção sobre a relevância do conhecimento científico, social, artístico e cultural. Ele lançou campanhas pelo saneamento básico, fez denúncias das mazelas sociais a que estava submetida as pessoas pobres e expôs a relação entre as questões sanitária e econômica: "Só a alta crescente do índice de saúde coletiva trará a solução do problema econômico.” E ainda foi um defensor entusiasmado do trabalho pioneiro de Manguinhos: "Só de lá que tem vindo e só de lá há de vir a verdade que salva e vence..."

Com sua visão abrangente dos problemas sanitários e econômicos do país, não se limitou apenas aos clamores dirigidos às classes dirigentes, mas buscou uma forma de alertar e educar a população, o povo, a vítima principal da falta de saneamento. É nesse contexto que escreve Jeca Tatu – a ressurreição, ou mais conhecido como Jeca Tatuzinho. Então, o Jeca, tido e visto como atrasado, ignorante e preguiçoso, descobria que sofria de amarelão. Com apoio e esclarecimento, o caboclo reconhece o valor da “Nhá Ciência”, se trata, se instrui e se torna um rico e esclarecido cidadão.

É certo, também, que ao transformar sua personagem — de pessoa miserável em todos os aspectos a homem sadio, esclarecido e bem sucedido graças ao conhecimento e aceitação dos avanços da ciência —, Lobato também foi acusado de eugenia e de se submeter à “ditadura da ciência”.

De qualquer modo, decorrido um século após o nascimento do Jeca Tatu e de sua transformação, ainda somos assombrados por velhas pragas, como a desconfiança infundada nos estudos e experiências científicas, na indiferença diante de informações ou esclarecimentos sobre procedimentos profiláticos e, sobretudo, em teorias conspiratórias.

Ainda perduram, como almas penadas, jeca tatus contaminados e infestados por parasitas e piolhos extremamente letais como o preconceito, o atraso, a ignorância e a preguiça, vetores do atraso mental e social.


José Batista de Sales

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