Silêncio era a coisa de que aquele rei mais gostava. E
de que, a cada dia, mais parecia gostar. Qualquer ruído, dizia, era faca em
seus ouvidos.
Por isso, muito jovem ainda, mandou construir
altíssimos muros ao redor do castelo. E logo, não satisfeito, ordenou que por
cima dos muros, e por cima das torres, por cima dos telhados e dos jardins,
passasse imensa redoma de vidro.
Agora sim, nenhum som entrava no castelo. O mundo
podia gritar lá fora, que dentro nada se ouviria. E mesmo a tempestade fez-se
muda, sem que rolar de trovão ou correr de vento perturbassem a serenidade das
sedas.
— Ouçam que preciosidade — dizia o rei. E toda a corte
se calava ouvindo embevecidamente coisa alguma.
Mas se os sons não podiam entrar, verdade é que também
não podiam sair. Qualquer palavra dita, qualquer espirro, soluço, canto, ficava
vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe fossem de valia fresta de janela ou
porta esquecida aberta. Pois se ainda era possível escapar às paredes, nada os
libertava da redoma.
Aos poucos, tempo passando sem que ninguém lhe ouvisse
os passos, palavras foram se acumulando pelos cantos, frases serpentearam na
superfície dos móveis, interjeições salpicaram as tapeçarias, um miado de gato
arranhou os corredores.
E tudo teria continuado assim, se um dia, no exato
momento em que sua majestade recebia um embaixador estrangeiro, não
atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de cozinheiro que,
sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixador depenar, bem depressa, uma
galinha.
Mais do que os ouvidos, a frase feriu o orgulho do
rei. Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e
para sempre trancados no mais profundo calabouço.
Durante dias os cortesãos empenharam-se naquele novo
esporte que os levava a sacudir cortinas e a rastejar sob os móveis. A audição
certeira abatia exclamações em pleno voo, algemava rimas, desentocava
cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento de acentos. Um marquês de
monóculo fez montinhos de monossílabos. E houve até quem garantisse ter
apanhado entre os dedos o delicado não de uma donzela. Enfim, divertiram-se
tanto, tão entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a
Temporada Anual de Caça à Palavra.
De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de
seus sons, enchia-se o calabouço de conversas. A tal ponto que momento chegou
em que ali não cabia mais sequer o quase silêncio de uma vírgula. E o Mordomo
Real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para aposentos
esquecidos do primeiro andar.
Foi, portanto por acaso que o rei passou frente a um
desses cômodos. E passando ouviu um murmúrio, rasgo de conversa. Pronto a
reclamar, já a mão pousava na maçaneta, quando o calor daquela voz o reteve. E
inclinado à fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com
que um jovem, de joelhos talvez, derramava sua paixão aos pés da amada.
A lembrança daquelas palavras pareceu voltar ao rei de
muito longe, atravessando o tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma
ele reconheceu com surpresa sua própria voz, sua jovem paixão. Era sua aquela
conversa de amor há tantos anos trancada. Fio da longa meada do passado, vinha
agora envolvê-lo, religá-lo a si mesmo, exigindo sair de calabouços.
— Que se abram as portas! — gritou comovido, pela
primeira vez gostando do seu grito, ele que sempre havia falado tão baixo. E
escancarou os batentes à sua frente.
— Que se derrube a redoma! — lançou então o rei com
todo o poder de seus pulmões. — Que se abatam os muros!
E desta vez vai o grito por entre o estilhaçar,
subindo, planando, pássaro-grito que no azul se afasta, trazendo atrás de si em
revoada frases, cantigas, epístolas, ditados, sonetos, epopeias, discursos e
recados, e ao longe — maritacas — um bando de risadas. Sons que no espaço se
espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade se
vão.
["Palavras aladas", Marina Colasanti]
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