Cidade do México — Foi numa terça-feira de 1965.
Gabriel García Márquez tinha acabado de voltar de um fim de semana em Acapulco
(México) com sua mulher e seus dois filhos quando, fulminado por um “cataclismo
da alma”, sentou-se diante da máquina de escrever e, como ele mesmo se
recordaria anos mais tarde, não se levantou até o início de 1967. Naqueles 18
meses, todos os dias, das nove da manhã às três da tarde, o escritor colombiano
gestou Cem anos de solidão.
Muito já foi escrito sobre o ambiente mexicano em que
nasceu sua obra máxima, sobre sua obsessão criativa, suas dificuldades
econômicas, o apoio constante dos amigos. Mas muito pouco é sabido sobre a
construção de Cem anos de solidão. As chaves de sua formação material, a
engenharia sobre a qual o escritor edificou o universo de Macondo, continuam
entre sombras. E esse mistério não foi casual. Quando recebeu o primeiro
exemplar impresso, em junho de 1967, o próprio autor rasgou o original para que
“ninguém pudesse descobrir os truques ou a carpintaria secreta”. Pouquíssimos
documentos se salvaram daquela destruição histórica. Um deles, possivelmente o
mais importante, foi a primeira cópia das provas de impressão. Sobre elas,
García Márquez anotou de seu próprio punho 1.026 correções, deixando à mostra
modificações e inflexões de enorme interesse.
A ourivesaria de ‘Cem anos de solidão’
Esses papéis, aos quais o El País teve acesso,
seguiram uma trajetória acidentada. O escritor os deu de presente ao cineasta
exilado Luiz Alcoriza e sua esposa, Janet. Depois da morte dos dois, foram
postos em leilão duas vezes, sem encontrar comprador. Agora, esquecidos
novamente, procuram uma instituição que os receba. “Prefiro que estejam em uma
biblioteca ou um museu que comigo”, diz o mexicano Héctor Delgado, herdeiro dos
Alcoriza.
As provas de impressão, da editora Sudamericana, somam
181 folhas duplas, numeradas à mão, com anotações do autor feitas com caneta
esferográfica ou caneta marca-texto. Um olhar sobre essas anotações revela as
minúcias artísticas do trabalho de García Márquez. Nelas, o autor assinala os
inícios de capítulo, reordena parágrafos, suprime e acrescenta frases,
substitui ou corrige mais de 150 palavras e, em muitas ocasiões, chama a
atenção para erros. Nesse exercício fica evidente a exigência exaustiva do autor
consigo mesmo. As modificações não visam apenas purificar o texto ou aclarar a
profusão de nomes dos Buendía, mas também aprofundam seus complexos jogos de
linguagem. Às vezes tratam-se de sutilezas: de “amedrontar” passa-se para
“intimidar”, de “obstruir”, para “cegar”, ou de “completar” para
“complementar”. Mas em outras a mão do escritor vai muito mais longe: as
borboletas de tornam “amarelas”, as sanguessugas são arrancadas “queimando-as”
com brasas, o troglodita é convertido em um “tosco”, as crianças andam como
“sorumbáticas”, a Ópera Magna se transforma em “alquimia”, um São José de gesso
descobre um interior “abarrotado de moedas de ouro” e a descarga do Mauser
“desbarata”, em vez de “desarticular”, um crânio.
A ourivesaria de ‘Cem anos de solidão’
Alguns personagens ganham nuances novas com as
observações adicionais. Amaranta, por exemplo, “finge sensação de desgosto”
quando ouve falar em casamento, enquanto Aureliano vê sua “antiga piedade”
transformar-se em “animadversão virulenta”. São alterações constantes. Uma
chuva fina de melhorias que, sem gerar mudanças de fundo nem reviravoltas do
argumento, descobrem a dimensão microscópica e tenaz de um texto de cuja
grandeza o autor tinha consciência.
Possivelmente por isso, García Márquez nunca devolveu
as provas de impressão à editora, mas enviou as correções à parte. E, longe de
destruir o documento, como teria sido de se esperar, o converteu em um
monumento à amizade: o deu de presente e dedicou ao diretor de cinema Luis
Alcoriza e sua esposa, a atriz austríaca Janet Riesenfeld: “Para Luiz e Janet,
uma dedicatória repetida, mas que é a única verdadeira: do amigo que mais os
ama neste mundo. Gabo. 1967.”
Uma das anotações em ‘Cem anos de solidão’, com a dedicatória a Luis
Radicado no México e muito próxima a Luis Buñuel, o
casal fazia parte do círculo íntimo do escritor colombiano, aquele que o tinha
apoiado nas épocas mais negras e com quem, nos bons tempos, ele tinha festejado
a alegria de viver. O próprio autor o explicou anos mais tarde em um artigo no
El País: “Quando a editora me mandou a primeira cópia das provas de impressão,
eu as levei já corrigidas a uma festa na casa dos Alcoriza, sobretudo para
matar a curiosidade insaciável do convidado de honra, dom Luis Buñuel, que
teceu todo tipo de especulações magistrais sobre a arte de corrigir, não para
melhorar, mas para esconder. Vi Alcoriza tão fascinado com a conversa que tomei
a boa decisão de lhe dedicar as provas.”
O casal guardou as páginas como um objeto sagrado.
Dezoito anos mais tarde, quando Cem anos de solidão já era um totem, García
Márquez voltou a encontrar as provas na casa dos Alcoriza: “Janet as tirou do
baú e as exibiu na sala, até que lhes disseram, como brincadeira, que com isso
eles podiam deixar de ser pobres. Alcoriza então fez uma cena muito sua,
golpeando-se no peito com os dois punhos e gritando com seu vozeirão bem
empostado e sua determinação carpetovetônica: ‘Pois eu prefiro morrer a vender
essa joia dedicada por um amigo’.” García Márquez respondeu escrevendo debaixo
da dedicatória, com a mesma caneta que da primeira vez: “Confirmado. Gabo.
1985.”
Luiz Alcoriza, o exilado, morreu em 1992 em
Cuernavaca. Sua esposa faleceu seis anos depois. As provas de impressão ficaram
com seu herdeiro, o engenheiro e produtor Héctor Delgado, o homem que cuidou
deles em seus últimos dias. Em 2001, com a concordância do Prêmio Nobel, as
provas foram colocadas em leilão em Barcelona por um milhão de dólares (três
milhões de reais), sem encontrar comprador. Um ano depois, tampouco foi encontrado
comprador com a Christie’s. Agora, um ano após a morte de García Márquez
(2015), o herdeiro, que está com 73 anos, procura quem queira adquirir as
provas. A Universidade do Texas, que comprou o arquivo do escritor, se
interessou, mas pouco mais que isso. Quase meio século após sua gestação, um
dos poucos documentos que se salvaram da gênese de Cem anos de solidão continua
a buscar um dono.
Fonte: El País Brasil
Gabriel García Márquez trabalhando em ‘Cem anos de solidão’.
foto
Guillermo Ángulo
Gabriel García Márquez revela os segredos sobre os manuscritos de Cem
anos de solidão, que vão ser leiloados em Barcelona por mais de meio milhão de
dólares, durante a feira do livro, em 21 de setembro de 2001
A ODISSEIA LITERÁRIA DE UM MANUSCRITO
– por Gabriel García Marquez
No início de agosto de 1966, eu e Mercedes fomos aos
correios de San Angel, na cidade do México, para enviarmos os originais de Cem
anos de solidão a Buenos Aires. Era um pacote de quinhentas e noventa folhas de
papel comum, em espaço duplo, escritas à máquina, e endereçadas ao diretor
literário da Editora Sudamericana, Francisco (Paco) Porrúa. O empregado dos
correios colocou o pacote na balança, fez seus cálculos de cabeça, e disse:
– São oitenta e dois pesos.
Mercedes contou os trocados e os centavos soltos que
carregava, e me enfrentou com a realidade:
– Só temos cinquenta e três.
Após tantos anos, estávamos tão acostumados com estes
tropeços no cotidiano, que nem mesmo tentamos encontrar uma solução. Abrimos o
pacote, dividindo-o em duas partes iguais, para enviar uma das metades a Buenos
Aires, sem sabermos ao menos o que faríamos para conseguir o dinheiro para
enviar o resto. Eram seis da tarde de sexta-feira e até segunda-feira os
correios não voltariam a abrir, de modo que teríamos todo o fim de semana para
imaginar algum meio de conseguir o dinheiro que faltava.
Nos faltavam poucos amigos a quem pudéssemos recorrer,
e nossas melhores propriedades dormiam o sono dos justos nas casas de penhor do
Monte da Piedade. Tudo que possuíamos era a máquina de escrever portátil, com a
qual eu havia escrito a novela em mais de um ano de seis horas diárias, porém
não podíamos empenha-la, porque nos faltaria o que comer. Depois de uma busca
cuidadosa pela casa inteira, encontramos outras duas coisas empenháveis: o
aquecedor do meu estúdio, que já devia valer muito pouco, e uma batedeira que
ganhamos de presente de Soledad Mendonza, quando nos casamos em Caracas. Ainda
possuíamos as alianças que somente usamos para as bodas, e que nunca havíamos
nos atrevido a empenhar, porque acreditávamos em mau agouro. Desta vez,
Mercedes decidiu levar-las ao penhor, num caso de emergência.
Na manhã de segunda-feira fomos ao Monte da Piedade
mais próximo, onde já éramos clientes conhecidos, e nos emprestaram – sim as
alianças – um pouco mais do que faltava. Somente quando empacotávamos o resto
Do romance, é que percebemos que havíamos enviado ao contrário: as páginas
finais antes das iniciais. Porém, Mercedes não achou estranho, porque sempre
acreditara no destino.
– A única coisa que falta agora – disse – é que o
romance seja ruim.
Aquela frase seria a culminação perfeita dos dezoito
meses que passamos batalhando juntos para o término do livro, no qual fundavam
todas minhas esperanças. Até então, eu havia publicado quatro em sete anos,
pelos quais havia recebido muito pouco ou quase nada. Salvo pelo romance ‘A
hora má’ que obteve o prêmio de três mil dólares no concurso da Esso
Colombiana, e me bastaram para o nascimento de Gonzalo, nosso segundo filho, e
para comprar nosso primeiro automóvel.
Vivíamos numa casa de classe média, nas colinas de San
Angel Inn, propriedade do major oficial da prefeitura, licenciado Luis
Coudurrier, que entre outros afazeres, ocupava-se pessoalmente do aluguel da
casa. Rodrigo, de seis anos, e Gonzalo de três, tinham um belo jardim para
brincar, enquanto não estavam na escola. Eu havia sido coordenador geral das
revistas ‘Sucessos’ e ‘A Família’, onde cumpri por ótimo saldo, o compromisso
de não escrever nem uma só letra em dois anos. Eu e Carlos Fuentes havíamos
adaptado para o cinema ‘O galo de ouro’, um romance original de Juan Rulfo que
foi filmado por Roberto Gavaldón. Também com Carlos Fuentes, eu havia
trabalhado na versão final de ‘Pedro Páramo’, para o diretor Carlos Velo. Havia
escrito o roteiro de ‘Tempo de morrer’, o primeiro longa-metragem de Arturo
Ripstein, e o de ‘Presságio’, com Luis Alcoriza. Nas poucas horas que me
sobravam, eu fazia uma boa soma de tarefas ocasionais – textos publicitários,
comerciais de televisão, alguma letra de canção – que me davam sustento, o
suficiente para viver sem pressas, mas não para escrever contos e romances.
Gabriel García Márquez. Cien Años de Soledad.
Ediciones Sudamericana,
1967
Entretanto, fazia muito tempo que eu era atormentado
pela ideia de um romance desmesurado, não somente distinto de tudo que já havia
sido escrito antes, mas como também de tudo que já se havia lido até então. Era
uma espécie de terror sem origem. Em meados de 1965, eu ia com Mercedes e meus
dois filhos para um fim de semana em Acapulco, quando me senti fulminado por um
cataclismo na alma, tão intenso e arrasador, que apenas consegui desviar de uma
vaca que atravessava a estrada. Rodrigo deu um grito de felicidade:
– Eu também, quando crescer, vou matar vacas pela
estrada.
Não tive um minuto de sossego na praia. Na quarta-feira,
quando regressamos ao México, me sentei em frente da máquina de escrever, para
datilografar uma frase inicial que já não podia suportar dentro de mim: ‘Muitos
anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía
havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o
gelo’. Desde então, não me interrompi um só dia como se eu estivesse numa
espécie de sonho avassalador, até a conclusão, aonde Macondo vai pra casa do
caralho.
Nos primeiros meses, conservei minhas melhores fontes
de renda, porém me faltava cada vez mais tempo para escrever tanto quanto
queria. Cheguei a trabalhar até altas horas da noite, para cumprir com meus
compromissos pendentes, até que a vida se tornou impossível. Pouco a pouco fui
abandonando tudo, até que a realidade insubornável me obrigou a escolher sem
rodeios, entre escrever ou morrer.
Não tive dúvidas, porque Mercedes – mais que nunca –
assumiu o encargo de atormentar todos nossos amigos. Conseguiu créditos sem
esperanças com a mercearia do bairro, e com o açougueiro da esquina. Desde
nossas primeiras angústias, havíamos resistido a tentação de não endividarmos
em empréstimos nas lojas de penhores, ou casas de ágio, até quando amarramos o
coração, e fizemos nossa primeira incursão ao Monte da Piedade. Depois dos
alívios através das miudezas que empenhávamos, tivemos que apelar para as joias
de família que Mercedes guardava ao longo dos anos. O joalheiro do penhor
examinou-as com um rigor cirúrgico, pesou e revisou com seu olho mágico os
diamantes dos brincos, as esmeraldas de um colar, os rubis dos anéis, e por
final nos devolveu peça por peça:
– Isto é puro vidro!
Nunca tivemos humor, nem tempo, para averiguar quando
foram trocadas as pedras preciosas das joias familiares, e substituídas por
fundos de garrafa, porque o touro negro da miséria já nos cercava por todos os
lados. Parece até mentira, mas um dos maiores problemas enfrentado naquela
época, era as resmas de papéis que usava na máquina de escrever. Eu tinha o
péssimo hábito de acreditar que os erros de datilografia, de linguagem ou de
gramática, eram na realidade erros de criação, e cada vez que descobria algum
erro, rasgava o papel e recomeçava tudo outra vez. Mercedes gastava meio
orçamento doméstico com pirâmides de resmas de papel que não duravam uma
semana. Esta era, quem sabe, uma das minhas razões para não usar papel carbono.
Problemas simples como esse, chegaram a ser tão
desesperadores, que não tivemos ânimo em criar a solução final: empenhar o
automóvel recém adquirido, sem suspeitar que o remédio sairia pior que a
encomenda, porque aliviamos as dívidas atrasadas, mas na hora de pagar as
dívidas mensais, nos encontramos pendurados no abismo. Por sorte, nosso amigo
de velha e longa data, Carlos Medina, que não só se prontificou em pagar nossas
dívidas, como o fez por vários meses, até que conseguimos resgatar o automóvel.
Somente alguns anos atrás, descobrimos que ele também teve que empenhar um de
seus automóveis, para pagar nossas dívidas.
Os melhores amigos se dividiam em turnos para
visitar-nos todas as noites. Apareciam de surpresa, e com pretextos de revistas
e livros, nos levando cestas básicas, que pareciam casuais. Carmen e Álvaro
Mutis, os mais assíduos, assediavam-me para que lhes contasse o capítulo em
curso do romance. Eu lhes presenteava com respostas inventadas no último
minuto, por minha superstição de que contar o que andava escrevendo, espantava
os duendes.
Carlos Fuentes, apesar de seu terror de voar, ia e
vinha por meio mundo. Seus regressos eram festas perpétuas eternizadas nas
conversas sobre nossos respectivos livros em andamento, como se fossem um único
exemplar. Maria Luiza Elío, com suas vertigens clarividentes, e Jomi García
Ascot, seu esposo, paralisado por seu estupor poético, escutavam meus relatos
improvisados como sinais cifrados da Divina Providência. Assim que não tive
dúvidas, desde suas primeiras visitas, de dedicar-lhes o livro. Além do mais,
me dei conta de que estas relações de entusiasmo com os amigos me iluminavam
pelos desfiladeiros de minha novela cotidiana.
Gabriel García Márquez. Cien Años de Soledad.
Ediciones Sudamericana
Mercedes não voltou a falar sobre os créditos
incomensuráveis, até março de 1966 – um ano após o início do livro – quando
devíamos três meses de aluguel. Ela estava conversando pelo telefone, com o
senhorio, como fazia com frequência para acalmar-lo em sua espera, quando tapou
o telefone com a mão e me perguntou quando pensava terminar o livro.
Pelo ritmo que havia adquirido em um ano de prática,
calculei que me faltavam seis meses. Mercedes fez suas contas astrais, e
respondeu sem pestanejar ao senhorio impaciente:
– Podemos pagar tudo junto dentro de seis meses.
– Perdão, minha senhora – disse o senhorio assombrado
-. A senhora sabe que em seis meses será um valor enorme?
– Claro que sei – disse Mercedes, impassível – mas
tenho certeza que teremos todo seu dinheiro. Fique tranquilo.
O bem licenciado, um dos homens mais elegantes e
pacientes que havíamos conhecido, tampouco levantou a voz para contestar:
“Muito bem minha senhora, sua palavra me basta”. Iniciando suas contas mortais:
– Vou esperar até o sete de setembro.
Equivocou-se: não foi ao sete, e sim ao quatro, com o
primeiro cheque inesperado que recebemos pelos direitos da primeira edição.
Nos meses seguintes, vivíamos em pleno delírio. O
grupo de amigos mais próximos, que conheciam bem a situação, nos visitava com
mais frequência que antes, sempre carregados de milagres para seguirem vivendo.
Luis Alcoriza e sua esposa austríaca, Janet Dunning, não eram frequentes em
suas visitas, mas concediam festanças históricas, com seus amigos intelectuais
e as mulheres mais lindas do cinema. Muitas vezes eram simples pretextos para
nos encontrar. Alcoriza era o único espanhol que podia fazer fora da Espanha,
uma ‘tortilla’ igual à de Valência, e ela por sua vez, era capaz de entusiasmar
a todos com suas artes de bailarina clássica. Os García Riera, loucos por
cinema, nos arrastavam para sua casa aos domingos, e nos infundiam a demência
feliz, para enfrentarmos a semana seguinte.
O romance, até então, estava tão avançado que me dava
ao luxo de seguir enriquecendo o argumento falso que usava nas visitas dos
amigos. Muitas vezes escutei, os mesmo relatos falsos, repetidas vezes e em
tantas bocas diferentes, que me surpreendia com a velocidade com que cresciam e
se ramificavam de boca em boca.
Ao final de agosto, de um dia para o outro, me
apareceu dobrando a esquina, o final do romance. Eu não usava papel carbono e
não existiam fotocopiadoras em cada esquina, de modo que era um original
apenas, de umas duas mil folhas. Foi um manjar dos deuses para Esperanza Araiza,
a inesquecível Pera, uma das boas mecanógrafas de Manuel Barbachano Ponce em
seu castelo de Drácula para poetas e cineastas na colônia Cuauhtérmoc. Em suas
horas livres, durante vários anos, Pera havia passado a limpo grandes obras de
escritores mexicanos. Entre elas, ‘A região mais transparente’ de Carlos
Fuentes; ‘Pedro Páramo’ de Juan Rulfo, e vários roteiros originais dos filmes
de Luis Buñuel. Quando lhe propus que passasse a limpo à versão final do
romance, o próprio era um garrancho, recheado de remendos, primeiro com tinta
preta, e depois em tinta vermelha para evitar confusões. Mas tudo isso não era
nada para uma mulher acostumada a tudo numa gaiola de loucos – Cuauhtérmoc. Não
só aceitou o garrancho pela curiosidade de lê-lo, com também, porque paguei o
que podia na hora, e o resto quando recebi os direitos autorais.
Pera copiava um capítulo por semana, enquanto eu
corrigia o seguinte, com todo tipo de emendas, com tintas de cores diferentes
para evitar confusões, e não para encurtar o romance, mas para levar ao seu
melhor entendimento, e aumentar seu grau de densidade. Até que o romance ficou
reduzido, até a metade do material original.
Anos depois, Pera me confessou que um dia, enquanto
carregava consigo a única cópia do terceiro capítulo corrigido por mim,
resvalou-se ao descer de um ônibus, com um aguaceiro diluvial, e deixou cair às
folhas flutuando nas poças d’água na rua. Ela juntou todas as folhas ensopadas
e quase ilegíveis, com a ajuda dos outros transeuntes, secou-as em casa utilizando
uma tábua de passar roupa. Minha maior emoção foi num sábado, quando não pude
preparar as correções do capítulo seguinte, e chamei Pera por telefone, a fim
de avisar-la do imprevisto, remarcando para segunda-feira. Ao decorrer de um
longo titubeio, Pera se atreveu a perguntar-me se Aureliano Buendía dormiria
por fim com Remédios Moscote. Quando lhe respondi que sim, soltou um suspiro de
alívio.
– Bendito seja Deus – exclamou – se não tivesse me
contado, não sei como faria pra dormir até segunda-feira.
Nunca pude descobrir, como foi que nesses dias, recebi
uma carta intempestiva de Paco Porrúa, – de quem nunca havia ouvido falar – na
qual me solicitava em nome da Editoria Sudamericana, os direitos de meus
livros, que já conhecia muito bem das edições anteriores. Partiu-me o coração,
porque todos estavam em diferente editoras com contratos em longo prazo, e
seria muito difícil liberar-los. O único consolo que me ocorreu, foi
responder-lhe que estava a ponto de terminar um romance bastante extenso, e ainda
não havia fechado contrato algum, e oferecendo-me a enviar-lhe a primeira cópia
terminada, sem compromisso algum.
Paco Purrúa aceitou por telegrama, e enviou-me pelo
correio um cheque de quinhentos dólares como adiantamento. Justo os nove meses
de aluguel que havíamos nos comprometido a saldar por aqueles dias, e não
encontrávamos como – por um cálculo errado de minha parte.
De todos os modos, a transcrição limpa de Pera, com
três cópias de em papel carbono, esteve pronta em duas dou três semanas mais…
Álvaro Mutis foi o primeiro leitor da cópia definitiva, ainda antes de ser
enviada à prensa. Desapareceu dois dias, e ao fim do terceiro dia, me chamou
com uma de suas fúrias cordiais, ao descobrir que o romance, não era na
realidade o que eu contava para entreter os amigos, e o que ele repetia por
todo mundo.
– Você, me fez passar por palhaço! – gritou-me – Este
livro não tem nada a ver com que nos contava.
Logo, morrendo de rir me dizia:
– Menos mal, que este é muito melhor.
Não me lembro se naquele período já possuía um título
para o romance, nem aonde, nem quando, nem como me ocorreu. Ninguém de meus
amigos daquela época conseguiu recordar-se, ou menos lembrar. Haverá algum
historiador imaginativo, que me fará o favor de inventar este dado?
A cópia que Álvaro Mutis leu, foi a que enviamos em
duas partes pelo correio, e outra foi a que ele mesmo levou, numa de suas
viagens a Buenos Aires. A terceira circulou no México, entre os amigos que nos
acompanharam nas vacas magras. A quarta foi a que mandei a Barranquilla, para
ser lida por três protagonistas do romance: Alfonso Fuenmayor, Germán Vargas e
Álvaro Cepeda, cuja filha Patrícia, salvou-a como uma relíquia de família.
Quando recebemos o primeiro exemplar do livro
impresso, em junho de 1967, eu e Mercedes rasgamos todos os originais
corrigidos a mão com tintas pretas e vermelhas, os quais Pêra utilizou para
fazer as quatro cópias. Não nos ocorreu nem ao menos imaginar que aquele
poderia ser o mais apreciável de todos, com o terceiro capítulo ilegível pela
chuva e pelos erros do ferro de passar. Minha decisão não foi nem um pouco
inocente, nem modesta, senão que rompemos a cópia para que ninguém pudesse
descobrir os truques de minha carpintaria secreta. Entretanto, em alguma parte
do mundo, podem existir outras cópias, e em especial as duas enviadas para a
Editora Sudamericana para a primeira edição. Sempre pensei que Paco Porrúa –
com todo direito – teria guardado as cópias como relíquia. Mas ele sempre se
negou do fato, e sua palavra é como ouro.
Gabriel García Marquez
Quando a editora me enviou as primeiras provas da
prensa, levei-as com suas devidas correções numa festa na casa dos Alcoriza,
especialmente para sanar a curiosidade insaciável do convidado de honra, don
Luis Buñuel, que teceu todo tipo de especulação magistral sobre a arte de
corrigir, não para melhorar, e sim para esconder. Deparei-me com um Alcoriza,
tão fascinado pela conversa, que tomei a decisão de dedicar-lhe as provas:
‘Para Luis e Janet, uma dedicatória repetida, mas que é a única verdadeira: “do
amigo que mais lhes quer neste mundo”’. Junto com a assinatura escrevi a data:
1967. A menção sobre a assinatura, e as aspas na frase final, era referente a
um livro que presenteara aos Alcoriza anos antes. Vinte e oito anos depois,
quando ‘Cem anos de solidão’, já estava consolidado, alguém se lembrou daquele
episódio na mesma casa, e opinou que as provas com a dedicatória deviam valer
uma fortuna. Janet buscou as provas do fundo de um baú, e as exibiu pela sala,
até que lhe disseram em tom de brincadeira, que com estas provas, poderiam
tornar-se ricos e sair da miséria. Alcoriza declamou um discurso próprio e
particular, dando golpes de punhos cerrados contra os peitos e gritando com
toda a capacidade de seus pulmões:
– Pois, eu prefiro morrer antes de vender esta joia
dedicada por um amigo!
Entre a justa salva de palmas e ovação que Alcoriza
recebia, recolhi a mesma prova, e escrevi debaixo da dedicatória de dezoito
anos atrás: ‘Confirmado, 1885’. E voltei a assinar uma outra vez: ‘Gabo’. Este
é o documento de 180 páginas, com 1.026 correções de meu punho e letra, que
será leiloado no dia 21 de setembro deste mesmo ano, durante a feira do livro
de Barcelona, sem participação nem benefício algum de minha parte.
Que não existam dúvidas que esta é uma operação
legítima. O que é desconcertante a algumas pessoas, é que as cópias originais
estavam em meu poder, e eu devia tê-las devolvido a Buenos Aires, para que
introduzissem minhas correções finais. A verdade é que nunca as devolvi
corrigidas em punho e letra, somente mandei pelo correio a lista das correções
copiadas à máquina, linha por linha, pelo temor que o manuscrito se perdesse na
volta.
Luis Alcoriza morreu em 1992, aos setenta e um anos,
em seu retiro de Cuernavaca. Janet seguiu ali, e morreu seis anos depois,
reduzida a um pequeno núcleo de amigos fiéis. Entre eles, o mais fiel de todos,
Héctor Delgado, que os havia adotado como pais, e se ocupou deles nas vacas
magras da velhice. Antes de morrerem, eles o nomearam seu herdeiro legítimo por
disposição testamentária. O único que me parece injusto nesta história, é que
Luis e Janet, viveram seus últimos anos com mais de cem mil dólares guardados
ao longo do tempo no fundo do baú, simplesmente pela dignidade ibérica de não
vender o presente do amigo que mais os quis neste mundo.
Gabriel García Márquez, México, DF, 2001.
Fonte: El País | Usina das Letras
Nenhum comentário:
Postar um comentário