É possível que daqui a dez ou
quinze anos os historiadores da arte venham a caracterizar este período, entre
2016 a 2022, como o apogeu do "Tosco Brasileiro"
Por Christian
Dunker
Tosco é uma palavra que tem duas raízes semânticas: o que se apresenta
de forma natural e autêntica, mas também aquilo que é feito sem apuro ou
refinamento, algo rústico ou grosseiro. Estima-se que o termo é uma alusão aos
habitantes da Toscana, esta região da Itália onde viviam os Etruscos. Como
habitantes mais antigos da península Itálica foram considerados um povo
bárbaro, rude e relaxado (toscu).
Tosco pode ser um verbo, não um adjetivo, que traduz a ação de ver de longe,
avistar ao largo ou perceber à distância. Estamos em alinhamento com a ideia de
ver de relance, formar uma ideia rápida sem se aproximar do objeto ou sem
aprofundamento da experiência. O ato ou efeito de tosquiar parece perfeito para
a arte de transmitir grandes ideias sem detalhe, de formar juízos contundentes
sem examinar suas consequências, ou de declarar coisas que não podem ser
traduzidas em transformações reais quando vistas de perto.
É possível que daqui a dez ou quinze anos os historiadores da arte
venham a caracterizar este período, entre 2016 a 2022, como o apogeu do Tosco
Brasileiro. A expressão poderá então ser comparada ao romantismo inglês, ao
pós-modernismo americano ou ao barroco alemão, como nossa pequena contribuição
ao concerto universal das nações. A
questão filosófica que define o Tosco é: “para que serve?” Ela não é nova na
história da arte e nem da sensibilidade brasileira. No fundo ela parte de uma
indagação relevante que é questionar as formas incompreensíveis, os
funcionamentos opacos ou as linguagens segregativas que determinam a posição de
uma certa elite. Todavia, o que caracteriza o novo Tosco brasileiro é a
apropriação desta interpelação por um outro tipo de elite, que parasita a
denúncia como modo de produção de uma certa autoridade, ao mesmo tempo que
mimetiza a ética do trabalho e da produção. Esta elite entre aspas não popular,
mas emergente. Ela desdenha da cultura e da educação como meios de ascensão
social, pois descendem da antiga aristocracia, para a qual isso jamais passou
de um adereço secundário ou de um sintoma de sua incerteza identitária. Por
isso, no fundo o novo Tosco Brasileiro é o retorno do coronel de engenho
recalcado contra a impostura do síndico bem-comportado. Por isso o novo Tosco
Brasileiro é a expressão estética e filosófica de nosso choque de incivilidades.
O cristianismo tosco ignora as controvérsias históricas milenares sobre
a hermenêutica bíblica. O “Pancadão” tosco diz bem alto coisas feitas para
chocar, como corpos de cachorras latindo. A filosofia tosca de Olavo de
Carvalho nos oferece rapidamente um ponto de vista da totalidade: uma
conspiração gay-comunista apossou-se da educação e do Estado, via Foro de São
Paulo, contra ela devemos retomar os valores medievais. Tudo isso baseado na
retórica do “cu”, “bunda” e “merda”, mas sem diálogo algum com a irreverência
de um José Celso Martinez Correia.
Faz parte do Tosco Brasileiro praticar um tipo de relativismo
absolutista. Como todas as opiniões são igualmente válidas e como todos os
pontos de vista são equalizados segundo uma diferença muito simples, do tipo
esquerda ou direita, a força de minha enunciação é absoluta enquanto tal. Daí
que o método fundamental do Tosco Brasileiro é a gambiarra, termo que
originalmente refere-se à extensão irregular de uma linha de iluminação ou uma
“ligação fraudulenta”, que é de toda forma precária e feia, improvisada ou
feita conforme as circunstâncias, ao estilo arquetípico “jeitinho brasileiro”.
Percebe-se assim como o tosco é o retorno da corrupção recalcada. No teatro
gambiarra é um tipo de iluminação frontal feita para reduzir sombras
indesejadas e para que o artista não perca a concentração, por meio desse
artifício as luzes da ribalta encobrem a plateia, transformando-a em uma massa
sem rosto, a gambiarra protege o ator de sua imperícia. Na computação o
conceito de gambiarra refere-se a procedimentos que alcançam seu fim sem
elegância ou concisão nas operações. O tosco não é uma expressão popular,
republicana, no sentido da praça paulista de artes ou realmente ingênua, mas a
voz das classes médias interessadas em denunciar, de modo interpassivo [1], a
impostura das elites. Subentende-se assim que toda “elite” deve ser reconhecida
entre aspas, porque a única elite autêntica e verdadeira é a elite tosca, sem
aspas.
O traço característico do Tosco Brasileiro é aquele gesto a-mais, que
torna uma obra mediana um exagero intolerável. Por meio de uma paródia
involuntária, o artista produz um efeito de denúncia ao mesmo tempo que se
defende pela afirmação de sua irrelevância. Esta é também a fórmula ambígua do fake-news: para os crentes seduz, para
os advertidos autoironia condescendente. Esta reapropriação de materiais
conforme as circunstâncias é uma reprodutibilidade técnica jamais intuída por
Benjamin.
O Tosco Brasileiro é uma releitura nacional involuntária da estética do precário. Precário, deriva do latim
precarius, “obtido por meio de prece; concedido por mercê revogável; tomado
como empréstimo; alheio, estranho; passageiro“. Precário significa, entre outras coisas, “pouco, insuficiente,
escasso” ou “que tem pouca ou nenhuma estabilidade; incerto, contingente,
inconsistente”. Baudelaire já havia definido a modernidade estética em termos
de uma precária busca do transitório, do fugitivo, e do contingente.
Para Nicolas Bourriaud a precariedade é uma reflexão ética sobre a arte
contemporânea intimamente ligada com a definição de realidade. Também Judith
Butler tematiza vida precárias como vidas dignas de cuidado, dada sua
desfiliação e vulnerabilidade. Segundo Hal Foster nenhum conceito inclui melhor
toda a arte da década passada do que a precariedade.
No Museu Precário de Albinet (2004) Thomas Hirschhorn deslocou para a
periferia de Paris obras originais de Duchamp, Malevitch, Mondrian, Warhol,
Beuys, Le Corbusier, Léger e Dali. Abrigadas em barracos de madeira e pequenas
lojas a céu aberto, combinada com cópias e utensílios baratos na periferia
cria-se o efeito de fora de lugar, de
ambiguidade e de deslocamento imanentes a uma ética do refúgio. Em “25%” de Francesc Torres, na 55ª Bienal de
Veneza encontramos oito cidadãos ”precários” representando o vasto exército de
desempregados, jovens e velhos, homens e mulheres, de diferentes origens e
profissões cuja vida vai perdendo o valor. Ana Gallardo em “Um lugar para vivir quando seamos viejos”, no Mamba, cinco fones de ouvido pendem do teto contanto
histórias de recepcionistas, recepcionistas, telefonistas, promotoras de vendas, contrabandistas de bijuterias. Em “Materiais
de construção do pavilhão da Espanha” instalação da artista de Lara Almarcegui
o pavilhão de um edifício, construído em 1922, é ocupado com escombros de
construção triturado, pilhas de tijolos, cimento, terra e vidro.
Mas nada disso se encontrará no Tosco Brasileiro que consiste na negação
da experiência da precariedade e na recusa ao reconhecimento da precariedade
como a estética do sem lugar (estrangeiro, migrante, imigrante), do animal
(híbrido, inumano, sem lei, sem regra) e do monstro (corpo invisível e
indiscernível). Por isso historicamente a ascensão do Tosco Brasileiro é
antecedida pela repressão ostensiva das exposições como a Queermuseum, em Porto
Alegre da História das Sexualidades, no MASP e da performance sobre a nudez em
La Béte, no MAM de São Paulo. O Tosco Brasileiro é uma inversão não dialética
da estética da precariedade. Ele parasita a força da autenticidade contida na
noção de vidas desamparadas, mas o faz em nome de uma recuperação bélica da
potência. Daí que ele opere segundo uma lógica de inversões ressentidas. O
machismo como inversão não dialética do feminismo. Como se a violência
justificasse a violência. Ele substitui o que Freud chamava de chiste, com sua
elaboração de palavra e pensamento, pelo cômico, com sua lógica segregatória
baseada no gozo e no ridículo sobre a miséria do outro, como vemos em Danilo
Gentili.
Em vez do reconhecimento do desamparo (Hilflosichkeit), como condição
comum e universal tal inversão cria uma cisão entre os “cidadãos de bem”, que
merecem a proteção do Estado, e os “inimigos do povo”, que ameaçam nossas
crianças. Nesta medida o Tosco Brasileiro encontra suas raízes na retórica do
realismo socialista. Tudo que é mostrado deve possuir a potência do exemplo. Se
não tiver propensão pedagógica deve ser suprimido.
A educação presume a assimilação imitativa de mitos e heróis, não havendo
espaço nem lugar para o antimodelo, para a crítica ou para a indeterminação.
Privilegiando a simplicidade devemos escolher padrões demonstrativos acessíveis
e linguagem icônica ou geométrica. A ideia de um herói central, de tipo
paternalista, que se comunica com o povo diretamente ao modo de uma onipresença
contrasta com a imagem do trabalhador-tipo, que deve ser representado
unidimensionalmente como uma espécie de empresário de si mesmo.
A arte deve ser, sobretudo, útil ao sistema. A tese será encontrada
também no alegorismo nazista, com seu retorno aos heróis mitológicos e
guerreiros, mas também no fascismo e sua glorificação e de um estado militar e
imperial. Mas no caso do tosco nacional o sistema é representado discursivamente
pelo antissistema. A arte como campo de liberdade, com tendências distintas e
polifônicas, é redefinida como arte perigosa. Repetem-se aqui os esquemas
anti-intelectualistas de Hitler perseguindo a arte degenerada, Stalin
boicotando os construtivistas ou Fidel contra a arte pop americana. Um exemplo
de tosco internacional é o museu da independência, doado pela Coréia do Norte
para a Namíbia. Três andares majestosos, no centro de Windhook, preenchidos por
uma narrativa heroica, militarista com bonecos ilustrativos e aspiração de
modernidade. A afinidade entre o tosco e o nacionalismo realista confirma-se na
exaltação de símbolos nacionais como a bandeira, os ídolos esportivos e
olímpicos. Ele possui uma simbólica específica, marcada pelo verde e amarelo,
com imagens do alvorecer. O novo homem, no reinício da história no qual o
passado corrupto será abandonado.
Lembremos que o consumo é a gramática geral na qual a pergunta “para que
serve?” pode ser colocada. A cosmética da posse é um traço distintivo do Tosco
Brasileiro, por isso a arte é lida como um capítulo da lógica da exibição e
reconhecimento. Por exemplo, o “Gordinho do Outfit”, notabilizado no youtube pela apresentação de roupas de
marca, que imitam as simples. Tênis exageradamente caros segundo um gosto
ostensivamente duvidoso, mas que promete ao seu possuinte a constituição de um
estilo de personalidade.
Disso deduz-se que o Tosco Brasileiro envolve um uso sistemático e
comercial da sexualidade, como se pode intuir, nos primórdios do movimento, no
Funk do Lepo-Lepo ou no prototípico Bonde do Tigrão. A fórmula encontrará seu
apogeu nos vídeos de Joyce Hasselman, onde a denúncia da violência criminal
assume uma inesperada conotação pornográfica. Assim como na estética
urinofílica da postagem presidencial sobre o Golden Shower trata-se de por meio
da denúncia e da autenticidade rústica da crítica, regressar aos verdadeiros
valores nacionais do carnaval brasileiro. O Tosco Brasileiro é sobretudo uma
estética viril fracassada, no interior da qual a partilha de um chocolate
torna-se alegoria homossexual. Educar pelas armas e cristianizar pela violência
são estratégias pelas quais o tosco explora o sentimento ontológico de
insegurança. A impermanência dos projetos retoma a efemeridade das vanguardas
dos anos 1960. O discurso errático recupera a escrita automática dos
surrealistas.
Muito se discute, na autoria desta nova era, inaugurada em 2018, qual
seria a serventia de cursos universitários de Filosofia ou Sociologia, assim
como a utilidade de museus e demais repositórios culturais: “nunca ganhamos um
Nobel e sofremos com a hipertrofia crônica de ciências humanas”. Asserções que
carregam o típico traço de exagero e imprecisão que já vimos ser a tônica deste
estilo. Em nome do dinheiro do contribuinte e da luta contra a corrupção não se
está dizendo que a filosofia e as artes são inúteis, apenas que elas são um
luxo que não cabe ao Estado patrocinar. Os ricos e privilegiados bem podem
continuar, por si mesmos, sua histórica dedicação a estes prazeres
contemplativos. Os pobres precisam de comida e de escolas, eles demandam
necessidades materiais atendidas e empregos restaurados. Mas quem fala em nome
dos pobres? Voltamos aqui às afinidades insuspeitas entre o Tosco Brasileiro e
o realismo socialista do pós-guerra.
Seria um erro assentir que as proposições fundamentais do tosco são antifilosóficas
ou contraculturais. Afirmar que o nazismo é de esquerda, armar a população como
forma de diminuir a violência ou reescrever a história da tortura no Brasil e
do Estatuto da Criança e do Adolescente envolvem uma espécie de excesso de
filosofia. Filosofia sem método, História sem rigor, Sociologia sem crítica,
Psicologia sem ética, Antropologia sem diversidade. Tudo isso já está disponível intuitiva e
gratuitamente para os que vieram de uma família de bem, que desenvolveram a
síntese religiosa do pensamento universal e que se formaram na fartura de
conhecimentos digitais. Intelectuais de carreira foram acordados do seu sono
dogmático de sua irrelevância pelo beijo venenoso, diretamente saído de 1964.
Este efeito Bela Adormecida não pode ser ignorado, ele revela o desconhecimento
ou a indiferença com relação à emergência de uma nova atitude
estético-filosófica no Brasil. Nunca antes neste país discutiu-se, com tanta
veemência, a importância de nomes como Gramsci, Marx ou Paulo Freire. Nunca foi
tão importante definir orientações políticas, com consequências reais e
dolorosas para a dinâmica de famílias, amizades e amores.
Tosco, quer dizer “o que se apresenta como veio da natureza”, ou seja,
autêntico, não lapidado e não disfarçado. Também é tosco o que “é feito sem
apuro ou refinamento, com rudeza ou de modo grosseiro”, ou seja, um certo
orgulho ostensivo e exibicionista do irrefletido. O tosco se estrutura como uma
“zueira”. Nada nele pode durar mais do que o efeito natural de sua
inconsequência legendado pela rudeza com palavras e conceitos. É preciso ignorar qualquer seriedade
concernente a educação, cultura ou universidades. É preciso acusar ideologias
de gênero, marxismo cultural, proteção aos direitos humanos ou minorias negras
ou LGBTs. É preciso denunciar os privilégios de qualquer proteção à infância,
indígenas ou dos sofrem com transtornos mentais. Aqui a força do Tosco
Brasileiro está em sua atitude de denúncia e imitação. Esta fórmula pródiga na
história das artes, carrega a enunciação de resistência contra a tirania da
personalidade sensível, dos costumes invisíveis dos “inteligentinhos” da alta
cultura brasileira, percebida como um clube de troca de favores e manutenção
cruzada de privilégios. Contra isso a Sofrência Sertaneja e as traduções
americanas, do tipo “Juntos e Shalow Now” de Paula Fernandes e Luan Santana
mostram toda a força da simplicidade, suficiente para nos entreter.
Mas atenção. Romero Brito não é tosco, pois nele não há ressentimento
nem agressividade. Tiririca também não é tosco. Nem Anita nem Jojo Todinho
pertencem ao tosco. Também não se deve
confundir o tosco com o brega, pois este último exagera a força do amor, ao
passo que seu inverso centra-se no ódio e na inveja. Também não se deve confundir o tosco com a
cultura nerd, nem com o gosto por animés, hentais, ou a K-pop.
Tais manifestações apenas preparam ou previnem a vinda do tosco,
autonomizando a linguagem de seu conteúdo político. Ele atua como toque ou
deslize que confere autenticidade ao conjunto, não como exagero permanente de
um verdadeiro estilo de identidade, conexo com uma forma de vida. Pelo
contrário, nestas práticas há um engajamento continuado, com narrativas extensas
e problematizações éticas, bem como um verdadeiro compromisso com o outro,
enquanto universo antropológico diferente e ainda assim admirável.
O Tosco Brasileiro é uma revolta contra a ilusão. Não apenas contra as
ilusões específicas de um certo programa político que o antecedeu e o
condicionou, mas contra o estatuto mesmo da ilusão. Ilusões nos fazem acreditar
em futuros diferentes do passado. Ilusões traídas nos fazem odiar o próprio
trabalho de ilusionamento. Se o esboço e a incompletude são as formas típicas
da produção ilusiva, o estereótipo e caricatura são o seu inverso não
dialético. O Tosco Brasileiro parece odiar a arte e a ciência ela mesma,
realizada na figura dos professores de uma elite, sentida como impostora e
inautêntica. Por isso lhe é essencial se apresentar “sem partido”, “sem
ideologia”, “sem pontos obscuros ou ambíguos”, “as coisas mesmas na vida como
ela é: nota sobre nota”. Toda ambiguidade local é uma certeza redobrada em
segunda instância, pela comunidade estética de gosto. Daí que o Tosco
Brasileiro seja uma estética religiosa, no sentido kantiano de uma comunidade
de gosto e no sentido lacaniano de uma comunidade de gozo. Lembremos que o
problema aqui é saltar da particularidade dos juízos de gosto, por meio dos
qual algo é belo porque assim nos parece, para algo é belo porque esta é a
realidade mesma deste objeto.
Assim como não reconhece arte ou cultura, educação ou filosofia, que não
lhe sejam igualmente toscas, o novo Tosco Brasileiro é criação e criatura produzida
para sancionar o autorreconhecimento de
uma nova elite, que subitamente redimensionou seu tamanho e importância.
Ele pode ser uma tendência passageira, como tantas outras, mas certamente
deixará cicatrizes na história do processo civilizatório brasileiro. Esperemos
que seja o último canto, mais forte do que todos os outros, que o cisne
pronuncia antes de desaparecer.
[1]
Interpassividade é um fenômeno descrito pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek que
consiste na terceirização do gozo. As claque em séries de humor são exemplos de
interpassividade, pois por meio delas contratamos alguém para rir em nosso
lugar, assim como no tosco brasileiro contratamos alguém para criticar em nosso
lugar.
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