Zygmunt Bauman é autor de inúmeras obras com a palavra líquido em seu
título. A noção de liquidez proposta pelo filósofo e sociólogo polonês,
falecido no começo desse mês, é aplicada aos mais variados temas como a
modernidade, o amor, o medo, a vida e o tempo, expressando a fluidez, isto é, a
imensa facilidade com que estes elementos escorrem pelas mãos do homem moderno.
A ideia, extraída de “O Manifesto Comunista” de Marx e Engels, vem da célebre
afirmação de que tudo que é sólido se desmancha no ar e de que tudo que é
sagrado é profanado: assim é a modernidade e sua essência que se alastra pela
vida do homem moderno transformando-o não só como indivíduo, mas também como
ser relacional.
O primeiro livro do Bauman que li foi “Amor Líquido” o qual, carinhosamente,
valendo-me das palavras de Caetano, defino como “um sopapo na cara do fraco”,
que me fez e faz, já que essa sorte de questionamento é constante, pensar na
forma como nos relacionamos hoje em dia. Um ponto alto do livro, aos meus
olhos, é o capítulo no qual Bauman fala sobre a dificuldade de amar o próximo
destacando o modo como lidamos com os estranhos. Penso que nessa dificuldade é
que se encontra a raiz de tantos dos nossos problemas seja na esfera pessoal ou
pública. E é sobre isso que eu gostaria de refletir conjuntamente hoje.
Vivemos em uma sociedade fortemente marcada pelo conflito ser x ter na
qual o homem passa a se expressar pelas suas posses, elementos definidores de
sua própria identidade, o que reflete na busca por certa conformidade que ceifa
a pluralidade de existências e segrega o que é diferente, estranho. O modo como
as cidades se dividem é exemplo disso, os nichos considerados seguros são
aqueles onde todos se parecem, exacerbando a nossa dificuldade em lidar com os
estranhos que passam a ser evitados através de sistemas de segurança, muros,
priorização de espaços que assegurem a conformidade de seus frequentadores como
os shoppings e etc. Evitar a todo custo o incômodo de estar na presença de
estranhos, começar a enxergar naquele que sequer se sabe o nome um inimigo em
potencial e desconfiar de tudo e de todos só é possível graças ao
desengajamento e ruptura de laços para o sociólogo polonês.
Se levarmos em conta que amar outra pessoa não é amar o que projetamos
nela e sim a sua humanidade e singularidades, não será difícil compreender que
o amor é um desafio nos tempos de modernidade líquida. A busca pela felicidade
individual nos transforma em tribunais individuais e, na disputa pela sentença
a ser proferida, não raro, o que se vê é sair vencedor aquele que se recusa a
ouvir o outro. Facilmente, pois, livramo-nos dos compromissos e de tudo aquilo
que nos pareça incômodo. Ainda que tão agarrados a nós mesmos, paradoxalmente,
é bastante comum que a solidão seja companhia (e problema) constante de quem
vive a descartar.
Os muros que construímos ao nosso redor, físicos ou emocionais, têm
mesmo esse condão de isolar e criar dois mundos em cada um de seus dois lados:
o de dentro e o de fora. O último, espaço cativo dos que nos incomodam- aqui
incluídos tanto quem nos relacionamos de forma íntima, quanto aqueles que
preferimos distantes, inviabilizados de estar perto, enfim, aniquilados ao
prender, matar, limitar a circulação, fixar em zonas periféricas e etc. É que
Narciso acha feio tudo que não é espelho, já diria, mais uma vez, o sempre
genial Caetano Veloso.
Dessas reflexões que vão (muito) longe e que, por ora, encerro aqui fica
sempre uma mensagem muito clara para mim: amar (mesmo) é um ato revolucionário
e só ama quem tem coragem o bastante pra lidar com esse desafio porque sabe
que, por mais que nem tudo sejam flores, esse amor “sólido” é que nos
impulsiona a querermos ser melhores seja como pessoa ou sociedade. Parece
distante e utópico, mas está dentro de nós: ame profunda e verdadeiramente. Até
quem você não conhece.
*Anna
Carolina Cunha Pinto
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