Cigarra cantadeira e formiga
diligente
Que tenho sido, senão cigarra cantadeira e formiga diligente
desse longo estio que se chama vida…
Meus doces, meus tachos de cobre…
Meus Anjos da Guarda, veladores e certos.
Radarzinho… Meus fantasmas familiares, meus romanceados
de permeio à venda dos doces.
Antes, lá longe, no passado, parindo filhos e criando filhos
e plantando roseiras, lírios e palmas, avencas e palmeiras,
em Jaboticabal, terra do meu aprendizado de viver.
terra de meus filhos.
Minha gente de Jaboticabal. Meus Anjos da Guarda, Radarzinho,
atento ao tacho, tangendo as abelhas que se danavam nos meus doces,
dando aviso certo na hora certa. De outas me apagando o fogo,
um modo de ajudar que só Radarzinho sabia. Em outros tempos, muito antes
tinha já plantado um vintém de cobre que regava com amor
na esperança de haver crias. Porção de vinténs
correndo para Aninha.
Meus fantasmas familiares do porão da Casa Velha da Ponte.
A todos, tantos, agradeço neste livro de vintém o auxílio, a alegria
que me deram o prazer daqueles que me ouviam contas estas estorinhas,
romances de um menininha que plantou num canteiro sombreado,
milho, arroz, e alpiste.
E o irmão pequeno tinha uma caminhãozinho de brinquedo,
e enquanto a roça crescia, o menino crescia
e ele enchia o caminhão daquela lavoura crescida no sonho da menina
que ia descarregar na máquina de seu Pinho, ali mesmo,
e volta cheio de moedas e notas de cinco mil réis.
Aonde anda a menina Célia, minha neta, que gostava de ouvir contar
estórias repetidas com repetição sem fim?
Célia, a vida, você no passado, no presente e no futuro,
ela será sempre pra mim aquela que um dia ofereceu suas economias de
criança para me ajudar na publicação de um livro…
–
Cora Coralina, no livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”, 6ª ed.,
São Paulo: Global Editora, 1997, p. 64-65.
§
Confissões
partidas
Quisera eu ser dona, mandante
da verdade inteira e nua,
que nua, consta a sabedoria
popular, está ela no fundo de um poço fundo,
e sua irmã mentira foi a que
ficou em cima beradiando.
Quem dera a mim esse poder,
desfaçatez, coragem de dizer verdades…
Quem as tem? Só louco varrido
que perdeu o controle das conveniências.
Conveniências… palavras assim
de convênio, de todos combinados,
força poderosa, recriando a coragem,
encabrestando a vontade.
Conveniência… irmã gêmea do
preconceito, encangados os dois,
puxando a carroça pesada das
meias verdades.
Confissões pela metade…
Quem sou eu para as fazer
completas?
Reservas profundas, meus
reservatórios secretos, complexos,
fechados, ermos, compromissos
íntimos e preconceitos vigentes, arraigados.
Algemas mentais, e tolhida,
prisioneira, incapaz de despedaçar a rede
onde se debate o escamado da
verdade…
Qual aquele que em juízo são,
destemeroso dos medos
para dizer mais do que as
meias dissimuladas, esparsas?
A gente tem medo dos vivos e
medo dos mortos.
Medo da gente mesmo.
Nossas covardias retardadas e
presentes.
Assim foi, assim será.
–
Cora Coralina, no livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”, 6ª ed.,
São Paulo: Global Editora, 1997, p. 146.
§
Meu
melhor livro de leitura
Estas estorinhas, sem
princípio nem fim.
Estórias de Carochinha, edição
antiga, desenho antigo, preto e branco.
Meus filhos, meus sobrinhos,
meus netos… Minha descendência tão linda e sadia, minhas raízes ancestrais,
minha cidade.
Meu rio Vermelho debaixo da
janela, janelas da vida, meu Ipê florido, vitalizado pelo emocional de Clarice
Dias.
Minha pedra morena. Minha
pedra mãe. Quem assentará você sobre o meu túmulo no meu retorno às origens de
todas as origens?
Minha volta ao mundo na lei de
Kardec…
Vou reviver na menina
Georgina.
Estarei presente no meu
dicionário, meu livro de amor que tanto me ensinou e corrigiu.
Minhas estórias de Carochinha,
meu melhor livro de leitura, capa escura, parda, dura, desenhos preto e branco.
Eu me identificava com as
estórias.
Fui Maria e Joãozinho perdidos
na floresta.
Fui a Bela Adormecida no
Bosque.
Fui Pele de Burro. Fui
companheira de Pequeno Polegar e viajei com o Gato de Sete Botas. Morei com os
anõezinhos.
Fui a Gata Borralheira que
perdeu o sapatinho de cristal na correria da volta, sempre à espera do príncipe
encantado, desencantada de tantos sonhos nos reinos da minha cidade.
Mãe Didi… Por onde vão os
rumos de meus pensamentos, sempre presente minha madrinha fada.
Eu a vejo em Mãe Didi.
Tia Nhorita, Didinha, seus
farnéis inesgotáveis de bondade, de biscoito e brevidades, sustentando Aninha,
desamada, abobada e feia, caso perdido, pensavam todos.
O que vale na vida não é o
ponto de partida e sim a caminhada.
Caminhando e semeando, no fim,
terás o que colher.
–
Cora Coralina, no livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”, 6ª ed.,
São Paulo: Global Editora, 1997, p. 62-63.
§
A gleba me transfigura
Sinto que sou a abelha no seu artesanato.
Meus versos têm cheiro dos matos, dos bois e dos currais.
Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.
Amo a terra de um místico amor consagrado, num esponsal sublimado,
procriador e fecundo.
Sinto seus trabalhadores rudes e obscuros,
suas aspirações inalcançadas, apreensões e desenganos.
Plantei e colhi pelas suas mãos calosas
e tão mal remuneradas.
Participamos receosos do sol e da chuva em desencontro,
nas lavouras carecidas.
Acompanhamos atentos, trovões longínquos e o riscar
de relâmpagos no escuro da noite, irmanados no regozijo
das formações escuras e pejadas no espaço
e o refrigério da chuva nas roças plantadas, nos pastos maduros
e nas cabeceiras das aguadas.
Minha identificação profunda e amorosa
com a terra e com os que nela trabalham.
A gleba me transfigura. Dentro da gleba,
ouvindo o mugido da vacada, o mééé dos bezerros,
o roncar e focinhar dos porcos, o cantar dos galos,
o cacarejar das poedeiras, o latir dos cães,
eu me identifico.
Sou árvore, sou tronco, sou raiz, sou folha,
sou graveto, sou mato, sou paiol
e sou a velha trilha de barro.
Pela minha voz cantam todos os pássaros, piam as cobras
e coaxam as rãs, mugem todas as boiadas que vão pelas estradas.
Sou a espiga e o grão que retornam à terra.
Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando,
é o arado milenário que sulca.
Meus versos têm relances de enxada, gume de foice
e peso de machado.
Cheiro de currais e gosto de terra.
Eu me procuro no passado.
Procuro a mulher sitiante, neta de sesmeiros.
Procuro Aninha, a inzoneira que conversava com as formigas,
e seu comadrio com o ninho das rolinhas.
Onde está Aninha, a inzoneira,
menina do banco das mais atrasadas da escola de Mestra Silvina…
Onde ficaram os bancos e as velhas cartilhas da minha escola primária?
Minha mestra… Minha mestra… beijo-lhe as mãos,
tão pobre!…
Meus velhos colegas, um a um foram partindo, raleando a fileira…
Aninha, a sobrevivente, sua escrita pesada, assentada
nas pedras da nossa cidade…
Amo a terra de um velho amor consagrado
através de gerações de avós rústicos, encartados
nas minas e na terra latifundiária, sesmeiros.
A gleba está dentro de mim. Eu sou a terra.
Identificada com seus homens rudes e obscuros,
enxadeiros, machadeiros e boiadeiros, peões e moradores.
Seus trabalhos rotineiros, suas limitadas aspirações.
Partilhei com eles de esperança e desenganos.
Juntos, rezamos pela chuva e pelo sol.
Assuntamos de um trovão longínquo, de um fuzilar
de relâmpagos, de um sol fulgurante e desesperador,
abatendo as lavouras carecidas.
Festejamos a formação no espaço de grandes nuvens escuras
e pejadas para a salvação das lavouras a se perderem.
Plantei pelas suas enxadas e suas mãos calosas.
Colhi pelo seu esforço e constância.
Minha identificação com a gleba e com sua gente.
Mulher da roça eu o sou. Mulher operária, doceira,
abelha no seu artesanato, boa cozinheira, boa lavadeira.
A gleba me transfigura, sou semente, sou pedra.
Pela minha voz cantam todos os pássaros do mundo.
Sou a cigarra cantadeira de um longo estio que se chama Vida.
Sou a formiga incansável, diligente, compondo seus abastos.
Em mim a planta renasce e floresce, sementeia e sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retornam à terra.
Minha pena é a enxada do plantador, é o arado que vai sulcando
para a colheita das gerações.
Eu sou o velho paiol e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenária, eu venho de milênios.
Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada
no ventre escuro da terra.
–
Cora Coralina, no livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”, 6ª ed.,
São Paulo: Global Editora, 1997, p. 108-110.
§
Barco
sem rumo
Há muitos anos,
no fim da última guerra,
mais para o ano de 1945,
diziam os jornais de um navio
fantasma
percorrendo os mares e
procurando um porto.
Sua única identificação:
– drapejava no alto mastro uma
bandeira branca.
Levava sua carga humana.
Salvados de guerra e de uma só
raça.
Incerto e sem destino,
todos os portos se negaram a
recebê-lo.
Acompanhando pelo noticiário
do tempo
o drama daquele barco,
mentalmente e emocionalmente
eu arvorava em cada porto do
meu País
uma bandeira de Paz
e escrevia em letras de
diamantes:
Desce aqui.
Aceita esta bandeira que te
acolhe fraterna e amiga.
Convive com o meu povo pobre.
Compreende e procura ser
compreendido.
Come com ele o pão da
fraternidade
e bebe a água pura da
esperança.
Aguarda tempos novos para
todos.
Não subestimes nossa
ignorância e pobreza.
Aceita com humildade o que te
oferecemos:
terra generosa e trabalho
fácil.
Reparte com quem te recebe
teu saber milenar,
Judeu, meu irmão.
–
Cora Coralina, no livro “Meu livro de cordel”. São Paulo: Global Editora, 2012.
§
Claude
Monet – flores
O
cântico da terra
Eu sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o
homem.
De mim veio a mulher e veio o
amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.
Eu sou a fonte original de
toda vida.
Sou o chão que se prende à tua
casa.
Sou a telha da coberta de teu
lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu
gado
e certeza tranquila ao teu
esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do
Criador,
e a mim tu voltarás no fim da
lida.
Só em mim acharás descanso e
Paz.
Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e
desposada.
A mulher e o ventre que
fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu
sou o amor.
A ti, ó lavrador, tudo quanto
é meu.
Teu arado, tua foice, teu
machado.
O berço pequenino de teu
filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.
E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu
seio
tranquilo dormirás.
Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.
–
Cora Coralina, no livro “Poema dos becos de Goiás e Estórias mais”. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965.
§
O beco da escola
Um corricho, de passagem,
um dos muitos vasos comunicantes
onde circula a vida humilde da cidade.
Um bequinho de brinquedo, miudinho.
Chamado no meu tempo de menina
– beco da escola.
Uma braça de largura, mal medida.
Cinquenta metros de comprido… avaliado.
Bem alinhado. Direitinho.
Beco da escola…
Escola de velhos tempos.
Tempos de velhas mestras.
Mestra Lili. Mestra Silvina. Mestra Inhola.
Outras mais, esquecidas mestras de Goiás.
Mestra Lili… o seu perfil:
Miudinha, magrinha.
Boa sobretudo. Força moral.
Energia concentrada. Espírito forte.
O hábito de ensinar, ralhar, levantar a palmatória,
Afeiçoara-lhe o conjunto
– enérgico, varonil.
A escola da mestra Lili
era mesmo naquela esquina.
Casa velha – ainda hoje a casa é velha.
Janelas abertas para o beco.
Sala grande. A mesa da mestra.
Bancos compridos, sem encosto.
Mesa enorme dos meninos escreverem
lições de escrita.
De ruas distantes a gente ouvia,
quartas e sábados, cantada em alto coro
a velha tabuada.
O bequinho da escola
lembra mestra Lili.
Lembra mestra Inhola.
Lembra mestra Silvina.
Sá Mônica. Mestra Quina. Mestra Ciriáca.
Esquecidas mestras de Goiás.
Elas todas – donzelas,
sem as emoções da juventude.
Passavam a mocidade esquecidas de casamento,
atarefadas com crianças.
Ensinando o bê-a-bá às gerações.
O beco da escola é uma transição.
Um lapso urbanístico
entre a Vila Rica e a Rua do Carmo.
Tem janelas.
Uma casinha triste de degraus.
Velhos portões fechados, carcomidos.
Lixo pobre.
Aqui, ali, amparadas no muro,
umas aventureiras e interessantes flores de monturo.
Velhas mestras… Velhas infâncias…
Reminiscências vagas…
O bequinho da escola brinca de esconder.
Corre da Vila Rica – espia a Rua do Carmo.
É um dos mais singulares e autênticos becos de Goiás.
Tem a marca indisfarçada dos séculos
e a pátina escura do Tempo.
Beco recomendado a quem busca o Passado.
Recomendado – sobretudo –
aos poetas existencialistas,
pintores, a Frei Nazareno.
Tem portões vestidos de velhice. Tem bueiro.
Tem muros encarquilhados,
rebuçadinhos de telhas.
São de velhas donas credenciadas
de velhas descendências
– guerreiros do Paraguai.
Bem estreito e sujo
como compete a um beco genuíno.
Esquecido e abandonado,
no destino resumido dos becos,
no desamor da gente da cidade.
Poetas e pintores
românticos, surrealistas, concretistas, cubistas,
eu vos conclamo.
Vinde todos cantar, rimar em versos,
bizarros, coloridos,
os becos da minha terra.
Ao meio-dia desce sobre eles,
vertical,
um pincel de luz,
rabiscando de ouro seu lixo pobre,
criando rimas imprevistas nos seus monturos.
De noite… noite de quarto,
a cidade vazia se recolhe
num silêncio avaro, severo.
Horas antigas do passado.
– Concentração.
Almas penadas doutro mundo.
Procissão das almas
vai saindo da porta fechada das igrejas.
Vem vindo pelas ruas.
Desaparecem pelas esquinas.
Responsam pelos becos.
Altas visagens: assombração…
O diabo no corpo…
Lobisomem…
Simbolismo dos velhos avatares.
–
Cora Coralina, no livro “Poema dos becos de Goiás e Estórias mais”. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965.
§
Antiguidades
Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em
cima.
Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)
Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele
bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.
A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção.
Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo
todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmão mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada…
E fatias iguais às outras
manas.
E que ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.
Era aquilo uma coisa de
respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da
noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo de
criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.
Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
“Tomando propósito”
Expressão muito corrente e
pedagógica.
Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
Mas, as visitas…
– Valha-me Deus!…
As visitas…
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!
Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antiguidades…
Até os nomes, que não se
percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha
Lili.
D. Benedita – alta, magrinha.
Lili – baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia
crochê.
E, diziam dela línguas
viperinas:
“- Lili é a bengala de D.
Benedita”.
Mestre Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.
D. Joaquina Amâncio…
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha
bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado
silêncio.
E só se ia quando o galo
cantava.
O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o
fora.
No fim, só ficava mesmo,
firme,
minha bisavó.
D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido
novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.
Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando “causos” infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar
acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.
De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
– ai de mim –
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o
bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.
–
Cora Coralina, no livro “Poema dos becos de Goiás e Estórias mais”. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965.
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