A mim parece-me bem.
Privatize-se Machu Picchu, privatize-se Chan Chan,
privatize-se a Capela Sistina,
privatize-se o Pártenon,
privatize-se o Nuno Gonçalves,
privatize-se a Catedral de Chartres,
privatize-se o Descimento da Cruz,
de Antonio da Crestalcore,
privatize-se o Pórtico da Glória
de Santiago de Compostela,
privatize-se a Cordilheira dos Andes,
privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu,
privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei,
privatize-se a nuvem que passa,
privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno
e de olhos abertos.
E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar,
privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez
a exploração deles a empresas privadas,
mediante concurso internacional.
Aí se encontra a salvação do mundo…
E, já agora,
privatize-se também
a puta que os
pariu a todos.
– José Saramago, em “Cadernos de Lanzarote – Diário III”. Lisboa:
Editorial Caminho, 1996.
Os Cadernos de Lanzarote são a reunião dos diários de José Saramago
escritos no período de 1993 a 1995 na ilha de Lanzarote, arquipélago das
Canárias onde ele viveu com sua mulher Pilar.
A melhor definição de diário é do próprio Saramago neste livro:
“Por muito que
se diga, um diário não é um confessionário, um diário não passa de um modo
incipiente de fazer ficção. Talvez pudesse chegar mesmo a ser um romance se a
função da sua única personagem não fosse a de encobrir a pessoa do autor,
servir-lhe de disfarce, de parapeito. Tanto no que declara como no que reserva,
só aparentemente é que ela coincide com ele. De um diário se pode dizer que a
parte protege o todo, o simples oculta o complexo. O rosto mostrado pergunta
dissimuladamente: Sabeis quem sou?, e não só não espera resposta, como não está
a pensar em dá-la.”
Fonte:
Revista Prosa Verso e Arte
Nenhum comentário:
Postar um comentário