Se não fossem as crônicas registradas no Egito antigo, eu diria que a
crônica é um gênero brasileiro. Espia só: ela se adapta a tudo (jornal, livro,
blog, rede social, rádio, televisão…), tem uma dose considerável de humor, fala
de todos assuntos, transita em qualquer área do conhecimento e é tão
escorregadia que ninguém consegue classificá-la. Ou seja, é um texto mestiço — livre, leve e solto.
Mas engana-se quem pensa que a crônica, por ser um gênero flexível, é
fácil de escrever. Ao contrário, é necessário conhecimento, técnica e muita
prática para redigir um texto tão versátil e, ao mesmo tempo, curto e original.
A respeito dessa dificuldade, leia a opinião de José de Alencar:
Obrigar
um homem e percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto
sério, do riso e do prazer às misérias e chagas da sociedade; e isto com a
mesma graça, finura e delicadeza. […] O poeta glosa o mote, que lhe dão, o
músico fantasia sobre um tema favorito, o escritor adota um título para seu
livro ou artigo. Somente o folhetinista (cronista) é que há de sair fora da
regra, e ser uma espécie de remédio para todos os males.
E o que Machado de Assis pensava sobre isso?
O
folhetinista (cronista) é a fusão admirável do útil com o fútil. […], mas nem
todos os dias são tecidos de ouro para ele. Há os dias negros, adivinhem? o dia
de escrever. Passam-se séculos nas horas em que o cronista gasta à mesa a
construir sua obra (uma crônica). Ora, quando o espirito está disposto, a coisa
passa-se bem. Mas quando à falta de assunto une-se a morbidez […], é um
suplício! Os olhos negros que saboreiam essas páginas coruscantes de lirismos e
de imagens mal sabem às vezes o que custa escrevê-las.
No Brasil, a crônica que
conhecemos hoje era chamada de folhetim no século XIX. Tinham 2 tipos de
folhetins nessa época: romance e variedade. As duas espécies de textos eram
publicadas nos rodapés dos jornais.
Folhetim
de 1905
O folhetim-romance era uma história
de ficção, com personagens, publicado em capítulos separados em jornais. Muitos
desses folhetins foram reunidos em livros posteriormente e tornaram-se
clássicos da nossa literatura, como “O guarani”, de José de Alencar e “O triste
fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto.
Já o folhetim-variedade
abordava todos os assuntos do país: política, artes, problemas sociais, lutas
de classes ou coisas corriqueiras, tudo em um texto a fim de entreter o leitor.
Era uma espécie de sedução verbal, ou seja, muitas pessoas passaram e
desenvolver o hábito da leitura através dos folhetins, criando, assim, um
público leitor no Brasil.
Também pudera, gente! Com aqueles jornalistas, só não lia quem não sabia
ler: Machado de Assis, Olavo Bilac, Raul Pompéia, Aluísio Azevedo e José de
Alencar foram alguns dos grandes cronistas do século XIX.
No próximo século, outros nomes enriqueceram a crônica brasileira,
tornando esse texto, que era jornalisticamente efêmero — em literariamente
duradouro: Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Mario de
Andrade, Fernando Sabino, Millôr Fernandes, Nelson Rodrigues, Drummond, Sério
Porto e aquele que deu novas formas e outros tons à crônica — Rubem Braga. (Braaasil, sou apaixonada
por Rubem Braga! Outro dia, falarei só sobre ele…)
Mas como produzir uma crônica?
Para começo de conversa, o objetivo do cronista é criar uma proximidade
com o leitor, como se fosse um amigo, como em uma conversa. Por isso, na
crônica predomina a primeira pessoa.
Esse caráter intimista, pessoal e até confessional não quer dizer que tudo é
real na crônica, pois, como um gênero híbrido, ela pode ser ficcional e
verídica ao mesmo tempo.
Além disso, deve ser um texto
curto e claro; e, embora fale de coisas profundas, o cronista deve
abordá-las de um jeito leve, sem cansar o leitor, o objetivo é torná-lo um
amigo, lembra? Nada de espantá-lo com uma leitura longa, chata ou pesada. Como
disse Olavo Bilac: “A palavra pesada
abafa e ideia leve”.
A crônica é mais conhecida por ser bem-humorada.
Contudo, não precisa ter, necessariamente, humor no texto, mas leveza, sim.
Aliás, entre as mulheres não há cronistas conhecidas pelo seu bom humor (se bem
que uma graça natural não faz mal a ninguém), apenas escritoras que redigiam
crônicas com um tom existencial ou social, talvez, sejam essas as
características das nossas cronistas, como é o caso de Clarice Lispector e
Rachel de Queiroz.
E
este nosso trabalho de escrever? Meu Deus, como às vezes é sórdido! Aquele
riscar, aquela grosseria do texto primitivo, aquele tatear atrás da palavra
desejada e, ainda pior, da combinação de palavras desejadas! Tanta beleza que a
gente sonhou, depois de posta do papel como ficou inexpressiva, barata e
normal! Rachel de Queiroz
A crônica saltou das páginas de jornais para a internet. Hoje você pode
redigir crônicas históricas, descritivas, psicológicas, políticas, didáticas,
poéticas, literárias e humorísticas em seu blog ou na sua rede social — e
fisgar leitores que procuram textos breves, acolhedores e inteligentes. (Ou também
pode fazer essa bagunça que acabou de ler aqui: um texto falando de tudo e de
nada, uma crônica ensinando como redigir crônicas.)
Elaine
Rodrigues, professora de Literatura e Redação
Autora
do livro Desfragmentos (crônicas), disponível na Amazon.
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