Considerações
sobre o romance O Verão Tardio, de Luiz Ruffato
Autor busca no homem comum matéria para romance que alça-se à condição
de obra literária de valor estético e humanístico só atingido por grandes
autores
Wilson
Pereira
“O Verão Tardio”, novo romance do escritor Luiz Ruffato, tem como tela
uma trama aparentemente simples, vivida, durante seis dias, pelo personagem
Oséias, um homem comum que, vivendo em São Paulo, depois de longo período
distante de sua cidade natal, volta ali para rever parentes e antigos amigos,
numa tentativa de reatar os laços rompidos de sua remota adolescência e juventude.
No entanto, a partir da chegada do personagem à rodoviária da cidade,
uma série de fatos que podem, à primeira vista, parecer corriqueiros e
desprovidos de importância literária, vai construindo uma narrativa
surpreendente, carregada de teores vivenciais, sociais e existenciais. O que se
vai apreendendo da leitura é um tecido de relações familiares e sociais
esgarçado com um inequívoco sentido alegórico, que remete a uma reflexão
profunda e bem articulada da realidade.
A trama parece surgir a partir de três premissas, não mencionadas, mas
implícitas, subjacentes ao texto: a
exclusão, a solidão e a depressão. Essas três categorias se interpõem, se
imbricam e implicam, no plano simbólico ou metafórico, o dilaceramento das
relações. Já na cena inicial, quando, ao chegar à rodoviária, o personagem
desperta de um pesadelo, como se estivesse sido acometido por um súbito problema
de saúde, a metáfora da solidão aparece em forma de um deserto no qual ele se
debate com um estranho e inóspito lugar de impossibilidades.
No sonho assombroso, Oséias se depara com algo que lhe parece um oásis,
mas que se transforma imediatamente em areia movediça, deixando-o sem chão.
Ainda na rodoviária, o personagem reconhece no atendente de um Café um antigo
colega de escola e, ao tentar estabelecer contato, é por esse rechaçado com
estupidez. Daí em diante, quase todas as tentativas de aproximação se tornam
frustradas. A personagem Rosana, depois de uma acolhida pouco afetuosa em sua
casa, recomenda ao irmão que procure outro lugar para se hospedar. As situações
de exclusão, que permeiam toda a narrativa, vão se repetindo de diversas
maneiras, em diferentes ocasiões. A exclusão ocorre em relação ao pai, primeiro
rejeitado pelo filho João Lúcio, depois pela Família, ocorre por parte da
personagem Rosana que, desde moça, despreza a família, preferindo passar mais
tempo com uma madrinha de posição social elevada e, por fim, pelo próprio
Oséias, que nem foi ao enterro do pai. Ocorre com o professor homossexual,
agora transformado num velho demente e solitário. Ocorreu antes com o próprio
Oséias, que, em decorrência da separação, perdeu a mulher e o filho, com quem
não tem mais contato. E ele perde também seus bens materiais, restando-lhe
apenas uma parca aposentadoria.
A solidão decorre da exclusão, o que, numa análise breve, remete à
teoria de “modernidade líquida” formulada pelo sociólogo e pensador polonês
Zygmunt Bauman (1925-2017), para quem as relações pessoais e sociais no mundo
atual não têm solidez e, por conseguinte, são superficiais, sem permanência.
(Para se entender o conceito de modernidade líquida, é preciso rever as
propriedades dos líquidos. Estes se caracterizam pela instabilidade, pela falta
de coesão e de uma forma definida. A modernidade líquida caracteriza-se, assim,
por uma sociedade e um tempo em que tudo é volátil e adaptável, contrapondo-se
à década da modernidade sólida da década anterior em que a sociedade era
ordenada, coesa, estável e previsível).
Essa questão também aparece em algumas passagens do texto de Ruffato,
que podem ser entendidas como metáforas, seja na água que escorre entre os dedos,
seja nas águas poluídas do Rio Pomba.
Luiz Rufatto, escritor
da estirpe de Graciliano Ramos
e Raduan Nassar | Foto: Reprodução
A teoria de Bauman encontra ressonância na atualidade também pela
influência das redes sociais no comportamento das pessoas, motivado por
disputas ideológicas regadas a ódio e intolerância. E, nessa linha de análise, cabe salientar o
alcance e a pertinência política do romance de Ruffato, uma vez que Cataguases
pode ser vista como microcosmo, símbolo do macrocosmo, que é o Brasil, neste
momento de desesperança e de desconstrução de direitos humanos e de ideais
democráticos.
Outra metáfora de efeito inusitado no texto de “O Verão Tardio” é a da
costura. Nesse tecido roto das relações
humanas, chama a atenção o fato de que as mulheres é que parecem ter o domínio
do que se é possível alinhavar de proveitoso e sensato. Os homens, à exceção de
João Lúcio, que se realiza como empreendedor, tornando-se rico, mas, ainda
assim, um recluso, que exclui os parentes e se auto exclui do convívio
familiar, são, em geral, fracos e fracassados. As mulheres, na figura da mãe,
uma determinada e habilidosa costureira, é que mantêm a família articulada. É o
que acontece também com a personagem Izinha, cujo marido alcoólatra nada faz de
digno de um pai de família. A forma narrativa adotada pelo autor, sem ser
pretensiosamente original, com seu fluxo acelerado, com repetições minuciosas
de certos fatos e situações, sem descrições, lembra o ritmo pedalado da máquina
de costura.
Outro recurso estilístico de efeito extraordinário neste romance é a
forma como o autor mistura o passado com o presente, de tal modo que, num mesmo
período, antes do ponto final ou de qualquer outra indicação gráfica, passa-se da narração de um fato em curso para
a de um fato lembrado, ou seja, o fluxo da memória não interrompe a narração,
mas nela intervém e com ela se confunde, no estado de espírito do narrador,
como a tentar remendar a atualidade rota com retalhos pretéritos, ou ainda,
como as águas de um rio afluente se tornam as águas do rio no qual deságuam.
Resta considerar o problema da depressão. Pode-se perceber que Oséias,
apesar da iniciativa de tentar reavivar o passado como fio para reconstituir o
presente, dá constantes sinais de depressão. Carrega ele a culpa atormentada
pelo suicídio da irmã. E, no decorrer da narrativa, mostra-se apático, sem
buscar diversão ou qualquer estímulo para o prazer ou a alegria. E a depressão,
certamente, é o que conduz à decisão final do personagem, que parece
premeditada, como se pode deduzir de alguns índices de leitura em certas
atitudes de Oséias. Nem mesmo o encontro com a ex-namorada, a qual tenta atraí-lo
e seduzi-lo, oferecendo-lhe oportunidade para um momento de intimidade, no
caso, o sexo, o afasta de sua rotina ensimesmada e monótona.
Passagem intrigante é a que relata o encontro com o irmão João Lúcio, no
final do livro. Ambos bebem cerveja. O descarte das latinhas vazias no saco de
lixo preto, repetido exaustivamente, anuncia, ou prenuncia, de forma simbólica
ou metafórica, algo como morte, luto (simbolizando o descarte da vida, além de
o preto do saco de lixo se associar semanticamente com luto). Nesse caso, a
liquidez da vida vai culminar, principalmente, na água em que Oséias dissolve
os comprimidos e, também, nas cinzas que restam na churrasqueira, onde ele,
aliás, queima seus documentos, matando ali sua identidade. As cinzas, nesse
caso, são uma metáfora sugestiva dos restos mortais do personagem.
Enfim, Ruffato busca no homem comum, cidadão quase anônimo, perdido na
própria insignificância perante o mundo, matéria para um romance que transcende
o corriqueiro e o cotidiano para alçar-se à condição de obra literária de valor
estético e humanístico só atingido por escritores do porte de Graciliano Ramos
ou de Raduan Nassar, visto que propõe, de maneira sutil, mas intensa, a
reflexão profunda sobre a existência e sobre as relações humanas nestes tempos
sombrios. Afinal, o verão tardio é um outono antecipado. Outono, metáfora
bastante explorada como ocaso da vida.
Wilson
Pereira é poeta, contista, cronista, ensaísta e autor de livros infantis e
juvenis, com 17 livros publicados.
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