A culpa não é minha, delegado. É do nariz dela. Ela
tem um nariz arrebitado, mas isso não é nada. Nariz arrebitado a gente resiste.
Mas a ponta do nariz se mexe quando ela fala, delegado. Isso quem resiste? Eu
não. Nunca pude resistir a mulher que quando fala a ponta do nariz sobe e
desce. Muita gente nem nota. É preciso prestar atenção, é preciso ser um
obsessivo como eu.
•••
O nariz mexe milímetros, delegado. Para quem não está
vidrado, não há movimento algum. Às vezes só se nota de determinada posição,
quando a mulher está de perfil. Você vê a pontinha do nariz se mexendo, meu
Deus. Subindo e descendo. No caso dela também se via de frente. Uma vez ela
reclamou, “Você sempre olha para a minha boca quando eu falo”. Não era a boca,
era a ponta do nariz. Eu ficava vidrado no nariz. Nunca disse pra ela que era o
nariz. Eu sou louco, delegado? Ela ia dizer que era mentira, que seu nariz não
mexia. Era até capaz de arranjar um jeito de o nariz não mexer mais.
•••
Mas a culpa mesmo, delegado, não é do nariz, não é
dela e não é minha. A culpa é da inconstância humana. Ninguém é uma coisa só,
nós todos somos muitos. E o pior é que de um lado da gente não se deduz o
outro, não é mesmo? Você, o senhor, acreditaria que um homem sensível como eu,
um homem que chora quando o Brasil ganha bronze, delegado, bronze? Que se
emocionava com a penugem nas coxas dela? Que agora mesmo não pode pensar na
ponta do nariz dela se mexendo que fica arrepiado? Que eu seria capaz de atirar
um dicionário na cabeça dela? E um Aurelião completo, capa dura, não a edição
condensada ou o CD? Mas atirei. Porque ela também se revelou. Ela era ela e era
outras.
•••
A multiplicidade humana é isso. A tragédia é essa.
Dois nunca são só dois, são dezessete de cada lado. E quando você pensa que
conhece todos, aparece o décimo oitavo. Como eu podia adivinhar, vendo a ponta
do narizinho dela subindo e descendo, que um dia ela me faria atirar o Aurelião
completo na cabeça dela? Capa dura e tudo? Eu, um homem sensível? Porque ela
não era uma, delegado. Tinha outra, outras, por dentro. Tudo bem, eu também
tenho outros por dentro. Por exemplo: nós já estávamos juntos havia um tempão
quando ela descobriu que eu sabia imitar o Silvio Santos. Sou um bom imitador,
o meu Romário também é bom, faço um Lima Duarte passável, mas ninguém sabe, é
um lado meu que ninguém conhece. Ela ficou boba, disse “Eu não sabia que você
era artista”. E eu também sou um obsessivo. Reconheço. E a obsessão foi a causa
da nossa briga final. Tenho outros por dentro que nem eu entendo, minha teoria
é que a gente nasce com várias possibilidades e quando uma predomina as outras
ficam lá dentro, como alternativas descartadas, definhando em segredo,
ressentidas. E, vez que outra, querendo aparecer. Tudo bem, viver juntos é ir
descobrindo o que cada um tem por dentro, os dezessete outros de cada um, e
aprendendo a viver com eles. A gente se adapta. Um dos meus dezessete pode não
combinar com um dos dezessete dela, então a gente cuida para eles nunca se
encontrarem. A felicidade é sempre uma acomodação.
•••
Eu estava disposto a conviver com ela e suas dezessete
outras, a desculpar tudo, delegado, porque a ponta do seu nariz mexe quando ela
fala. Mas aí surgiu a décima oitava ela. Nós estávamos discutindo as minhas
obsessões. Ela estava se queixando das minhas obsessões. Não sei como, a
discussão derivou para a semântica, eu disse que “obsedante” e “obcecante” eram
a mesma coisa, ela disse que não, eu disse que as duas palavras eram quase
iguais e ela disse “Rará”, depois disse que “obcecante” era com “c” depois do
“b”, eu disse que não, que também era com “s”, fomos consultar o dicionário e
ela estava certa, e aí ela deu outra risada ainda mais debochada e eu não me
aguentei e o Aurelião voou. Sim, atirei o Aurelião de capa dura na cabeça dela.
A gente aguenta tudo, não é delegado, menos elas quererem saber mais do que a
gente.
Arrogância intelectual, não.
— Luis Fernando Verissimo, no livro “Os últimos quartetos de Beethoven e
outros contos”. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
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