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sexta-feira, 14 de novembro de 2014

LEITURA E ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL? SIM OU NÃO?





Sandra Bozza
www.sandrabozza.com.br
Devemos alfabetizar antes dos seis anos?
Não é prejudicial ao desenvolvimento da criança introduzi-la muito cedo no mundo da escrita?
Quando devemos iniciar o processo de alfabetização?
Depende de como concebemos a alfabetização.
Se o conceito que temos é aquele no qual a alfabetização é tomada como a aquisição do código escrito, cujo princípio norteador está vinculado à concepção estruturalista de linguagem e à concepção inatista e/ou ambientalista de aprendizagem, a resposta a esses quesitos, obviamente, seria não, pois antes dos seis anos as estruturas mentais do indivíduo não possibilitariam a ele a apropriação significativa das estruturas escritas da linguagem. Em outras palavras, as crianças, em função de seu desenvolvimento cronológico, não teriam maturidade suficiente para aprender operações tão complexas.
 Se, ao invés disso, entendemos a alfabetização como aquisição da língua escrita, a resposta óbvia seria sim. Desde o nascimento! Essa seria a resposta mais coerente com a concepção sócio-histórica de linguagem e aprendizagem que temos estudado e defendido.
Se nossas crianças nascem em uma comunidade letrada, desde seus primeiros contatos (sistemáticos ou não) com a escrita já estão sendo alfabetizadas e as noções adquiridas sobre a escrita contribuem para que ela elabore conceitos fundamentais para a leiturização, como por exemplo, para que serve a escritao que a escrita representa e onde podemos utilizá-la. 
No entanto, conceber a aquisição da escrita por essa via pressupõe o estabelecimento de uma definição do termo alfabetização, aqui empregado como sinônimo de letramento, e não somente como aquisição do código gráfico.
Na acepção aqui abordada, o termo alfabetização é tomado como a aquisição da língua escrita, sendo, por esse motivo, a apropriação escrita de uma unidade de sentido da linguagem que é o texto. O texto em seu caráter dialógico, através do qual o sujeito lê, compreende e representa o mundo em suas relações societárias. O texto em seu caráter discursivo, por meio do qual o sujeito toma conhecimento e assume posições perante fatos sociais. O texto em seu caráter literário, onde tudo é permitido e onde viver não obedece a regras pequenas como a dos homens. Enfim, o discurso produzido historicamente e materializado através da palavra escrita. Ou, uma compreensão da linguagem escrita como algo vivo e eminentemente político. A que assume a mesma importância que a fala para Bourdieu: “A linguagem não é utilizada somente para veicular informações (…). O poder da palavra é o poder de mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e concentrá-la num ato linguístico”.
Dessa forma, dada a sua importância e a sua necessidade, o que pretendemos defender é que esse processo inicie o mais cedo possível, pois, nesta perspectiva, a aprendizagem precede o desenvolvimento, isto é, para se desenvolver é preciso aprender, inclusive a ler e a escrever, e não o contrário: não há necessidade de se aguardar a maturidade. É preciso produzi-la.  E produzir maturidade significa mobilizar processos intencionais de mediação.
Todavia, ainda são inúmeras as vozes que se alteiam defendendo o fato de que é preciso respeitar o tempo de cada criança, de que é prejudicial iniciar um trabalho tão complexo como esse, sem antes preparar a criança com exercícios de psicomotricidade ou, ainda, que existem conceitos mais elementares a serem ensinados antes de se ensinar a ler e a escrever.
O que temos percebido sobre essa polêmica é que existem duas vertentes daqueles que se declaram contrários a alfabetizar na educação infantil: ou as pessoas acreditam na maturidade como resultante do desenvolvimento bio-cronológico e não admitem queimar etapas tidas como imprescindíveis ao desenvolvimento infantil ou concebem o desenvolvimento como construção espontânea e, portanto, sem necessidade de mediação, cuja atuação desvirtuaria o processo em andamento, pois o aluno deve aprender testando suas hipóteses.
De qualquer forma, o que é preciso ficar registrado, neste momento, é que também condenamos a mecanização de letras, sílabas e palavras sem a compreensão por parte da criança do que elas representam. Isso, de fato, seria exigir uma habilidade que pouco contribuiria para o desenvolvimento da competência linguística que se pretende e, consequentemente, para o desenvolvimento intelectivo da criança.
O que pretendemos clarear nesse espaço é o fato do ensino da linguagem escrita ser muito mais amplo do que o trabalho de ensinar a traçar símbolos e a estabelecer a correspondência gráfico-sonora (letra/som) entre os mesmos. A apropriação da língua escrita, bem como a compreensão de seu funcionamento, necessita muito mais do que o simples desenvolvimento da motricidade e da memorização. Muito antes de escrever ortograficamente, o aprendente da escrita precisa consolidar conceitos linguísticos básicos, que ousamos arrolar a seguir:
  • Função social: para que serve a escrita, onde é utilizada, qual sua importância social, quem a utiliza, de que forma os diferentes segmentos sociais a utilizam…
  • Relação oralidade/escrita: que a escrita é a representação da fala, isto é, que tudo que se fala pode ser escrito e vice-versa.
  • Ideia de representação: que é possível representar o mundo físico e abstrato através de diferentes linguagens: gestos, desenhos, dobradura, fotografia, filme, escultura, modelagem etc. Enfim, explicitar o conceito de que representar é utilizar um símbolo no lugar de algo.
  • Sistema de representação: a escrita é uma representação de segunda ordem. Não representa diretamente o objeto (ou ideias). Ela é uma representação dos sons que compõem as palavras que nomeiam os objetos/ideias.
  • Diferença entre as linguagens: que apesar de uma ser a representação da outra, cada linguagem tem leis próprias e que devem ser respeitadas para que o ato interativo se efetive através da escrita.
  • Direção escrita: que se escreve, no mais das vezes, da esquerda para a direita e de cima para baixo.
  •  Alfabeto como conjunto próprio da escrita: com apenas 26 letras pode-se escrever qualquer palavra.
  • Outros sinais gráficos da escrita: que com apenas as letras é impossível veicular ideias. São necessários sinais diacríticos (de acentuação, pontuação e gráficos).
  • Espaçamento: embora seja a representação da fala, a escrita necessita de espaçamento entre as palavras, fato que na oralidade não existe: fala-se em fluxos contínuos e os segmentos sonoros são determinados pela unidade de sentido, separados por pausas e não pelas palavras.
  • Unidade temática: que todo texto se propõe a discorrer sobre aspecto específico e com intenção determinada.
  • Unidade estrutural: que dependendo da intenção e do tema, a forma do texto tende a apresentar uma estrutura específica, determinando o gênero especial do mesmo.
Esses conceitos são tidos como imprescindíveis para que o sujeito elabore uma base sólida para o letramento.  Letrar-se é uma condição indispensável à inserção do sujeito em uma sociedade cujas bases se respaldam, principalmente, nas atividades escritas. Se a escola prima por uma aprendizagem significativa, viva e dinâmica, não há como essa instituição se imiscuir de iniciar o processo de letramento desde a fase berçária da criança. Ou seria impossível cantarmos, lermos histórias, apresentarmos livros e materiais escritos para esses bebês? E o que seria isso que não a introdução deles no mundo letrado?
“Ah! Mas isso é diferente!” poderiam arguir alguns.
Por quê? Por acaso os bebês somente ouvem, são passivos, não agem sobre esse ato dialógico? Eis aí mais um conceito a ser clarificado. Nenhum ouvinte é passivo. Ainda que completamente calados ou lacônicos, sempre haverá interação entre ouvinte/leitor, texto/discurso e falante/autor.
O ato de ouvir (seja música, ordens, adivinhas, notícias ou uma história) coloca em prontidão e exercício todas as capacidades superiores do cérebro: memória, atenção voluntária, inferência, abstração, generalização e a própria linguagem. Essas capacidades, uma vez ativadas, não só ampliam significativamente o potencial cerebral, como, acima de tudo, consolidam habilidades que servirão como base de referência para a aquisição de habilidades mais complexas. E esse processo, de caráter espiral e infinito, tende a se repetir e aprofundar-se conforme o nível de mediação nele presente.
Não somente pesquisas acadêmicas, mas nosso acompanhamento ao trabalho de babás, atendentes e educadores infantis, tem comprovado que as práticas de leitura e contação de histórias, de recitação de quadrinhas, adivinhas e parlendas e a cantoria de músicas de agradável melodia têm se mostrado eficazes no que diz respeito ao desenvolvimento da capacidade de atenção e comunicação de crianças cada vez mais novas. Da mesma forma, a intimidade das crianças com material escrito e o manuseio de diferentes portadores de textos, sempre mediados por aqueles que leem ou escrevem por/para elas servem de base para seus gestos quando em atividades gráficas coletivas ou individuais.
Quanto às crianças de quatro a seis anos, quando têm suas atividades sobre a escrita organizadas em torno do eixo USO > REFLEXÃO > USO, isto é, quando o objeto de estudo é retirado do cotidiano social (USO), refletido em suas diferentes instâncias (código/forma e significado/ideia – REFLEXÃO) e devolvido à sociedade sob a forma de escrita (USO), mesmo que coletivamente, estarão formando um bom lastro para a caminhada infinda da aprendizagem da língua escrita. Em outras palavras: em qualquer fase da educação infantil (como de resto de todo ensino) podemos ler e escrever pela criança, para a criança e com a criança. Até que ela consiga fazer isso sozinha.
Nesse sentido, os Parâmetros Curriculares Nacionais (vol. 2) afirmam que para aprender a ler é preciso: pensar sobre a escrita; pensar sobre o que a escrita representa; pensar como a escrita representa graficamente a fala. Para isso, o aluno precisa ler, embora ainda não saiba ler e escrever, apesar de ainda não saber escrever. Talvez se origine desse conceito a insistência que se percebe em algumas propostas curriculares quanto à prática do texto coletivo (a professora como escriba do aluno) e à prática intensa da leitura oral, feita pelo professor, com ritmo, fluência e entonação adequados.
Em nenhuma das atividades supracitadas é exigido da criança que ela escreva ortograficamente ou leia com fluência. O que está proposto é que ela viva imersa no mundo da escrita para que possa perceber sua importância, sua utilidade na sociedade e vá compreendendo, com o uso, seu funcionamento.
Desta forma, sensibilizada para a importância da escrita e para a possibilidade de interagir socialmente através dela, é da criança que parte a necessidade (por muitos tida como curiosidade natural) de perguntar cada vez mais frequentemente sobre os fatos linguísticos: Como eu faço tal letra? Como se escreve tal palavra? É com X ou com CH? Como se escreve o nome da vovó? O que está escrito aqui (alguns rabiscos ou letras traçadas aleatoriamente pela criança no papel)?
A nosso ver, elas só chegam a esse estágio de questionamento se consolidaram os conceitos supracitados e sentem a necessidade de avançar. Percebem a possibilidade e a riqueza de ampliarem seus domínios e horizontes por meio da leitura e da escrita. Esse fato trará como resultado um progresso intenso do processo alfabetizador, bem como a ampliação intelectiva facilmente constatada pela capacidade de estabelecer relações, da rapidez no raciocínio lógico, da facilidade de abstração e da memorização e a ampliação da linguagem oral.
Por essas e por outras questões que não puderam ser contempladas neste espaço de discussão (como o ingresso e a permanência da criança na escola) é que não acreditamos precoce se alfabetizar na educação infantil. E nossa práxis com essa faixa etária nos comprova que todas as outras habilidades, atitudes e necessidades poderão ser trabalhadas simultaneamente às ações de alfabetizar.
Para finalizar, é interessante salientar que o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (vol. 3, pág. 131) aponta para essa direção, principalmente em seus objetivos, não só para crianças de quatro a seis anos, como também para os de zero a três anos de idade. Da mesma forma, sua concepção de aquisição da linguagem escrita, reitera essas questões quando afirma:
… a aprendizagem da linguagem escrita é concebida como:
  • A compreensão de um sistema de representação e não somente como aquisição de código que transcreve a fala;
  • Um aprendizado que coloca diversas questões de ordem conceitual, e não somente perceptivo-motoras, para a criança;
  • Um processo de construção de conhecimento pelas crianças por meio de práticas que têm como ponto de partida e de chegada o uso da linguagem e o livre trânsito pelas diversas práticas sociais de escrita.”
Assim, o que gostaríamos que tivesse ficado clara é a possibilidade, bem como a necessidade, colocada pela sociedade e pelos avanços teóricos nas áreas da Psicologia e da Linguística a respeito desta desnecessária celeuma: é possível e necessário se alfabetizar na educação infantil.  Outro intento nosso, que subjaz ao primeiro, seria a conclamação dos educadores, agora não só da educação infantil, para uma grande e coerente mobilização para a melhor compreensão de que seja, de fato, ensinar a ler a escrever. Para tanto, respaldamo-nos mais uma vez em Vygotsky quando afirma “Se quiséssemos resumir todas essas demandas práticas e expressá-las de uma forma unificada, poderíamos dizer que o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita e não apenas a escrita de letras”.
Sandra Bozza
Mestre em Ciências de Educação
Professora de Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa
Autora de livros técnicos e didáticos
Formadora de Educadores em Língua Portuguesa, Avaliação e Leitura