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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

100 anos da Semana de Arte Moderna

No centenário da Semana de 22, debates virtuais discutem o legado modernista e sua relação com as culturas indígenas que tanto influenciaram esses artistas

 

Há 100 anos, acontecia em São Paulo, a Semana de Arte Moderna, também conhecida como Semana de 22. Entre exposições de arte e sessões de música e literatura, o Theatro Municipal de São Paulo recebeu alguns dos artistas mais importantes da época para apresentações e debates sobre os rumos da arte no país. Influenciados pelas vanguardas europeias, mas também em busca de raízes nacionais e populares, esses artistas propunham experimentações e uma renovação nas linguagens artísticas brasileiras. Entre os nomes da literatura no período, temos autores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e Graça Aranha. Nas artes plásticas, destaque para Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Victor Brecheret, além de Heitor Villa-Lobos, na música.

 

Comemorando seu centenário neste mês, a Semana de 22 tem sido tema de uma série de debates e palestras por todo o país. Presente no Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, e em obras como Macunaíma, de Mário de Andrade, a influência indígena tem aparecido em muitas das reflexões sobre o modernismo brasileiro. Acompanhamos as discussões e reunimos algumas das reflexões feitas por artistas e estudiosos, indígenas e não-indígenas.

 

Reantropofagia

 


“Não há dúvida de quanto as culturas indígenas foram importantes para o movimento modernista de 22 sobretudo em sua segunda fase. As conquistas mais radicais do modernismo paulista se deram pelo contato desses artistas com as culturas dos povos originários do Brasil”, diz a professora Lúcia Sá, da Universidade de Manchester, no ciclo de encontros 1922:modernismos em debate, evento organizado pelo Instituto Moreira Salles, Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC) e Pinacoteca de São Paulo, e realizado ao longo de 2021. Ela também afirma que o Manifesto Antropófago é resultado de estudos das fontes coloniais sobre a cultura tupi. “A antropofagia que esses povos praticavam traz a ideia de que ingerir ritualisticamente o inimigo os ajudava a adquirir a sua força, mas também, como vem sendo analisado hoje em dia, a adquirir a diferença em si, para incorporar o outro na sociedade.”

 

Já o livro Macunaíma, de Mário de Andrade, publicado em 1928 – no mesmo ano que o Manifesto Antropófago –, é para a pesquisadora uma colcha de retalhos: ele une ditados populares a cenas do folclore europeu, mas sua base são narrativas indígenas coletadas pelo pesquisador alemão Theodor Koch-Grümberg. “De lá saem as citações, as situações e, sobretudo, o tipo de herói que é o Macunaíma. É das culturas indígenas que sai o que é mais revolucionário do modernismo brasileiro”, aponta Lúcia. Ela retoma a análise do crítico Benedito Nunes de que a antropofagia é, para os modernistas, ao mesmo tempo, diagnóstico e proposta de cura. “Para as elites brancas era penoso pensar que o Brasil era formado por culturas não modernas e a antropofagia é o significante maior dessa ‘barbaridade’. Os modernistas constatam o problema e oferecem a própria antropofagia como cura, transformando-a no signo do que é a brasilidade em si. Invertem o processo para celebrar culturas indígenas, mas fazem isso utilizando um processo colonial”.

 

Numa resposta à antropofagia modernista, o artista indígena Denilson Baniwa pintou a cabeça de Mário de Andrade em uma bandeja. Ele explica que considera o quadro uma vingança ritual à apropriação que o autor fez do mito Makünaimî, de seu povo. “Na ética baniwa, só se pode devorar um igual, só fazemos um troféu se o devorado for parecido em coragem, força, inteligência, sagacidade”, explica. Em sua antropofagia pela arte, Denilson considera os modernistas iniciados, mesmo que não sejam indígenas, e com quem é possível, portanto, aprender e incorporar.

 

“O problema é que é impossível aprender a arar lendo livros”, diz ainda o artista baniwa. Ele explica que os modernistas se informaram sobre o mundo indígena apenas pelos livros, geralmente escritos por outros brancos. “Como pensar a experiência indígena se não foram a uma aldeia? Não é possível aprender tudo pelos livros.” (Confira o encontro com o artistaDenilson Baniwa e a professora Lúcia Sá).

 

Formas de narrar

 

No evento “Centenário da Semana de Arte Moderna”, organizado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Sheila Praxedes Pereira Campos, professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR), defende que a linguagem moderna de Mário de Andrade em Macunaíma é também influência das narrativas indígenas. “Ele usa a narrativa indígena não como narrativa exótica, mas de vanguarda. Ele toma esse modo de narrar como base para seu projeto nacionalista”, explica a docente. Entre os exemplos dessas estruturas usadas nas narrativas tradicionais indígenas e aproveitadas por Mário de Andrade, ela cita a ausência de linearidade na construção espaço-tempo, a alteração aleatória entre personagens ou espaços e os personagens polimorfos, entre outros. Para ela, Mário tinha consciência da apropriação que fazia e de sua busca por transformar um discurso que se queria popular em culto.

 

Ela ainda lembra uma narrativa recente do artista indígena Jaider Esbell, que se autointitula neto de Makunaima – com k –, publicada na Revista Iluminuras, em 2018. O artista narra suas conversas com esse avô, que conta ter se “grudado” na capa da obra de Mário de Andrade de forma intencional, pois sabia que, com isso, sua vida ganharia outra dimensão e ajudaria a propagar a causa indígena. “Essa interlocução mostra como as vozes vão conversar e como nesse Mário tudo assume uma multiplicidade, se mistura e traz à tona questões em torno da narrativa indígena.” (Confira a mesa com a professora Sheila Praxedes PereiraCampos).

 

Pedro Coelho Fragelli, pesquisador de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), também fala sobre o uso dos elementos indígenas feitos de forma vanguardista por Mário de Andrade. “Ele extrai elementos, reagrupa em uma nova ordem e cria um texto com um significado diferente do original. Ele mobiliza os materiais como artista moderno e seu modo de usar esses deslocamentos e reorganizações criadoras lembra as técnicas vanguardistas de colagem.”

 

Dessacralização de mitos

 


O distanciamento, a dessacralização e o uso muitas vezes irônico que Mário faz do mito indígena também faz parte dessa arte moderna. “Trata-se de uma obra literária, não etnográfica, portanto, não há problemas em misturar e inventar a partir de uma narrativa mítica. Não se trata de desrespeito, mas de um exercício de liberdade.”

 

O pesquisador ainda responde a críticas de que ao associar o personagem Macunaíma à preguiça, Mário de Andrade estaria reforçando preconceitos e estereótipos contra os indígenas. Segundo ele, Mário via na preguiça uma forma de trabalho, um exercício da imaginação e de onde surge a arte. “O elogio à preguiça, para Mário, é anterior ao Macunaíma, e uma recusa ao positivismo e à civilização da máquina”, diz. Assim, a preguiça teria um outro significado para o autor, sendo o fundamento de um outro modo de ser e de uma civilização contrária à do dinheiro. (Confira a mesa com o pesquisador Pedro Coelho Fragelli).

 

Se as discussões sobre a Semana de 22 e a influência indígena não se esgotam, a reflexão do escritor indígena Daniel Munduruku pode nos levar a novos pontos de partida: “em 1922 não estávamos e hoje nós estamos? Estamos de fato nas instituições, nas universidades e nos governos, como participantes? O fato de alguns indígenas terem reconhecimento não significa que os povos indígenas estejam com seus direitos garantidos na sociedade brasileira.” (Confira a mesa com oescritor Daniel Munduruku).

 

Texto Publicado no site Escrevendo o futuro

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