PERDER, GANHAR, VIVER
Carlos Drummond de Andrade
Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final
do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos
verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis
que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças
festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus
corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso
da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto
o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos
traidores da pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração
por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da
classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma
causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi
a decepção controlada do presidente, que se preparava, como torcedor número um
do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois
de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação
aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha
eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante
da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das
eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmuIas e
símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela quarta
vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da
limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da
esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas...
Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca
estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é
afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória estabelece o
jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão
de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo
o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos,
que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de
detritos: começar de novo.
Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa
Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado
infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao
absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais
científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas
para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e
inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá
pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher
um objeto roubado.
A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não
trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito
de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos
para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio
futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou.
Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma
experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.
Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas,
readquirimos ou adquirimos, na maioria das cabeças, o senso da moderação, do
real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida.
Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão
a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se.
Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana
e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o
viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria
enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua
doçura solidária.
Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do
Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas
dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.
E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a
trabalhar, que o ano já está na segunda metade?
(Jornal do Brasil,
07/07/1982)
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