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quinta-feira, 2 de maio de 2019

Reinventar o 18 de maio em memória de Araceli


Em memória de Araceli, cabe-nos a tarefa de reinventar o 18 de maio para fazer dele um clamor por justiça social, democracia e direitos humanos. E isto só será possível se as mobilizações e ações pelo Brasil afora tenham um olhar mais atento aos fatores que geram a violência sexual contra crianças e adolescentes

Chegamos ao mês de maio em que novamente o dia 18 foi reavivado como Dia Nacional de Enfrentamento do Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes. Como nas 18 edições anteriores, neste ano os entes estatais e a sociedade civil estão a planejar e implementar diferentes medidas mobilizatórias, educativas e sensibilizadoras para colocar em debate a violência sexual contra crianças e adolescentes.

Mas estes são tempos de avanço do conversadorismo político (militar e religioso) no governo federal e no Congresso Nacional (e em diferentes entes em níveis municipal e estadual), e por certo na gestão dos direitos de crianças e adolescentes. Na véspera da chegada do mês de maio o presidente Jair Bolsonaro fez um discurso discriminando o que chamou de “turismo gay” e incentivando “quem quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”, assim forjando mais um discurso de homem-branco-burguês-heterossexual naturalizando a exploração sexual contra as mulheres, incluindo crianças e adolescentes. Conjugado a isto, tem-se a proliferação de discursos de ódio contra sujeitos e movimentos sociais que representam as identidades subalternizadas, criminalizadas e exterminadas, incluindo os ataques aos movimentos de mulheres que historicamente estiveram ligados a defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Logo, é preciso refletir se a própria linha política do 18 de maio não estaria seguindo a mesma onda conversadora.

Por certo, não podemos localizar esta guinada conversadora nos direitos de crianças e adolescentes apenas ao momento atual, ou emergindo com a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República. A onda conversadora da aplicação e interpretação destes direitos já existe há bastante tempo, com: (1) a instrumentalização dos cargos de conselheiros tutelares por organizações religiosas e partidos políticos – diria que o coronelismo político-religioso municipal, em muitos locais, começa justamente pelo Conselho Tutelar, e vai se expandir ainda mais com a mudança normativa que permite reeleições ilimitadas, via Lei n. 13.824/2019, e com autorização para porte de arma por conselheiros tutelares, definida no Decreto n. 9.785/2019; (2) os usos cada vez mais punitivistas das medidas socioeducativas, em que 70% das sentenças judiciais são para aplicação de medida de internação, segundo levantamento do antigo Ministério dos Direitos Humanos em 2016, transformando em hegemônica o que deveria ser a exceção dentre as seis medidas socioeducativas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), com o beneplácito ideológico de uma ampla parte de promotores de justiça e juízes; (3) o cerceamento da liberdade da docência nas escolas públicas, com a ameaça de criminalização a muitos docentes, feitas pelos próprios discentes e patrocinadas pelos apoiadores da Escola Sem Partido; (4) ainda no campo da educação escolar, o aumento do número de escolas militarizadas, em que a educação para a obediência ganha ares de panaceia para os problemas estruturais da educação pública, isto sem falar nos cortes orçamentários generalizados nas políticas educacionais; (5) o descompromisso de gestores públicos para com a manutenção de condições adequadas de operação e orçamento dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, e, quando muito, a instrumentalização política para atuarem como órgãos de apoio político à gestão governamental, e não de controle social dela.

No caso da violência sexual, já há algum tempo advogo que o debate sobre o tema, quando restrito unicamente à análise e discussão da violência em si, acaba desconsiderando toda uma série de conteúdos relativos aos direitos sexuais de crianças e adolescentes que problematiza os aspectos positivos da promoção da sexualidade infanto-adolescente com responsabilidade, segurança e autonomia. Sob um discurso de que este tema não pode ser tratado com crianças e adolescentes, pois seriam ainda muitos novos e “facilmente influenciados”, escamoteia-se toda uma reprodução adultocêntrica da infância e da adolescência como seres imaturos e incapazes de ligar com conhecimentos e sentimentos, enfim, com seus corpos e sexualidades, de modo a colocar um interdito onde deveriam frutificar espaços de diálogo para a melhor compreensão das relações de gênero, das sexualidades e dos aspectos protetivos que engendram estas discussões.

O que passa no campo dos direitos de crianças e adolescentes, com o avanço do conservadorismo político (religioso e militar), é cada vez mais o tratamento individualizante, de viés moralista, dos casos atendidos pela rede de proteção e o crescimento dos usos punitivista, discriminatório e tutelar dos “novos direitos” surgidos com a Constituição Federal de 1988.

Por tratamento individualizante concebo o modo como se trabalha as condições de garantia ou violação dos direitos de crianças e adolescentes desconectado dos fatores sociais, econômicos e culturais da sociedade, sobretudo sem problematizar os efeitos cada vez mais deletérios da desigualdade socioeconômica (ante ao avanço do capitalismo neoliberal, proporcional à redução do Estado no atendimento de políticas sociais, consequência previsível desde a implantação da Emenda Constituição n. 95/2016) e da associação deste primeiro elemento com o patriarcado, a LGBTIfobia, o racismo, a intolerância religiosa, o adultocentrismo, entre outras opressões sociais.

O isolamento do atendimento de determinada violência à análise restrita da relação agressor-vítima ou criança-família, tende a promover medidas de responsabilização penal-civil aos agressores (quando não a impunidade por seus atos violentos, assim como a ineficácia de ressocialização na internação/prisão) e de correções morais às famílias, muitas vezes travestidos em discursos de fortalecimento dos vínculos familiar. Porém, muito pouco sobre a problematização de como precisamos transformar nosso modo de viver em sociedade para que não fiquemos só atenuando os efeitos (a violência ou a vulnerabilidade) de questões sociais com causas mais complexas.

E isso se liga aos usos cada vez mais correntes dos “novos direitos” das crianças e dos adolescentes pelo triplo viés: punitivista, tendo por sujeitos preferenciais os/as adolescentes negros/as, e com o boom de aplicação após a implantação da normativa de (des)criminalização do consumo e tráfico de drogas; discriminatório, sobretudo às diversidades étnicas, raciais, sexuais e de gênero do “ser criança e adolescente”, em que opera a lógica universalista ou ideal de se hierarquizar as infâncias e adolescências, associado ao paternalismo adultocêntrico e patriarcal que ora as colocam numa redoma de proibição à aprendizagem de conhecimentos fundamentais para suas vidas, ora forjam o imaginário que justifica as violências, sobretudo as sexuais, que seus pais, familiares e outros agentes sociais realizam contra seus corpos infanto-adolescentes, mas também corpos marcados por relações desiguais de gênero, sexualidade, raça/etnia e classe social; e tutelar, pautada na desconsideração à opinião, participação e mobilização social de crianças e adolescentes, cada vez mais atuando um discurso criminalizador das ações sociais promovidas por grupos organizados de crianças e adolescentes, vistas pelos adultos como riscos à ordem pública e passíveis de repressão policial e judicial.       

Por tudo isso, nossa tarefa neste 18 de maio de 2019 torna-se ainda mais desafiante para repensar e reinventar os sentidos sociais e organizacionais desta data, de modo a faze-la um marco simbólico para a mobilização em prol do avanço dos direitos (sexuais) de crianças e adolescentes, e não a reprodução do conservadorismo político e moral. Para tanto, é preciso olhar para o futuro com a vívida memória do passado e da razão de existência desta data. É necessário, portanto, lembrar de Araceli, a menina de 8 anos que no dia 18 de maio de 1973, na cidade de Serras, no Espírito Santo, foi vítima de rapto e posteriormente sofreu uma série de atrocidades contra seu corpo, sexualidade, identidade e, finalmente, vida; um caso que até hoje não responsabilizou os culpados, ainda que três homens tenham sido inicialmente responsabilizados (num processo judicial que demorou quatro anos para ter a sentença), todos membros de famílias de grande poder econômico e político, e que posteriormente foram absolvidos pelo Tribunal de Justiça.

Com isso, nos lembramos que o 18 de maio é uma data para marcar a revolta contra as violências que mutilam corpos, desfiguram rostos e dilaceram projetos de vida. Mas tais violências não são autoexplicativas, elas foram geradas numa sociedade que coisifica os corpos de crianças e adolescentes em associação aos seus marcadores de gênero, de sexualidade e raça, para faze-los objetos de desejos sexuais alimentados por construções de masculinidade que normalizam a dor e o sofrimento da mulher, por um adultocentrismo que silencia a voz dos mais novos e por uma desigualdade social que torna o poder político-econômico de determinadas famílias um salvo conduto para a impunidade, a coação e a corrupção – numa corrupção moral que banaliza a vida e os direitos para manter a ordem socialmente favorável aos que se beneficiam econômica, política e sexualmente de crianças e adolescentes.

A memória de Araceli precisa ser canalizada para nos indignar contra os que comentem violências sexuais contra crianças e adolescentes, mas também contra os que permitem a reprodução do adultocentrismo, do patriarcado, do racismo, das desigualdades sociais e das impunidades, sobretudo quando instituídos em funções de Estado, a exemplo do atual presidente da República. Só que é preciso ir mais além disso, nos colocarmos em ação para discutir medidas viáveis para materializar os direitos sexuais de crianças e adolescentes respeitando a laicidade do Estado e a prioridade absoluta da proteção integral destes direitos.

Em memória de Araceli, cabe-nos a tarefa de reinventar o 18 de maio para fazer dele um clamor por justiça social, democracia e direitos humanos. E isto só será possível se as mobilizações e ações pelo Brasil afora tenham um olhar mais atento aos fatores que geram a violência sexual – e que permitem sua manutenção e impunidade – e à concepção mais ampla dos direitos sexuais e dos direitos de crianças e adolescentes, compreendendo-os no contexto de nossa sociedade marcada pela presença histórica de múltiplas opressões sociais que se concentram nos corpos infanto-adolescentes.

Por Araceli, é tempo de fazermos integrar nesta luta também o enfrentamento à estas opressões sociais, em articulação com uma diversidade de movimentos e organizações sociais, incluindo ativamente os organizados por crianças e adolescentes, e de pressionar para que o Estado assuma suas responsabilidades com a criação e/ou melhoria de políticas públicas e de orçamentos adequados para custeio, assim como repense as formas de promover os direitos antes de tratar (ou fomentar) as violências.

Assis da Costa Oliveira



Assis da Costa Oliveira é Professor da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de Altamira. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA. Graduado em Direito pela UFPA. Coordenador do Grupo de Trabalho Direitos, Infâncias e Juventudes do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. Advogado.

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