Marcel
Camargo
“Preste
atenção, o mundo é um moinho. Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho. Vai
reduzir as ilusões a pó.” (Cartola)
Por mais que nossos pais e a
vida tentem nos ensinar, teimamos em nos achar incólumes à passagem do tempo e
às cobranças que teremos de enfrentar quando sentarmos à mesa do banquete das
consequências. Inúmeros artigos, filmes, poemas, romances, novelas embasam a
sua trama na semeadura a que não podemos fugir, na certeza inconteste de que
fatalmente ficaremos cara a cara com o resultado das escolhas feitas em nossa
jornada. Na natureza e na vida, não se colhe aquilo que não foi semeado, como
nos tentaram ensinar desde o jardim de infância.
Ao adolescente, que se acha
imortal, raramente projeta o futuro e está em processo de formação, ainda
podemos dispensar um olhar mais condescendente pelas escolhas erradas e
comportamentos inadequados, mas e quanto aos adultos já criados, estudados e
formados, supostamente amadurecidos pelos tombos acumulados e que continuam a
ignorar o outro e tudo que o cerca, em vista de seus próprios objetivos? Por
que muitos de nós persistimos a errar e errar de novo, pisando vidas alheias,
tomando o que não é nosso, traindo a quem nos ama, vendendo nossa integridade
em troca de favores?
O pouco caso em relação ao
outro desencadeia consequências nefastas, que minam qualquer harmonia desejável
entre as pessoas, pois, nesse caso, o alcance do raio das ações estende-se por
muito tempo. Quem age de forma antiética acaba, por isso mesmo, desencadeando
uma sucessão de cicatrizes, em si e nos demais, tolhendo os direitos de um todo
muito mais abrangente, ou seja, o mal acaba se tornando ilimitado, pois se
agiganta além de quaisquer domínios. Espanta-nos, pois, o fato de que muitos
ajam dessa forma deliberada e conscientemente, a despeito da existência e dos
sentimentos alheios.
A invisibilidade de que se
reveste o outro, em tudo o que ele é e em como se sente, desencadeia atitudes
de intolerância para com tudo o que foge à visão que se tem de mundo, mesmo que
distorcida. Tornou-se comum o julgamento agressivo, em tom de repúdio, às
escolhas do outro, às escolhas a que todos temos direito, pois a verdade
egoísta deve ser a única possível e a única a ser aceita socialmente, para que
o caminho se torne livre e mais fácil aos egoístas de plantão.
O poder é mesmo afrodisíaco,
como dizem, e deve ser conquistado a qualquer preço, a despeito de quaisquer escrúpulos,
apesar de toda ferida que em seu nome é deixada pelos caminhos. Essa busca
desenfreada por mandar na vida do outro encontra-se presente, inclusive, na
história da humanidade, cujos sucessivos episódios marcam-se pela dominação de
povos e consequente aniquilação daquilo que contraria e emperra o
estabelecimento de uma verdade homogênea – a verdade dos poderosos tão somente,
visando à manutenção do “status quo”.
Ignora-se, nesse contexto, que
o tempo costuma desestabilizar o que está instituído, pois a vida questiona
sempre, pulsa por não se acomodar, por revelar verdades, por dissolver as
incertezas e neutralizar as injustiças sociais. Assim é na vida, assim é em
casa, no trabalho, na rua. Nada está posto para sempre, tudo está ainda por
terminar – eis o fluxo da dinâmica da vida, que se movimenta à maneira das
correntezas, com maior ou menor intensidade, mas de maneira intermitente.
Quando no topo, no poder, seja
na política, no trabalho, em qualquer situação, a maioria das pessoas parece se
esquecer de que aquela situação é transitória, de que em breve voltará ao seu
lugar de origem e terá que conviver novamente, de igual para igual, com aqueles
que eram seus subordinados. Quem estava no poder terá, então, que encarar de
volta o resultado de suas ações e será tratado pelos colegas de acordo com o
que plantou lá de cima. Infelizmente, já poderá ser tarde demais para tentar
reatar relacionamentos e amizades que se romperam, para reerguer uma imagem
largamente maculada ou para restabelecer uma dignidade esquecida e ignorada.
Da mesma forma, no dia a dia,
o tratamento que dispensamos a quem nos rodeia torna-se tão frio e desumano
quanto o conjunto de nossas ambições e vaidades, enquanto nos concentramos na
perseguição implacável de ascensão e status social. Com esse objetivo, muitas
vezes nos aproximamos de novas – e falsas – amizades, consonantes com nossas
intenções mesquinhas, distanciando-nos das pessoas que verdadeiramente se
importam conosco e nos amam pelo que somos – se bem que o que somos então vai
deixando de sê-lo. Quando, e se, percebermos a mentira sufocante a que nos
submetemos e precisarmos da ajuda daqueles que sempre estiveram conosco,
estaremos fadados a possivelmente estendermos as mãos e encontrarmos um vazio
frio e desolador.
Os pais, os professores e os
amigos bem que tentam nos ensinar, com paciência e dedicação, a pautarmos
nossas ações por valores éticos, dignos, sem perder de vista o fato de que não
estamos sozinhos, ou seja, o que fazemos e somos faz parte de um todo que deve estar
harmonizado, para o bem comum e coletivo. Felicidade solitária não se sustenta
por muito tempo; máscaras costumam cair; a toda ação corresponde uma reação, de
mesma sintonia – frases que, de tão repetidas e disseminadas, parecem ter se
banalizado. Felizmente, mesmo quando todos já tiverem desistido de nós, a vida
persistirá e virá nos ensinar, sem rodeios e sem nos poupar de sofrimento. Cedo
ou tarde, seremos cobrados pelo que fizemos, pelo que dissemos, pelo que
criamos ou destruímos, porque ninguém fugirá às mudanças, às rupturas, ao novo,
ao fim do dia, ao amanhecer, por mais que isso doa. Porque ninguém fugirá ao
enfrentamento da verdade daquilo que se é.
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