Por Octavio
Caruso
Ensaio Sobre a
Cegueira (Blindness – 2008)
O genial português José Saramago estabelece em seu livro uma relação de
confiança com o leitor. Ele sempre incentiva em seu estilo único uma leitura
caótica, fazendo com que o leitor se foque em cada palavra, cada linha, como um
cego tateando no escuro, buscando potencializar seus outros sentidos nesta
experiência. Logo nos primeiros parágrafos o autor nos apresenta sua alegoria:
motoristas ansiosos, dispostos a desrespeitarem os sinais vermelhos, caos
urbano. O elemento que serviria como gatilho para que esta transgressão
ocorresse seria a cegueira, pois ela incapacita a vítima de tomar decisões
impulsivas.
“O sangue,
pegajoso ao tacto, perturbou-o, pensou que devia ser porque não podia vê-lo, o
seu sangue tornara-se numa viscosidade sem cor, em algo de certo modo alheio
que apesar disso lhe pertencia, mas como uma ameaça de si contra si mesmo”.
A cegueira aparece nos momentos em que a consciência se acreditava
vencida por algum sentimento antagônico, por exemplo: o ladrão do carro, ao
questionar sua ação, o médico ao questionar inconscientemente sua capacidade de
resolver a questão do seu paciente, a jovem de óculos escuros ao encontrar-se
em um elevador com um casal de idosos apaixonados, enquanto ela subia para os
braços de mais um amante, levando-a a questionar suas ações e pensar, por um
breve momento, como seria caso escolhesse uma vida diferente, menos fútil.
A esposa do médico não ficou cega, a única que não foi tocada pela
escuridão, já que em nenhum momento duvidou de sua devoção ao marido,
especialmente nas provações mais difíceis, quando havia o hipotético risco de
ser algo contagioso. A analogia é clara, como expressada no discurso do médico,
desconcertado com a forma com que havia sido tratado ao falar no telefone com
um atendente de seu próprio consultório, percebe que havia perdido sua
autoridade, ele então esbraveja: “Isto é a humanidade? Uma massa, metade indiferente,
metade ruindade”. Não é por acaso que Saramago tenha escolhido um
manicômio, destino forçado para todos os cegos e possíveis infectados, como
microcosmo que simboliza a nossa sociedade.
Engraçado perceber, após ter lido muitas críticas dos norte-americanos
sobre o filme desde seu lançamento, que a maioria denota uma terrível
incapacidade de compreender alegorias. “Como aquele homem que ficou cego foi direto para casa,
sem tratamento hospitalar?”, “o filme é um insulto aos cegos”, entre outras
baboseiras. A “cegueira” como condição física tem pouco a ver com a mensagem
que Saramago procurou passar em seu livro, adaptado brilhantemente no filme
dirigido por Fernando Meirelles, que evidenciou o tom de fábula contemporânea,
mostrando os limites da racionalidade humana. O cineasta brasileiro encarou o
desafio sem concessões.
O domínio da arte é latente em vários segmentos, como na poderosa
sequência em que vemos o mundo pelos olhos dos personagens. A edição de Daniel
Rezende é digna de palmas, pois é dele um dos momentos mais poéticos: uma
criança, vítima da cegueira, caminha num dos quartos do manicômio,
aparentemente com poucos móveis, até que tropeça em algo, mas não vemos nada. É
quando a montagem adiciona ao frame os vários móveis existentes no lugar,
incluindo o causador do tropeço do menino. Julianne Moore realiza o melhor
papel de sua carreira, desnudando-se psicologicamente em frente à câmera. Gael
García Bernal mostra-se a necessária antítese perfeita do bom moço,
interpretado com muita sensibilidade por Mark Ruffalo.
Aqueles que leram o livro sabem das várias passagens complicadas de se
transpor em imagens, cenas em que a degradação humana atinge níveis
impraticáveis em sua bestialidade, mas o diretor de fotografia César Charlone
consegue traduzir este cenário apocalíptico da forma mais lírica possível, sem
perder o impacto necessário. Em alguns momentos o filme nos faz lembrar
“Dogville”, de Lars Von Trier, ou os famosos filmes de zumbis de George Romero.
“Ensaio Sobre a Cegueira” pode ser considerado um excelente filme de terror.
Eficiente por mostrar o horror real, aquele que se esconde nas sombras
de nossas personalidades. Basta trancafiar alguém em um quarto e não alimentar
a pessoa por várias semanas…
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