“Aí
está Minas: a mineiridade”: uma declaração de Amor do escritor João Guimarães
Rosa
Minas Gerais
Minas é a montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência,
a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região — que se escala.
Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de
serenidade. Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada
de epítetos: Alterosas, Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da
Abóbada, Suíça brasileira, Coração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heroica
Província, Formosa Província. O quanto que envaidece e intranquiliza, entidade
tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e História. De que
jeito dizê-la? MINAS: patriazinha. Minas — a gente olha, se lembra, sente,
pensa. Minas — a gente não sabe.
Sei, um pouco, seu facies, a natureza física — muros montes e
ultramontes, vales escorregados, os andantes belos rios, as linhas de
cumeeiras, a aeroplanície ou cimos profundamente altos, azuis que já estão nos
sonhos — a teoria dessa paisagem. Saberia aquelas cidades de esplêndidos nomes,
que de algumas já roubaram: Maria da Fé, Sêrro Frio, Brejo das Almas, Dores do
Indaiá, Três Corações do Rio Verde, São João del Rei, Mar de Espanha,
Tremendal, Coromandel, Grão Mogol, Juiz de Fora, Borda da Mata, Abre Campo,
Passa Tempo, Buriti da Estrada, Tiros, Pequi, Pomba, Formiga, São Manuel do
Mutum, Caracol, Varginha, Sete Lagoas, Soledade, Pouso Alegre, Dores da Boa
Esperança… Saberei que é muito Brasil, em ponto de dentro, Brasil conteúdo, a
raiz do assunto. Soubesse-a, mais.
Sendo, se diz, que minha terra representa o elevado reservatório, a
caixa-d’água, o coração branco, difluente, multivertente, que desprende e
deixa, para tantas direções, formadas em caudais, as enormes vias: o São
Francisco, o Paranaíba e o Grande que fazem o Paraná, o Jequitinhonha, o Doce,
os afluentes para o Paraíba, e ainda; — e que, desde a meninice de seus
olhos-d’água, da discrição de brejos e minadouros, e desses monteses riachinhos
com subterfúgios, Minas é a doadora plácida.
Sobre o que, em seu território, ela ajunta de tudo, os extremos,
delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na
fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as
diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada;
pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas.
A que via geral se divulga e mais se refere, é a Minas antiga, colonial,
das comarcas mineradoras, toda na extensão da chamada Zona Mineralógica, a de
montes de ferro, chão de ferro, água que mancha de ferrugem e rubro a lama e as
pedras de córregos que dão ainda lembrança da formosa mulher subterrânea que
era a Mãe do Ouro, deparada nas grupiaras, datas, cavas, lavras, bocas da
serra, à porta dessas velhas cidades feitas para e pelo ouro, por entre o
trabeculado de morros, sob picos e atalaias, aos dias longos em nevoeiro e
friagem, ao sopro de tramontanas hostis ou ante a fantasmagoria alva da
corrubiana nas faces de soalheiro ou noruega, num âmbito que bem congrui com o
peso de um legado severo, de lástimas avaliadas, grandes sinos, agonias,
procissões, oratórios, pelourinhos, ladeiras, jacarandás, chafarizes realengos,
irmandades, opas, letras e latim, retórica satírica, musas entrevistas,
estagnadas ausências, música de flautas, poesia do esvaziado — donde de tudo
surde um hábito de irrealidade, hálito do passado, do longe, quase um espírito
de ruínas, de paradas aventuras e problemas de conduta, um intimativo
nostalgir-se, que vem de níveis profundos, a melancolia que coerce.
Essa — tradicional, pessimista talvez ainda, às vezes casmurra,
ascética, reconcentrada, professa em sedições — a Minas geratriz, a do ouro,
que evoca e informa, e que lhe tinge o nome; a primeira a povoar-se e a ter
nacional e universal presença, surgida dos arraiais de acampar dos bandeirantes
e dos arruados de fixação do reinol, em capitania e província que, de golpe, no
Setecentos, se proveu de gente vinda em multidão de todas as regiões vivas do
país, mas que, por conta do outro e dos diamantes, por prolongado tempo se
ligou diretamente à Metrópole de além-mar, como que através de especial
tubuladura, fluindo apartada do Brasil restante. Aí, plasmado dos paulistas
pioneiros, de lusos aferrados, de baianos trazedores de bois, de numerosíssimos
judeus manipuladores de ouro, de africanos das estirpes mais finas, negros
reais, aproveitados na rica indústria, se fez a criatura que é o mineiro
inveterado, o mineiro mineirão, mineiro da gema, com seus males e bens. Sua
feição pensativa e parca, a seriedade e interiorização que a montanha induz —
compartimentadora, distanciadora, isolante, dificultosa. Seu gosto do dinheiro
em abstrato. Sua desconfiança e cautela — de vez que de Portugal vinham par ali
chusmas de policiais, agentes secretos, burocratas, tributeiros, tropas e
escoltas, beleguias, fiscais e espiões, para esmerilhar, devassar, arrecadar,
intrigar, punir, taxar, achar sonegações, desleixos, contrabandos ou extravios
do ouro e os diamantes, e que intimavam sombriamente o poder do Estado, o
permanente perigo, àquela gente vigiadíssima, que cedo teve de aprender a
esconder-se. Sua honesta astúcia meandrosa, de regato serrano, de mestres na
resistência passiva. Seu vezo inibido, de homens aprisionados nas manhãs
nebulosas e noites nevoentas de cidades tristes, entre a religião e a regra
coletiva, austeras, homens de alma encapotada, posto que urbanos e polidos. Sua
carta de menos. Seu fio de barba. Sua arte de firmeza.
É a Mata cismontana, molhada de ventos marinhos, agrícola ou madeireira,
espessamente fértil. É o Sul, cafeeiro, assentado na terra-roxa de declives ou
em colinas que europeias se arrumam, quem sabe uma das mais tranquilas
jurisdições da felicidade neste mundo. É o Triângulo, avançado, forte, franco.
É o Oeste, calado e curto nos modos, mas fazendeiro e político, abastado de
habilidades. É o Norte, sertanejo, quente, pastoril, um tanto baiano em
trechos, ora nordestino na intratabilidade da caatinga, e recebendo em si o
Polígono das Secas. E o Centro corográfico, do vale do Rio das Velhas, calcário,
ameno, claro, aberto à alegria de todas as vozes novas. É o Noroeste, dos
chapadões, dos campos-gerais que se emendam com os de Goiás e da Bahia
esquerda, e vão até ao Piauí e ao Maranhão.
Se são tantas Minas, porém, e, contudo, uma, será o que a determina,
então, apenas uma atmosfera, sendo o mineiro o homem em estado minasgerais?
Nós, os indígenas, nem sempre o percebemos. Acostumaram-nos, entretanto, a um
vivo rol de atributos, de qualidades, mais ou menos específicas, sejam as de:
acanhado, afável, amante da liberdade, idem da ordem, antirromântico,
benevolente, bondoso, comedido, canhestro, cumpridor, cordato, desconfiado,
disciplinado, desinteressado, discreto, escrupuloso, econômico, engraçado,
equilibrado, fiel, fleumático, grato, hospitaleiro, harmonioso, honrado,
inteligente, irônico, justo, leal, lento, morigerado, meditativo, modesto,
moroso, obstinado, oportunidade (dotado do senso da), otário, prudente,
paciente, plástico, pachorrento, probo, precavido, pão-duro, personalista,
perseverante, perspicaz, quieto, recatado, respeitador, rotineiro, roceiro,
secretivo, simples, sisudo, sensato, sem pressa nenhuma, sagaz, sonso, sóbrio,
trabalhador, tribal, taciturno, tímido, utilitário, virtuoso.
Sendo assim, o mineiro há. Essa raça ou variedade, que, faz já bem
tempo, acharam que existia. Se o confirmo, é sem quebra de pejo, pois, de mim,
sei, compareço como espécime negativo.
Reconheço, porém, a aura da montanha, e os patamares da montanha, de
onde o mineiro enxerga. Porque, antes de mais, o mineiro é muito espectador. O
mineiro é velhíssimo, é um ser reflexivo, com segundos propósitos e enrolada
natureza. É uma gente imaginosa, pois que muito resistente à monotonia. E boa —
porque considera este mundo como uma faisqueira, onde todos têm lugar para
garimpar. Mas nunca é inocente. O mineiro traz mais individualidade que
personalidade. Acha que o importante é ser, e não parecer, não aceitando
cavaleiro por argueiro nem cobrindo os fatos com aparatos. Sabe que “agitar-se
não é agir”. Sente que a vida é feita de encoberto e imprevisto, por isso
aceita o paradoxo; é um idealista prático, otimista através do pessimismo; tem,
em alta dose, o amor fati. Bem comido, secularmente, não entra caninamente em
disputas. Melhor, mesmo — não disputa. Atencioso, sua filosofia é a da
cordialidade universal, sincera; mas, em termos. Gregário, mas necessitando de
seu tanto de solidão, e de uma área de surdina, nos contatos verdadeiramente
importantes. Desconhece castas. Não tolera tiranias, sabe deslizar para fora
delas. Se precisar, briga. Mas, como ouviu e não entendeu a pitonisa, teme as
vitórias de Pirro. Tem a memória longa. Não tem audácias visíveis. Ele
escorrega para cima. Só quer o essencial, não as cascas. Sempre frequentado
pelo enigma, pica o enigma em pedacinhos, como quando pica seu fumo de rolo, e
faz contabilidade da metafísica; gente muito apta ao reino-do-céu. Não acredita
que coisa alguma se resolva por um gesto ou um ato, mas aprendeu que as coisas
voltam, que a vida dá muitas voltas, que tudo pode tornar a voltar. Até sem
saber que o faz, o mineiro está sempre pegando com Deus. Principalmente, isto:
o mineiro não usurpa.
Aí está Minas: a mineiridade.
Mas, entretanto, cuidado. Falei em paradoxo. De Minas, tudo é possível.
Viram como é de lá que mais se noticiam as coisas sensacionais ou esdrúxulas,
os fenômenos? O diabo aparece, regularmente, homens ou mulheres mudam
anatomicamente de sexo, ocorrem terremotos, trombas-d’água, enchentes
monstras, corridas-de-terreno, enormes ravinamentos que desabam serras,
aparições meteóricas, tudo o que aberra e espanta. Revejam, bem. Chamam a seu
povo de “carneirada”, porque respeita por modo quase automático seus Governos,
impessoalmente, e os acata; mas, por tradição, conspira com rendimento, e entra
com decisivo gosto nas maiores rebeliões. Dados por rotineiros e apáticos,
foram de repente à Índia, buscar o zebú, que transformaram, dele fazendo uma
riqueza, e o exportam até para o estrangeiro. Tidos como retrógrados, cedo se
voltaram para a instrução escolar, reformando-a da noite para o dia,
revolucionariamente, e ainda agora dividindo com São Paulo o primeiro lugar
nesse campo. Sedentários famosos, mas que se derramaram sempre fora de suas
divisas estaduais, iniciando, muito antes do avanço atual, o povoamento do
Norte do Paraná, e enchendo com suas colônias o rio, São Paulo, Goiás e até
Mato Grosso. Pacíficos por definição, tiveram em sua Força Pública militar,
pressianamente instruída e disciplinada, uma formidável tropa de choque, tropa
de guerra, que deu o que temer, e com larga razão. E, de seus homens políticos,
por exemplo, veem-se atitudes por vezes imprevisíveis e desconcertantes; que
não serão anômalas, senão antes marcas de sua coerência profunda — a única
verdadeiramente com valibilidade e eficácia.
Disse que o mineiro não crê demasiado na ação objetiva; mas, com isso,
não se anula. Só que mineiro não se move de graça. Ele permanece e conserva.
Ele espia, indaga, protela ou palia, se sopita, tolera, remancheia,
perrengueia, sorri, escapole, se retarda, faz véspera, tempera, cala a boca,
matuta, destorce, engambela, pauteia, se prepara. Mas, sendo a vez, sendo a
hora, Minas entende, atende, toma tento, avança, peleja e faz.
Sempre assim foi. Ares e modos. Assim seja.
Só, e no mais: sem ti, jamais nunca — Minas, Minas Gerais, inconfidente,
brasileira, paulista, emboaba, lírica e sábia, lendária, épica, mágica,
diamantina, aurífera, ferrífera, ferrosa, férrica, balneária, hidromineral, jê,
puri, acroá, goitacá, goianá, cafeeira, agrária, barroca, luzia, árcade,
alpestre, rupestre, campestre, de el-rei, das minas, do ouro das minas, das
pretas minas, negreira, mandigueira, moçambiqueira, conga, dos templos,
santeira, quaresmeira, processional, granítica, de ouro em ferro, siderúrgica,
calcárea, das perambeiras, serrana bela, idílica, ilógica, translógica,
supralógica, intemporal, interna, leiteira, do leite e da vaca, das artes de
Deus, do caos calmo, malasarte, conjuradora, adversa ao fácil, tijucana,
januária, peluda, baeteira, tapiocana, catrumana, fabril, industriosa,
industrial, fria, arcaica, mítica, enigmática, asiática, assombrada, salubre e
salutar, assobradada, municipal, municipalíssima, paroquial, marília e
heliodora, de pedra-sabão, de hematita compacta, da sabedoria, de Borba Gato,
Minas joãopinheira, Minas plural, dos horizontes, de terra antiga, das lapas e
cavernas, da Gruta de Maquiné, do Homem de Lagoa Santa, de Vila Rica,
franciscana, barranqueira, bandoleira, pecuária, retraída, canônica, sertaneja,
jagunça, clássica, mariana, claustral, humanista, política, sigilosa,
estudiosa, comum, formiga e cigarra, labiríntica, pública e fechada, no alto
afundada, toucinheira, metalúrgica, de liteira, mateira, missionária, benta e
circuncisa, tropeira, borracheira, mangabeira, comboieira, rural, ladina,
citadina, devota, cigana, amealhadora, mineral e intelectual, espiritual,
arrieira, boiadeira, urucuiana, cordisburguesa, paraopebana,
fluminense-das-velhas, barbacenense, leopoldinense, itaguarense, curvelana,
belo-horizontina, do ar, do lar, da saudade, do queijo, do tutu, do milho e do
porco, do angu, do frango com quiabo, Minas magra, capioa, enxuta, groteira,
garimpeira, sussurrada, sibilada, Minas plenária, imo e âmago, chapadeira,
veredeira, zebuzeira, burreira, bovina, vacum, forjadora, nativa, simplória,
sabida sem desordem, sem inveja, sem realce, tempestiva, legalista, legal,
governista, revoltosa, vaqueira, geralista, generalista, de não navios, de não
ver navios, longe do mar, Minas sem mar, Minas em mim: Minas comigo. Minas.
Fonte:
Ave, palavra / João Guimarães Rosa. – 6ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2009. [texto originalmente publicado na revista “O Cruzeiro”, em 25.8.1957].