Chamo de “pedras
da infância” tudo aquilo que foi colocado em nossa “mochila” quando ainda
éramos pequenos e à medida que fomos crescendo, coisas que nos foram dadas ou
mesmo impostas como condição para sobreviver e para ser aceito no seio da
família e da sociedade. Essas pedras não são boas, mas foram necessárias, pois
precisamos delas para crescer, ficar fortes e adultos e caminhar com as próprias
pernas.
Acredito que todo ser humano nasce com um espírito
livre, mas um corpo frágil, pequeno, indefeso e dependente (em primeira linha
dos pais). E o espírito livre sabe que é preciso proteger esse corpo para que
ele um dia se torne robusto o suficiente para finalmente ser igualmente livre.
E assim aceitamos as regras, tropeçamos nas pedras colocadas em nossos caminhos
e carregamos nas costas aquelas depositadas em nossa “mochila”. Essas pedras
são praticamente as estratégias que desenvolvemos para que possamos sobreviver,
como, por exemplo, aquela pedra que uma criança recebe do pai colérico, que não
gosta que a criança fale alto e dá bronca quando isso acontece. Assim, a
criança aceita a pedra “fale baixo para
não levar bronca do pai”, se tornando então alguém que fala baixo e
estremece só de ouvir alguém falando alto. Ou mesmo a pedra que uma criança
recebe dos pais quando conta uma história fictícia, fruto da fantasia inerente
à infância, mas é repreendida por estar “mentindo”. Assim a criança recebe a
pedra “fantasia é mentira!”. Ou mesmo
quando uma criança chega em casa com o boletim da escola com notas boas. Essa
criança vê então a alegria dos pais, que, orgulhosos, saem mostrando o boletim
a todo mundo, aos parentes, aos vizinhos, para que todos vejam o quanto seu
filho ou sua filha é inteligente. Assim, sem que se perceba e mesmo que a
intenção dos pais seja boa, a criança recebe a pedra “seja boa na escola para ver seus pais felizes!”.
Fico no exemplo da criança com boas notas na escola.
Poderíamos pensar que esse elogio dos pais seria uma coisa boa, um incentivo e,
em princípio, isso é verdade. Mas o que aconteceria então se a criança não
conseguisse manter suas notas boas e terminasse “fracassando” em uma ou outra
matéria? Bom, depende então do tamanho assumido pela pedra do elogio dos pais:
se ela for pequena, a criança pode até sentir um pouco de vergonha, mas sem
maiores complicações. Mas se o elogio dos pais tiver se tornado para a criança
uma pedra grande e pesada, a vergonha será enorme e a criança fará de tudo para
esconder a nota ruim, mentindo, disfarçando e fugindo da realidade, sem
perceber que com isso a pedra só fica ainda maior e mais pesada. E é esse
crescimento que é problemático, pois, a depender do meio no qual vivemos quando
crianças e do nível de maturidade de nossos pais e das pessoas à nossa volta,
ele pode se tornar um crescimento selvagem, uma excrescência, fazendo com que
uma pedra (ou mesmo várias) cresça tanto que um dia, mesmo já adultos, nos
encontremos praticamente embaixo dela, tendo então muita dificuldade de se
livrar novamente desse peso.
Quero dizer que nosso sofrimento como pessoas adultas
tem muitas vezes sua origem nessas pedras da infância, que recebemos e que
tivemos que carregar conosco durante muitos anos, décadas, na verdade nossa
vida inteira até aqui, sem que muitas vezes percebamos que nosso corpo já
cresceu, não é mais tão frágil, que já nos tornamos adultos e, ao invés de
finalmente juntar essa liberdade do corpo à liberdade do espírito e sermos finalmente
livres em plenitude, mantemos nosso corpo preso a essas pedras, prendendo assim
igualmente o espírito, e aquele ser humano que nasceu “meio livre”, com
espírito livre e corpo dependente, se torna um prisioneiro completo,
encarcerado em sua infância, detido por suas próprias pedras. A solução para
muitos de nossos problemas atuais seria então reconhecer que continuamos a
carregar essas “pedras da infância”,
que não são mais necessárias, pois já ficamos adultos, abrindo então a mochila,
esvaziando-a e continuando a caminhar, ou melhor ainda: voando, livre, leve e
solto, começando finalmente a ser feliz.
Há pedras de todas as cores, formas e tamanhos. Umas
são pequenas e fáceis de carregar, outras são grandes e são carregadas com
muito sacrifício. Umas são tão pequenas que passamos sem problemas por cima
delas, outras são tão enormes que bloqueiam nosso caminho. Mas todas elas têm
algo em comum: elas pesam, umas mais e outras menos, e, como tudo que pesa,
elas atrapalham nossa andança neste mundo.
Há vários tipos de “pedras
da infância” que costumamos carregar conosco, umas extremamente pesadas,
outras nem tanto, umas lisas, outras extremamente ásperas. Aqui apenas algumas
delas:
– É aquela pedra que uma menina recebe da mãe, que
mesmo mal casada e sofrendo, defende a tese de que casamento não pode ser
desmanchado de forma alguma. A criança cresce então com essa pedra, casa-se
possivelmente mais tarde com o homem errado, mas não se separa por causa da
pedra “casamento é eterno, mesmo que se
sofra” recebida da mãe;
– É aquela pedra que um garoto sensível recebe do pai
quando esse diz que “homem não chora”,
fazendo com que o menino perca realmente essa capacidade ou passe a chorar
escondido, mesmo mais tarde, como homem adulto;
– É aquela criança que cresce em um ambiente violento
e recebe a pedra “violência é normal”;
– É aquela pedra que uma menina recebe da mãe
amorosamente frustrada quando essa diz que “todo
homem não presta!”;
– É aquela “pedra
da decepção” e a “pedra da perda de
confiança” enorme que uma criança recebe quando confia em uma pessoa adulta
de sua família, mas é abusada sexualmente ou sofre violência física;
– É aquela “pedra
do medo” que uma criança recebe quando tem um pai ou mãe altamente
cuidadosa, que nunca a deixa brincar do lado de fora;
– É aquela “pedra
da rejeição” dada pela mãe ou pelo pai quando a criança se comporta de uma
forma diferente da esperada e o pai ou a mãe diz então que “preferia não ter um filho (ou filha)”;
– É aquela “pedra
da fofoca e da inveja” recebida pela criança que cresce em uma família
fofoqueira e invejosa;
– É a “pedra do
racismo” quando uma criança escuta constantemente em casa que pessoas com
outra cor de pele não têm o mesmo valor;
– É a pedra “não
vale a pena ser honesto” quando uma criança rouba e os pais passam a mão
pela cabeça, deixando valer a desonestidade;
– É a pedra “não
há justiça no mundo” quando pais tratam filhos de forma diferente,
favorecendo uns, prejudicando outros.
Essas pedras são nossos medos, nossa solidão, nossa
insegurança, nossos conceitos errados, nossa frustração, enfim, todas essas
coisas que adquirimos na infância.
Exemplos não faltam. Mas prefiro contar uma história
concreta, que ilustra bem como as pedras de nossa infância podem nos fazer
sofrer como adultos:
Conheci uma mulher muito inteligente, com um coração
do tamanho do mundo, uma pessoa muito agradável e que teria de tudo para ser
feliz. Mas não era. Ela tinha problemas sérios de saúde e sofria de muito de
problemas físicos, sem que nenhum médico descobrisse o que ela tinha, restando
somente a possibilidade dela sofrer de um mal psicossomático. Bom, como ela
tentava de tudo para parar de sofrer, ela aceitou esse diagnóstico e iniciou
uma psicoterapia. Muitos meses depois, após passar por uma fase difícil de
autoconhecimento e reflexão com ajuda do psicoterapeuta, ela descobriu o que a
fazia sofrer:
Quando criança, ela sentia muita falta de receber
carinho do pai, que era uma pessoa extremamente intelectual, distante
emocionalmente e muito severa com os filhos. Ainda pequena, ela colocou na
cabeça que queria escutar do pai que ele a amava e fazia de tudo para
agradá-lo, sem sucesso, pois o pai se mantinha reservado nesse sentido. Pois
bem, ela foi tentando, tentando, tentando… E a “pedra” foi crescendo… Ela
cresceu e se tornou uma mulher adulta, mas o comportamento era o mesmo, pois
ela continuava tentando agradar ao pai e pior ainda: também ao marido, ao chefe
e a todas as figuras masculinas em sua vida (até mesmo ao filho!) – aqui vemos
como a pedra cresceu! Mas nada adiantou: um belo dia, o pai faleceu sem dizer à
filha que a amava e, como ela então sabia que jamais escutaria o que esperava,
adoeceu, teve uma forte depressão e seus problemas físicos pioraram. Hoje, essa
mulher tem 45 anos de idade e continuava sofrendo com isso. Com ajuda da
terapia, ela descobriu que estava tão agarrada a essa “pedra da infância” que não conseguia ser feliz. E essa infelicidade
fez com que ela terminasse adoecendo, já que a pedra a prendia e evitava que
ela fosse livre, tanto no nível espiritual como no nível físico. Somente após
reconhecer isso é que ela teve a coragem e a força de simplesmente largar a
pedra que recebera do pai (através de sua incapacidade de dizer que a amava!),
percebendo que era uma “pedra da
infância” não mais necessária na vida adulta, que a segurava em sua
caminhada, evitando que ela pudesse ser realmente feliz. Foi um processo
difícil e doloroso, mas que valeu a pena, pois hoje ela está bem, mais feliz,
mesmo que a “pedra” do pai tenha deixado marcas, mesmo que a tristeza de nunca
ter escutado do pai o que tanto queria escutar ainda exista. Largar uma pedra
não significa esquecer o motivo de sua existência, mas sim aceitar que ela
existe, fazendo parte, porém, do passado e sem ter mais importância real no
presente e muito menos no futuro. Sua decisão de largar essa pedra (= aceitar
que teve um pai emocionalmente frio, que nunca disse que a amava!) permitiu que
ela finalmente conseguisse deixar de carregar consigo um sofrimento do passado,
voltando a sentir a liberdade de seu espírito e assim voltando também a se
sentir saudável, livre fisicamente, e feliz.
Pode ser você prefira insistir em carregar as suas “pedras da infância”, talvez por costume
ou medo. Não haveria nada de errado nisso, pois cada um tem o direito de
carregar suas pedras pelo tempo que quiser ou precisar, mas talvez valesse a
pena refletir que sentido faz carregar uma mochila pesada, cheia de coisas
(pedras) que não lhe têm (mais) qualquer utilidade. Assim, lhe peço: dê uma
parada você também. Verifique em você e em sua vida quais as “pedras” que você
ainda carrega consigo e perceba quais delas lhe fazem (mais) mal e lhe impedem
de caminhar e quais as que não atrapalham (tanto). Depois, abra a “mochila” e
tire uma por uma, livrando-se do que lhe prende e evita que você seja feliz.
Vou até mais longe e proponho um exercício prático: pegue realmente uma
mochila, encha-a de pedras, dando a cada uma delas um nome: esta pedra é a “pedra do medo” que eu sentia quando era
criança, esta outra é a “pedra da
solidão”, já que me senti muito só na infância, já esta outra é a “pedra da expectativa de minha mãe”, que
fez com que eu vivesse minha vida de acordo com o que ela esperava e não
conforme meus sonhos e desejos, e assim por diante. Depois, escolha um lugar
especial, o lugar da despedida, vá até lá com a mochila e se livre das pedras,
uma por uma, deixando-as lá e voltando para casa com a mochila vazia. Isso não
vai resolver seus problemas completamente, já que é preciso tempo para
consertar o que foi quebrado por uma vida inteira, mas será um bom começo para
seu crescimento e para sua libertação pessoal.
Por Gustl Rosenkranz
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