“Abraçar é fechar os olhos e abrir a alma”
Pedro Chagas Freitas
O abraço. O abraço que parece estar a acabar. O abraço
raro, o abraço verdadeiro. Da mãe que recebe o filho, da mulher que recebe o
marido, do amigo que recebe o amigo. O abraço que não se pensa, que não se
imagina. O abraço que não é; o abraço que tem de ser. O abraço que serve para
viver. O abraço que acontece – e que não se esquece. Um dia hei de passar todo
o dia a ensinar o abraço. A visitar as escolas e a explicar que abraçar não é
dois corpos unidos e apertados pelos braços. Abraçar é dois instantes que se
fundem por dentro do que une dois corpos. Abraçar é um orgasmo de vida, um
clímax de partilha – uma orgia de gente. Abraçar é fechar os olhos e abrir a
alma, apertar os músculos e libertar o sonho. Abraçar é fazer de conta que se é
herói – e sê-lo mesmo. Porque nada é mais heroico do que um abraço que se deixa
ser. Porque nada é mais heroico do que ter a coragem de abraçar, em frente do
mundo, em frente da dor, em frente do fim, em frente da derrota. Abraçar é a
vitória do homem sobre o homem, da pessoa sobre a pessoa. Abraçar é celebrar a
humanidade. Abraçar vale mais do que amar. Abraçar é o amor que se ultrapassa.
O amor que se transmuta. O amor que se apaixona por se ser amor. Abraçar é mais
do que o amor, mais do que a paixão, mais do que o tesão, a excitação ou a
pulsão.
Abraçar é para além do que abraça, para além do que é
abraçado, para além do que sente ou que é sentido. Abraçar não se sente nem se
sente muito. Abraçar é. E pode ser tudo aquilo que não é – mas que não deixa de
ser. Pode ser o abraço que é “vem, ama-me”, pode ser o abraço que é “adoro-te,
meu filho”, pode ser o abraço que é “obrigado por estares aí, meu amigo”. O
abraço pode ser todos os abraços do mundo. E cada abraço é todos os abraços do
mundo. E cada abraço é todos os mundos num abraço, em dois pares de braços que
se tocam, que se fundem, que se encontram e que se elevam. Para lá do que
sentem, para lá do que entendem. Um abraço verdadeiro é mentira, alucinação – e
não é isso que o inibe de ser a mais verossímil das verdades, a mais palpável
das realidades. Um dia, hei de passar todo o dia a ensinar o abraço. Nas
escolas, nas estradas, nos becos de urina e de lágrimas. O abraço. A unir o
menino traquina e o menino traquinado, a criança que humilha e o desgraçado
humilhado. O abraço. A unir. A prostituta que se rende e o gestor que se vende.
O empregado que resiste e o cabrão que insiste. Todos. Num abraço. O abraço
resolveria todos os problemas do mundo. E, no entanto não deixaria de não
resolver problema algum. E é sempre assim, no mundo, na vida, no sonho, na dor.
É sempre assim e nunca deixará de ser assim: é aquilo que nada resolve que tem
de resolver tudo o que há para resolver. Não tem nada que saber apesar de
ninguém o saber: é aquilo que não serve para nada que serve para tudo.
Pedro Chagas Freitas, no livro ‘Eu Sou Deus’. Lisboa: Chiado editora,
2012.
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