Na obra de Guimarães Rosa, que rompe com a tradição de romances
regionalistas, o culto e o popular são inseparáveis
– por Milton Hatoum*, Especial para o Estado
Bem-aventurados os que vão ler pela primeira vez Grande Sertão: Veredas.
Esses leitores de qualidade, como dizia Chekhov, vão fazer uma das mais
incríveis viagens da imaginação, movida por uma linguagem inovadora e
exuberante. A primeira leitura de um livro complexo pede tempo, paciência e
concentração. Ou, como diz o narrador Riobaldo: “O
senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo,
só aos poucos é que o escuro é claro”.
Uma vez feito o pacto com as palavras, a viagem flui e convida o leitor
a uma releitura. Por falar em pacto, eis um dos temas centrais do romance de
João Guimarães Rosa: o pacto com o diabo, um tema explorado por Goethe e Thomas
Mann, e reformulado nessa história de amores e guerras entre bandos de jagunços
no centro-norte de Minas.
As histórias narradas pelo ex-chefe jagunço Riobaldo (agora um
fazendeiro velho e cansado) deságuam numa espécie de mar épico, em pleno sertão
mineiro. Os inúmeros caminhos percorridos por dezenas de personagens indicam
com exatidão a fauna, a flora e a geografia de uma região vivenciada e estudada
pelo autor. A natureza e a cultura do cerrado são consubstanciais à narrativa.
Mas dentro desse mundo concreto de tantos sertões há outro, igualmente vasto,
rico e complexo: o mundo interior, íntimo e subjetivo das personagens. “Sertão: é dentro da gente.”
Riobaldo conduz o curso da longa narração, quase sempre duvidando de suas
afirmações e questionando certezas. Esse fluxo da consciência parece abarcar
tudo, em várias camadas misturadas: histórica, social, política, amorosa,
filosófica, simbólica. A história de amor dos jagunços Riobaldo e Reinaldo
(Diadorim) talvez seja a mais transgressora do romance.
Grande
Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Capa livro,
edição
2019 da Companhia das Letras
Na primeira leitura só conhecemos a verdadeira identidade de Diadorim
nas páginas finais. Ao reler o livro, é possível perceber indícios fortes dessa
identidade numa passagem em que o ódio, o amor e o diabo estão misturados: o
encontro entre Diadorim e Otacília, futura noiva de Riobaldo, na presença
deste. Diadorim é o amor impossível, platônico do chefe jagunço. Essa passagem
acontece na Fazenda Santa Catarina.
Um pouco antes desse encontro, Riobaldo fala a seu interlocutor e ao
leitor sobre o ódio que sente de Hermógenes, o “demo”:
“Eu criava nojo dele, já disse ao senhor. Aversão
que revém de locas profundas. Aquele Hermógenes era matador – o de judiar de
criaturas filhos-de-deus – felão de mau”. O narrador sente essa raiva
quando vê pela primeira vez o Hermógenes, um “homem
sem anjo-da-guarda”.
Para Riobaldo, o ódio ajuda a aumentar o amor por outra pessoa, um amor
difuso, que “cresce de todo lado”. Ou ainda:
“Coração mistura amores. Tudo cabe”. Depois
desse solilóquio sobre o demônio, o amor e o ódio, ele narra a passagem pela
Fazenda Santa Catarina, onde vê Otacília, “fina de
recanto, em seu realce de mocidade, mimo de alecrim, a firme presença”.
Toda essa sequência de amor e “açoite de ciúme”
é narrada sob o signo do olhar, do gesto e da fala sutis: “Fui eu que primeiro encaminhei a ela os olhos. Molhei
mão em mel, regrei minha língua”.
Esse encontro na Santa Catarina, uma fazenda “perto
do céu”, ocorre no mês de maio. O céu é citado três vezes nessa
primavera, quando no ar dos gerais há borboletas brancas, pássaros, pombas no
bebedouro e as “verdadeiras, altas, cruzando do
mato”. É nesse lugar idílico, num tempo sem hora, que Riobaldo revela o
ciúme de Otacília por Diadorim, e a raiva deste por Otacília.
Para derrotar o Mal, Riobaldo faz um pacto com o demônio: artimanha de
Guimarães Rosa que permite ao narrador especular sobre Deus e o Diabo, uma das
postulações metafísicas do romance. “Travessia,
Deus no meio.” Na guerra decisiva entre os bandos inimigos, liderados
pelos pactários Riobaldo e Hermógenes, o triunfo sobre o demoníaco e seu
desfecho trágico comovem o leitor.
Aliás, há beleza e comoção em muitas passagens deste romance. Uma delas
é o primeiro encontro do jovem Riobaldo com o Menino no pequeno porto de um rio
de águas claras: o de Janeiro; em seguida, ambos atravessam o São Francisco
numa canoa frágil. Essa travessia do rio revolto é um rito de passagem, a
primeira grande travessia da vida: a revelação do medo do jovem Riobaldo, da
coragem do Menino (Reinaldo/Diadorim), e do amor entre ambos.
Outro trecho memorável é o pacto de Riobaldo com o demo num lugar
chamado Veredas Mortas, cujo nome verdadeiro o leitor saberá depois. Ou ainda o
julgamento de Zé Bebelo, um chefe jagunço que pretende ser deputado para abolir
a barbárie na terra sem lei e modernizar o sertão, “baseando
fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil
escolas”. O “cidadão e candidato” Zé
Bebelo é obcecado pela lei, mas está sempre pronto para atirar e matar seus
adversários.
Toda a sociedade sertaneja move-se num labirinto de muitas histórias do
sertão-mundo, habitado por personagens memoráveis. Na minha opinião (“pão e pães, é questão de opiniães”) Diadorim,
cheio de mistérios e ambiguidades, é a própria figuração desse labirinto. Sem
ele/ela, esse sertão seria tão grandioso? Mas até mesmo personagens secundários
adquirem relevo e presença. Como esquecer Rosa’uarda, que ensina ao narrador “as primeiras bandalheiras, e as completas”? O
alemão Emílio Wusp, que diz a Riobaldo: “Senhor
atira bem, porque atira com espírito. Sempre o espírito é que acerta…”. Ou seô Habão (Abrão), terrível fazendeiro e apologista
do progresso? Ou ainda as histórias escabrosas de Maria Mutema, assassina que
se torna santa? Sem falar de tantos jagunços, alguns de grande dignidade, como
Joca Ramiro.
A virtuosidade de Guimarães Rosa na construção dos personagens e na
arquitetura do romance está intimamente ligada à linguagem, astro maior do
Grande Sertão: Veredas. A fala do sertanejo, ponto de partida da linguagem
escrita, é elaborada com uma liberdade e um poder inventivos incomuns. Há
brilho, insight e lirismo em inúmeras passagens. Lirismo que não é “poetagem”,
como diz Riobaldo, e sim parte constitutiva da prosa, algo raro e dificílimo
numa narrativa tão extensa.
O estilo, singular e inimitável, rompe com a tradição de muitos romances
regionalistas, que separam o discurso do narrador culto da fala dos personagens
populares. Aqui, culto e popular são inseparáveis, como já fizera Graciliano
Ramos em Vidas Secas (1937).
A reedição sofisticada desse clássico, que inclui cinco ótimos ensaios
críticos, deve atrair e formar novos leitores. Dentre tantas coisas essenciais,
falta à modernidade manca deste “país de
mil-e-tantas-misérias” uma formação educacional consistente, que passa
necessariamente pela leitura crítica de bons livros de ficção e poesia
brasileiros.
A obra-prima de Guimarães Rosa é uma sondagem profunda da alma humana,
com suas várias faces, a que não faltam contradições e dúvidas, perplexidades e
indagações. Leitores brasileiros e estrangeiros sentem isso e refletem sobre
questões existenciais, metafísicas, sociais, políticas.
Ao mesmo tempo, o romance remete ao atraso histórico, à extrema
violência e à miséria do Brasil. É possível fazer uma analogia entre a barbárie
dos jagunços-matadores do passado com a barbárie dos bandos de traficantes e
policiais-milicianos do presente. A injustiça e a impunidade são irmãs
siamesas, ontem e hoje.
O leitor paciente encontrará na beleza desse romance uma alegria perene,
“um descanso na loucura”. Não é pouco neste
tempo obscuro, em que a estupidez e a ignorância nos palácios do poder e nas
redes sociais assumem ares arrogantes e ameaçadores. O sertão, de “constante brutalidade”, é o Brasil mesmo, por
inteiro.
Logo no começo, a alma de Riobaldo é aparentemente pacificada pelo
interlocutor: “E as ideias instruídas do senhor me
fornecem paz. Principalmente a confirmação, que me deu, de que o Tal não
existe”. O Tal é o demo, dono de muitos nomes. Mas, para Riobaldo, que
já vendera a alma ao capeta, o embate com o Mal persistirá até o fim, quando o
narrador diz: “O diabo não há! É o que eu digo, se
for… Existe é homem humano. Travessia”.
*MILTON
HATOUM É ESCRITOR E COLUNISTA DO ‘C2’.
Fonte:
originalmente publicado em O Estadão.
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