"Geralmente, não é um sinal só, mas um conjunto de indicadores. É
importante ressaltar que a criança deve ser levada para avaliação de
especialista caso apresente alguns desses sinais", diz Heloísa Ribeiro,
diretora executiva da ONG Childhood Brasil, de defesa dos direitos das crianças
e adolescentes.
Por
Renata Mendonça
Casos de violência e abuso sexual contra crianças e adolescentes são
mais comuns do que se imagina – dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada), por exemplo, mostram que 70% das vítimas de estupro do país são
menores de idade. Segundo dados do Disque 100 (Disque Direitos Humanos) e do
Sistema Único de Saúde, mais de 120 mil casos de abuso sexual contra crianças e
adolescentes foram registrados no país entre 2012 e 2015 – o equivalente a pelo
menos três ataques por hora.
Mas como identificar abuso sofrido por uma criança próxima? O caso do
uruguaio Felipe Romero, que, segundo uma autópsia preliminar, teria sido vítima
de violência sexual, chamou a atenção dos leitores da BBC Brasil, que pediram
esclarecimentos sobre quais são, afinal, esses sinais. Com base em informações
de sites especializados e entrevistas com profissionais da área, a BBC Brasil
elaborou o guia abaixo.
1) Mudança de
comportamento
O primeiro sinal a ser observado é uma possível mudança no padrão de
comportamento das crianças. Segundo Ribeiro, esse é um fator facilmente
perceptível, pois costuma ocorrer de maneira repentina e brusca.
“Por exemplo, se a criança
nunca agiu de determinada forma e, de repente, passa a agir. Se começa a
apresentar medos que não tinha antes – do escuro, de ficar sozinha ou perto de
determinadas pessoas. Ou então mudanças extremas no humor: a criança era superextrovertida
e passa a ser muito introvertida. Era supercalma e passa a ser agressiva”, afirmou.
A mudança de
comportamento também pode se apresentar com relação a uma pessoa específica, o
possível abusador.
“Como a maioria dos abusos
acontece com pessoas da família, às vezes a criança apresenta rejeição a essa
pessoa, fica em pânico quando está perto dela. E a família estranha: ‘Por que
você não vai cumprimentar fulano? Vá lá!’. São formas que as crianças encontram
para pedir socorro, e a família tem que tentar identificar isso”, afirma a
educadora sexual Maria Helena Vilela, do Instituto Kaplan.
Em outros casos, a rejeição não se dá em relação a uma pessoa
específica, mas a uma atividade. A criança não quer ir a uma atividade
extracurricular, visitar um parente ou vizinho ou mesmo voltar para casa depois
da escola.
2) Proximidade
excessiva
Apesar de, em muitos casos, a criança demonstrar rejeição em relação ao
abusador, é preciso usar o bom senso para identificar quando uma proximidade
excessiva também pode ser um sinal.
Teria sido o caso, por exemplo, do técnico de futebol Fernando Sierra,
que tinha uma relação quase paternal com o garoto Felipe Romero. O treinador
buscou o menino na escola, desapareceu e ambos foram encontrados mortos dois
dias depois.
A hipótese principal é que o treinador tenha atirado no menino e, em
seguida, cometido suicídio por não aceitar um pedido da mãe para que se
afastasse da criança. Laudo preliminar da autópsia indicou que o garoto vinha
sendo vítima de abusos sexuais.
Importante notar, no entanto, que o papel do desconhecido como
estuprador aumenta conforme a idade da vítima – ou seja, no abuso de menores de
idade, a violência costuma ser praticada por pessoas da família na maioria dos
casos.
Se, ao chegar à casa de tios, por exemplo, a criança desaparece por
horas brincando com um primo mais velho ou se é alvo de um interesse incomum de
membros mais velhos da família em situações em que ficam sozinhos sem
supervisão, é preciso estar atento ao que possa estar ocorrendo nessa relação.
Segundo o NHS, o SUS britânico, 40% dos abusos no Reino Unido são
cometidos por outros menores de idade, muitas vezes da mesma família. Também
segundo os dados britânicos, 90% dos abusadores fazem parte da família da
vítima.
No Brasil, 95% dos casos desse tipo de violência contra menores são
praticados por pessoas conhecidas das crianças, e em 65% deles há participação
de pessoas do próprio grupo familiar.
Nessas relações, muitas vezes, o abusador manipula emocionalmente a
vítima que nem sequer percebe estar sendo vítima naquela etapa da vida, o que
pode levar ao silêncio por sensação de culpa. Essa culpa pode se manifestar em
comportamentos graves no futuro como a autoflagelação e até tentativas de
suicídio.
“As pessoas acham que o
abusador será um desconhecido, que não faz parte dessa vida da criança. Mas é
justamente o contrário, na grande maioria dos casos são pessoas próximas, por
quem a criança tem um afeto. O abusador vai envolvendo a criança pra ganhar
confiança e fazer com que ela não conte”, afirmou Ribeiro, da ONG Childhood Brasil.
“A violência
sexual é muito frequente dentro de casa, ambiente em que a criança deveria se
sentir protegida. É um espaço privado, de segredo familiar e é muito comum que
aconteça e seja mantido em segredo.”
3) Regressão
Outro indicativo apontado pelas especialistas é o de recorrer a
comportamentos infantis, que a criança já tinha abandonado, mas volta a
apresentar de repente. Coisas simples, como fazer xixi na cama ou voltar a
chupar o dedo. Ou ainda começar a chorar sem motivo aparente.
“É possível observar também as
características de relacionamento social dessa criança. Se, de repente, ela
passa a apresentar esses comportamentos infantis. Ou se ela passa a querer
ficar isolada, não ficar perto dos amigos, não confiar em ninguém. Ou se fugir
de qualquer contato físico. A criança e o adolescente sempre avisam, mas na
maioria das vezes não de maneira verbal”, considera Ribeiro.
A diretora da ONG Childhood Brasil
alerta, porém, que é importante procurar avaliação especializada que possa
indicar se eventuais mudanças de comportamento são apenas parte do
desenvolvimento da criança ou indicativos de vulnerabilidade.
“É importante lembrar que o ser humano é complexo,
então esses comportamentos podem aparecer sem estarem ligados a abuso.”
4) Segredos
Para manter o silêncio da vítima, o abusador pode fazer ameaças de
violência física e promover chantagens para não expor fotos ou segredos
compartilhados pela vítima.
É comum também que usem presentes, dinheiro ou outro tipo de benefício
material para construir a relação com a vítima. É preciso também explicar para
a criança que nenhum adulto ou criança mais velha deve manter segredos com ela
que não possam ser compartilhados com adultos de confiança, como a mãe ou o
pai.
5) Hábitos
Uma criança vítima de abuso também apresenta alterações de hábito
repentinas. Pode ser desde uma mudança na escola, como falta de concentração ou
uma recusa a participar de atividades, até mudanças na alimentação e no modo de
se vestir.
“Às vezes de repente a criança
começa a ter uma aparência mais descuidada, não quer trocar de roupa. Outras
passam a não comer direito. Ou passam a comer demais”, pontuou Ribeiro.
A mudança na aparência pode ser também uma forma de proteção encontrada
pela criança. Em entrevista à BBC Brasil no ano passado, a nadadora Joanna
Maranhão, que foi vítima de abuso sexual por seu técnico quando tinha nove
anos, revelou que se vestia como um menino na adolescência para fugir de
possíveis violências.
Ribeiro cita também mudanças no padrão de sono da criança como
indicativo de que algo não anda bem. “Se
ela começa a sofrer com pesadelos frequentes, ou se tem medo de dormir ou medo
de ficar sozinha.”
6) Questões de
sexualidade
Um desenho, uma “brincadeira”
ou um comportamento mais envergonhado podem ser sinais de que uma criança
esteja passando por uma situação de abuso. “Quando
uma criança que, por exemplo, nunca falou de sexualidade começa a fazer
desenhos em que aparecem genitais, isso pode ser um indicador”, apontou
Maria Helena Vilela.
Entre 2012 e 2015, Brasil registrou mais de 120 mil casos de violência
sexual em crianças ou adolescentes “Pode
vir em forma de brincadeira também. Ela chama os amiguinhos para brincadeiras
que têm algum cunho sexual ou algo do tipo”, observou Henrique Costa
Brojato, psicólogo e especialista psicossocial da Rede Marista de
Solidariedade. Podem, inclusive, reproduzir o comportamento do abusador em
outras crianças.
Para Heloísa Ribeiro, o alerta deve ser dado especialmente para crianças
que, ainda novas, passam a apresentar um “interesse
público” por questões sexuais. “Quando
ela, em vez de abraçar um familiar, dá beijo, acaricia onde não deveria, ou
quando faz uma brincadeira muito para esse lado da sexualidade.”
O uso de palavras diferentes das aprendidas em casa para se referir às
partes íntimas também é motivo para se perguntar à criança onde ela aprendeu
tal expressão.
7) Questões
físicas
Há também os sinais mais óbvios de violência sexual em menores – casos
que deixam marcas físicas que, inclusive, podem ser usadas como provas à
Justiça. Existem situações em que a criança acaba até mesmo contraindo doença
sexualmente transmissível.
“Há casos de gravidez na
adolescência, por exemplo, que é causada por abuso. É interessante ficar atento
também a possíveis traumatismos físicos, lesões que possam aparecer, roxos ou
dores e inchaços nas regiões genitais”, observou a diretora da Childhood.
8) Negligência
Muitas vezes, o abuso sexual vem acompanhado de outros tipos de maus
tratos que a vítima sofre em casa, como a negligência.
Uma criança que passa horas sem supervisão ou que não tem o apoio
emocional da família, com o diálogo aberto com os pais, estará em situação de
maior vulnerabilidade.
O que fazer
Caso identifique um ou mais dos indicadores listados acima, o melhor a
se fazer é, antes mesmo de conversar com a criança, procurar ajuda de um
especialista que possa trazer a orientação correta para cada caso.
“Há muitas dessas
características que são semelhantes às de um adolescente em desenvolvimento.
Por isso que é importante ter avaliação de alguém que é especialista nisso. Um
psicólogo, por exemplo. Se tiver dúvidas, a pessoa pode perguntar na escola, que
costuma ter profissionais treinados pra identificar esses casos”, disse Ribeiro.
“É sempre aconselhável também
acionar o Sistema de Garantia de Direitos, por meio do Conselho Tutelar, Centro
de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) ou Vara da Infância e
da Juventude para encontrar caminhos para uma resposta mais adequada”, afirmou Henrique
Costa Brojato.
Muitas vezes por se sentir culpada, envergonhada ou acuada, a criança
acaba não revelando verbalmente que está ou que viveu uma situação de abuso.
Mas há situações também em que ela tenta contar para alguém e acaba não sendo
ouvida. Por isso, o principal conselho dos especialistas é sempre confiar na
palavra dela.
“Em primeiro lugar, é
importante que quando a criança tentar falar alguma coisa, que ela se sinta
ouvida e acolhida. Que nunca o adulto questione aquilo que ela está contando.
Ou que tente responsabilizá-la pelo ocorrido”, diz Ribeiro.
Texto
Original de BBC
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