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terça-feira, 14 de maio de 2019

Conversa de bois – João Guimarães Rosa



“- Lá vai! Lá vai! Lá vai!…
– Queremos ver… Queremos ver…
– Lá vai o boi Cala-a-Boca
fazendo a terra tremer!… “
(Coro do Boi-Bumbá)
Conversa de bois

Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas, hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali e em toda a parte, poderão os bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qualquer um filho de Deus?!

– Falam, sim senhor, falam!… – afirma o Manuel Timborna, das Porteirinhas, – filho do Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa infinidade de Timborninhas barrigudos, que arrastam calças compridas e simulam todos o mesmo tamanho, a mesma idade e o mesmo bom-parecer; – Manuel Timborna, que, em vez de caçar serviço para fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo, coisas que as outras pessoas não sabem e nem querem escutar.

– Pode que seja, Timborna. Isso não é de hoje: … “Visa sub obscurum noctis pecudesque locutae. Infandum!…” Mas, e os bois? Os bois também?…

– Ora, ora!… Esses é que são os mais!… Boi fala o tempo todo. Eu até posso contar um caso acontecido que se deu.

– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco…

– Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja.

E começou o caso, na encruzilhada da Ibiúva, logo após a cava do Mata-Quatro, onde, com a palhada de milho e o algodoal de pompons frouxos, se truncam as derradeiras roças da Fazenda dos Caetanos e o mato de terra ruim começa dos dois lados; ali, uma irara rolava e rodopiava, acabando de tomar banho de sol e poeira – o primeiro dos quatro ou cinco que ela saracoteia cada manhã.

Seriam bem dez horas, e, de repente, começou a chegar – nhein… nheinhein… renheinhein… – do caminho da esquerda, a cantiga de um carro-de-bois.

O cachorrinho-do-mato, que agora lambia, uma a uma, as patinhas, entreparou. Solevou o focinho bigodudo e comprido, com os caninos de cima desbordando, e, de beiços cerrados, roncou o seu crepitar constante, ralado contra o céu-da-boca.

Mas o outro som foi aumentando, e o carro já estava muito perto.

Com um rabeio final, o papa-mel empoou-se e espoou-se nas costas, e andou à roda, muito ligeiro, porque é bem assim que fazem as iraras, para aclarar as ideias, quando apressa tomar qualquer resolução. Girou, corrupiou, pensou, acabou de pensar, e aí correu para a margem direita, sempre arrastando no solo os quartos traseiros, que pesam demais. E, urge, urge, antes de pegar toca, parou, e trouxe até à nuca, bem atrás de uma orelha, uma das patas de trás, para se coçar.

O rechinar, arranhento e fanhoso, enchia agora a estrada, estridente.

O bichinho mediu, com viva olhada, um arco de círculo, escolhendo o melhor esconderijo: ao pé do pé de farinha-seca, num emaranhado de curuás, balieiras e sangues-de-cristo. Com dois saltos e meio, e mais meia-volta, aninhou o corpo cor de hulha, demasiado indiscreto para a paisagem. Deixava apontar a cabeça e o pescoço, meio ruivos, mas as flores do curuá, em hissopes alaranjados, estavam camaradissimamente murchas, as folhas baixas de balieira eram rubras, e o resto a poeira fazia bistre, ocre, havana, siena, sujo e sépia. Somente os olhos poderosos de um gavião-pombo poderiam localizar a irarinha, e, mesmo assim, caso o gavião tivesse mergulhado o voo, em trajetória rasante.

Sim e mais, mascarava-se o perfume, sobrado de forte e coisa nenhuma agradável, inseparável do cãozinho silvestre: porque as frutas da trepadeira cheiravam maduramente a maçãs.

Por aí se vê que a irara era genial, às vezes; mas, no fundo, não passava de uma mulherzinha teimosa, sempre a suplicar: – Me deixem espiar um pouquinho, que depois eu vou-me embora…

Mal se amoitara, porém, e via surgir, na curva de trás da restinga, o menino guia, o Tiãozinho – um pedaço de gente, com a comprida vara no ombro, com o chapéu de palha furado, as calças arregaçadas, e a camisa grossa de riscado, aberta no peito e excedendo atrás em fraldas esvoaçantes.

Vinha triste, mas batia ligeiro as alpercatinhas, porque, a dois palmos da sua cabeça, avançavam os belfos babosos dos bois da guia – Buscapé, bi-amarelo, desdescendo entre mãos a grossa barbela plissada, e Namorado, caracu sapiranga, castanho vinagre tocado a vermelho – que, a cada momento, armavam modo de querer chifrar e pisar.

Segue-seguindo, a ativa junta do pé-dá-guia: Capitão, salmilhado, mais em branco que em amarelo, dando a direita a Brabagato, mirim-malhado de branco e de preto: meio chitado, meio chumbado, assim cardim. Ambos maiores do que os da junta da guia.

Passo após, a junta, mestra, do pé-do-coice: Dançador, todo branco, zebuno cambraia, fazendo o cavalheiro; e, servindo-lhe de dama, Brilhante, de pelagem braúna, retinto, liso, concolor. Ainda maiores do que os seus dianteiros da contra-guia.

E, atrás – ladeando o cabeçalho – conformes, enormes, tão tamanhões o quanto bois podem ser, os sisudos sócios da junta do coice: Realejo, laranjo-botineiro, com polainas lã de brancas, e Canindé, bochechudo, de chifres semilunares, e, na cor, jaguanês.

Escangalhando o chão com as cintas ferradas das rodeiras, gemendo no eixo a sua cantilena, rolava, por último, a bárbara viatura, arrastada aos solavancos. E a irara virava a carinha para todas as bandas, tão séria e moça e graciosa, que se fosse mulher só se chamaria Risoleta.

Mas, aí, o carreiro, o Agenor Soronho, homenzão ruivo, de mãos sardentas, muito mal-encarado, passou rente ao papa-mel, que estremeceu, ao ver-se ao alcance do ferrão temperado da vara de carrear. Felizmente, o carro chiava e guinchava como nunca. Porque a cachorrinha-do-mato é sestrosa e não pode parar um instante de rosnear; e, além disso, estava como que hipnotizada, pela contemplação do bicho-homem e pelos estalidos chlape-chlape das alpercatas de couro cru.

Distanciava-se a complicada caravana. Então, a irara Risoleta fez o cálculo do tempo de que dispunha. Olhou para cima, espiou para o caminho da direita, a ver se também dali não surgia alguma coisa digna de observar-se, e, depois, numa coragem, correu empós a comitiva, vai que avançando espevitada, vem que desenxabida recuando, sumindo-se nas moitas, indo até lá adiante, namorar o guieiro, mas gostando maismente de se emparelhar com o churrião; não podia, nem jeito, admitir que os grandes buracos das rodas fossem os óculos de tirar barro, de dar passagem à lama nos atoladiços: eram, isso sim, ótimas janelas, por onde uma irara espreitar.

Maneira seja, pôde instruir-se de tudo, bem e bem. E, tempo mais tarde, quando Manuel Timborna a apanhou, – Manuel Timborna dormia à sombra do jatobá, e o bichinho veio bisbilhotar, de demasiado perto, acerca do bentinho azul que ele usa no pescoço, – ela só pôde recobrar a liberdade a troco da minuciosa narração.

Como aquele trecho da estrada fosse largo e nivelado, todos iam descuidosos, em sóbria satisfação: Agenor Soronho chupando o cigarro de palha; o carro com petulância, arengando; a poeira dançando no ar, entre as patas dos bois, entre as rodas do carro e em volta da altura e da feiura do Soronho; e os oito bovinos, sempre abanando as caudas para espantar a mosquitada, cabeceantes, remoendo e tresmoendo o capim comido de-manhã.

Só Tiãozinho era quem tá triste. Puxando a vanguarda, fungando o fio duplo que lhe escorria das narinas, e dando a direção e tenteando os bois.

E, por tudo assim sem história, caminharam um quilômetro ou mais.

Começou, porém, a esquentar fora de conta. Nem uma nuvem no céu, para adoçar o sol, que era, com pouco maio, quase um sol de setembro em começo: despalpebrado, em relevo, vermelho e fumegante.

Então, Brilhante – junta do contra-coice, lado direito – coçou calor, e aí teve certeza da sua própria existência. Fez descer à pança a última bola de massa verde, sempre vezes repassada, ampliou as ventas, e tugiu:

“Boi… Boi… Boi…”

Mas os outros não respondem: continuam a vassourar com as caudas e a projetar de um para o outro lado as mandíbulas, rilhando molares em muito bons atritos.

Dando-se que Brilhante fala dormindo, repisonga e se repete, em sonho de boi infeliz. Assim por assim, o pelame preto compacto põe-no por baixas vantagens, qual e tal, em quente de verão, comborço que envergasse fraque, entre povos no linho e brim branco. Que por isso, ele querer toda vez, no pasto, a sombra das árvores, à borda da mata, zona perigosa, onde mil muruanhas – tavãs e tavoas – tão moscas, voejam, campeando o mole e quente em que desovar. Também que lá, medo ao veneno, a gente tem de pastar com completa cautela: Tubarão, irmão de Brilhante e seu antigo par de junta, morreu, faz mês e meio, ervado de timbó. Coisando por tristes lembranças, decerto, bem faz que Brilhante já carregue luto de sempre. Mas, perpetuamente às voltas com bernes, bichos, carrapichos, e morcegos, rodoleiros, bicheiras, só no avesso da vida, boas maneiras ele não pode ter.

Todavia, ninguém boi tem culpa de tanta má-sorte, e lá vai ele tirando, afrontado pela soalheira, com o frontispício abaixado, meio guilhotinado pela canga-de-cabeçada, gangorrando no cós da brocha de couro retorcido, que lhe corta em duas a barbela; pesando de-quina contra as mossas e os dentes dos canzís biselados; batendo os vazios; arfando ao ritmo do costelame, que se abre e fecha como um fole; e com o focinho, glabro, largo e engraxado, vazando baba e pingando gotas de suor. Rebufa e sopra:

“Nós somos bois… Bois-de-carro… Os outros, que vêm em manadas, para ficarem um tempo-das-águas pastando na invernada, sem trabalhar, só vivendo e pastando, e vão-se embora para deixar lugar aos novos que chegam magros, esses todos não são como nós…”

– Eles não sabem que são bois… – apoia enfim Brabagato, acenando a Capitão com um esticão da orelha esquerda. – Há também o homem…

– É, tem também o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta… – ajunta Dançador, que vem lerdo, mole-mole, negando o corpo. – O homem me chifrou agora mesmo com o pau…

– O homem é um bicho esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar muito para o homem. É o único vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito. É comprido demais, para cima, e não cabe todo de uma vez, dentro dos olhos da gente.

– Mas eu já vi o homem-do-pau-comprido correr de uma vaca… De uma vaca. Eu vi.

– Quieto, Buscapé!… Sossega, meu boizinho bom… – clama o menino guia.

Não é à toa que Buscapé é um boi china, espantadiço e pois pernalongo, que avança distanciando muito as patas e costuma relar com os cascos brutos os calcanhares do guia. Mais ao jeito que ele é mogão e mal-armado, que, se tivesse bons estrepes, na parelha de testa um perigo seria.

Mas Agenor Soronho estranhou qualquer lance:

– Vigia aí, Tiãozinho! Vi um bicho raboso mexer no matinho… Alguma bisca de lobo, ou um jaguapé. Isso são criaturas p’ra vagarem de-noite, não sei o quê que andam querendo a esta hora em beira de estrada, p’ra assustar os bois!

Brabagato curvou-se, chegando o focinho, com veneta de lamber o entre-chifres de Capitão:

– Um homem não é mais forte do que um boi… E nem todos os bois obedecem sempre ao homem…

– Eu já vi o boi-grande pegar um homem, uma vez… O homem tinha também um pau-comprido, e não correu… Mas ficou amassado no chão, todo chifrado e pisado… Eu vi!… Foi o boi-grande-que-berra-feio-e-carrega-uma-cabaça-na-cacunda…

– Ele é bonito, esse um… – profere Dançador, que por sinal dá retrato de zebuíno-nelorino: na cabeçorra quase de iaque – testa lomba, grãos de olhos, cara boba, mais focinho – e na meia giba da cruz; mas ajunta outro tanto de sangue sertanejo, e a mistura põe-lhe um pré-corpo entroncado, dilatado e corcovado, de bisão.

Acolá, longe adiante, onde as árvores dos dois lados se encontram e encartucham e o caminho se fecha aos olhos da gente, apontaram de repente uns cavaleiros. Vêm chegando. Para que eles possam passar, mesmo tendo de contornar o barranco, Tiãozinho detém os bois.

– Boas tardes, seu Agenor! Que é que vão carreando?

– Umas rapadurinhas pretas, mais um defunto… É o pai do meu guia, que morreu p’r’ amanhecer hoje…

– Virgem Santa, seu Agenor! Imagina, só, que coisa triste… – Os homens se descobrem. – E de que foi mesmo que o pobre morreu, seu Agenor, ele que era tão amigo do senhor…?

– A gente não sabe… Da doença antiga lá dele… O coitado andava penando.

– Pobrezinho do menino!… – exclama a moça do silhão. E, a tais palavras, Tiãozinho, que já estava meio quase consolado, recebe inteira, de volta, sua grande tristeza outra vez.

Brabagato aproveitou a parada para se deitar. Desce o corpo, dobrando as quatro pernas, tudo muito complicado, e os joelhos como que se quebram completamente – parece que os garrões vão ao sovaco, cai a quartela na canela e bate o braço no boleto. Amontoa-se no fundo sulco da beira da estrada; e Capitão não reclama: sustenta a canga, inclinando o cogote, e descai as orelhas, enviesando olhos mornos. Mas Brabagato camba para o outro lado, depois de extrair a cauda, que, por afã e por engano, lhe ficara imprensada embaixo, e enxota as moscas passeantes pelo lombo e pelas ancas de montanha branca-e-preta.

Os cavaleiros se despedem. Mas, agora, a moça do silhão joga uma espiadela e murmura, enojada, qualquer coisa a respeito da falta de escrúpulos de se acondicionarem cadáveres em cima de rapaduras.

– Vamos’embora, vamos’embora…

– Vam’, boi!…

Tiãozinho quase não tem fala, mas Soronho brande a vara o brada seu mau-humor. Brabagato se reajoelha e acaba de aprumar-se, em dois tempos e três ferroadas. Os outros rompem adiante, com pronta pressa. As tiradeiras se retesam, de argola a argola. E os bois todos batem cascos, acertando a normal locomoção.

– Oung! Moung! – bufa Canindé, monótono, arrepiando o fio branco do dorso, e repuxando, dos ilhais às primeiras costelas, a pelagem conjugada – de cada lado uma risca preta e uma risca vermelha, muito largas, salpicadas de branco, na descida do flanco e na corda do flanco, pois que é muito bonito um boi jaguanés. Bufa e fala, pé por pé para caminhar:

– Os bois soltos não pensam como o homem. Só nós, bois-de-carro, sabemos pensar como o homem!…

Mas Realejo, pendulando devagar fronte e chifres, entre os canzis de madeira esculpida, que lhe comprimem o pescoço como um colarinho duro, resmunga:

– Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar como o homem…

– É porque temos de viver perto do homem, temos de trabalhar… Como os homens… Por que é que tivemos de aprender a pensar?…

– É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros…

– Pior, pior… Começamos a olhar o medo… o medo grande… e a pressa… O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho… É ruim ser boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens… As coisas ruins são do homem: tristeza, fome, calor – tudo, pensado, é pior…

– Mas, pensar no capinzal, na água fresca, no sono à sombra, é bom… É melhor do que comer sem pensar. Quando voltarmos, de noite, no pasto, ainda haverá boas touceiras do roxo-miúdo, que não secaram… E mesmo o catingueiro-branco está com as moitas só comidas a meia altura… É bonito poder pensar, mas só nas coisas bonitas…

“É isso mesmo… Só o que é bonito… O que é manso e bonito… Eu até queria contar uma coisa… Sabia de uma coisa… Sabia, mas não sei mais”… As orelhas de Brilhante murcharam, e a cabeça sobe e desce. “Não encontro mais aquilo que eu sabia… Coisa velha… Também, vem tanta coisa para a gente pensar!… Vêm, como os mosquitos maus, da beira do mato… Perto do homem, só tem confusão…”

– Boi ôa, boi!… Dianho!… – grita seu Soronho.

Mais não foi que Brabagato, o chamurro pintado, que de-manhã pastou algum talo de capim-roseta, e agora talvez esteja sentindo dor qualquer, no terceiro ou no quarto estômago seu, e quer ruminar de focinho alto; e acontecido que Capitão é um couro-grosso mal mestiçado de franqueiro, que anda pesa-pendendo e cheirando chão, foi quebrado de desjeito, quando o companheiro de trela sungou a cabeça de repente. – Moung?! – Hmoung-hum!… – E badala o cincerro, do pescoço, porque Capitão vem de guampa afoita, oblíquo, querendo mesmo ferir.

E então, calmo, rediz Dançador, voz tão rouca, de azebuado, com tristeza no tutano:

– Não podemos mais deixar de pensar como o homem… Estamos todos pensando como o homem pensa…

Péssima dupla, esta da contra-guia: Brabagato, mal-castrado, tem muito brio e é fogoso; e Capitão é um boi sonso, e pois mau como uma vaca na menopausa. Por isso, e porque um e outro têm chifres verdes – se a gente furar, para pôr as argolas, darão sangue – prende-lhes os cangotes a soga rija, em vez das chifradeiras dos outros cingéis. Divergem as cabeças, e a junta se bifurca, o quanto permite o ajoujo, que essa é a única maneira de se darem as costas. Logo Brabagato recua o corpo, trazendo a canga até à base das hastes. Mas o cornil resiste. E já o carreiro, que vinha quase que só determinando coice e contra-coice, chega de lá, balanceando a vara.

– Capitão!… Brabagato!… – O ferrão cata lombos, palhetas e espáduas, e os bois dois se aquietam, com os flancos em marmelada, a sangrar.

Mas o caminho vai. E alongam-se para diante, na paisagem luminosa, as sombras songas dos bois.

– Estamos todos pensando que nem o homem?… Você, o-que-gosta-de-pastar-a-beira-da-cerca-do-pasto-das-vacas?!…

– Sou o boi Brabagato.

– E o-que-deita-para-se-esconder-no-meio-do-meloso-alto?

– Sou o boi Namorado.

– E o boi-da-noite-que-saiu-do-mato? Boi Brilhante, boi Brilhante?!… Que foi que ele disse?…

“Estou caçando e não acho… Mas não vamos pensar como o homem… Esperem… Ainda não encontrei aquilo…”

– O quê?…

“Só o que for manso e o que for bonito… Também, assim, não posso… Não sei o que é que o carro diz, gritando tanto… Só os cavalos é que podem entender o carro…”

O sol agora está dois degraus mais alto. A poeira deixou de ser vermelha: é parda, parecendo cinza fina. Estão num baixadão de campo, de semiarbustos, flechinha e capim-lanceta, todo encalombado de surujes de cupins.

Vem a voz de outro carreiro, gritando. Fazem a volta, acolá, outras juntas: seis parelhas, puxando um carretão, que arrasta imenso toro acorrentado – um tronco de tamboril, tal de metros de diâmetro, lavrado no mato.

Tiãozinho sorri para o menino-guia. Soronho saúda os carreiros. E os bois de cá espiam os bois do carretão: com outros, mal conhecidos: Tinhorão, Marechal, Cantagalo e Murici. Também deitam olhares, mas vão afanados, que o peso é pesado: debruçando os perfis cuneiformes; colgados nas jugulares das brochas; bijungidos, dois a dois paralelos, – anca a anca, chifre a chifre, pá a pá.

Passam. Passaram. Sumiram. O carro aqui rechina mais forte, outra vez.

– Esperta, boi!…

Agora, o carreiro, sim, que é homem maligno. O dia, para ele, amanheceu feliz, muito feliz. Mas, mesmo assim por assim, só porque está suando, não deixa de implicar:

– Tu Tião, diabo! Tu apertou demais o cocão!… Não vê que a gente carreando defunto-morto, com essa cantoria, até Deus castiga, siô?!… Não vê que é teu pai, demoninho?!… Fasta! Fasta, Canindé!… Ôa!… Ô-ôa!… Anda, fica novo, bocó-sem-sorte, cara de pari sem peixe!… Vai botar azeite no chumaço, que senão agorinha mesmo pega fogo no eixo, pega fogo em tudo, com o diabo p’r’ajudar!…

Tiãozinho veio no grito, mas se mexendo encolhido, com medo de que o homem desse nele com a vara-de-ferrão. Falta de justiça, ruindade só. Foi o carreiro mesmo quem apertou a chaveta da cantadeira, hoje cedo; e até estava enjerizado, na hora, falando que Tiãozinho era um preguiçoso, que não prestava nem para ajeitar o carro nem para encangar os bois.

Clamando, xingando, Agenor Soronho vem para a traseira, onde está pendurado o chifre de unto. Estende-o ao menino, e dá uma espiada lá para dentro. Atrás, o carro estava sem tampo: só com uns sedenhos, esticados a diferentes alturas, entre os muitos fueiros, para impedir que, a cada tranco, a carga se fosse derramando.

Em cima das rapaduras, o defunto.

Com os balanços, ele havia rolado para fora do esquife, e estava espichado, horrendo. O lenço de amparar o queixo, atado no alto da cabeça, não tinha valido de nada: da boca, dessorava um mingau pardo, que ia babujando e empestando tudo. E um ror de moscas, encantadas com o carregamento duplamente precioso, tinham vindo também.

Soronho volve depressa a cara e vai encostar-se à cheda do lado direito, onde a esteira de caniço, alta, o isola do fúnebre viajante.

Mas, acolá, nos encangamentos, prorrompe novo reboliço.

– Olha esses bois, aí, diabo!… Capitão! Brabagato!…

Treta e teima. Alguma mutuca voandeja passou e pinicou a orelha de Brabagato, que estava de olhos fechados e atribuiu a ofensa a Capitão. Virou, raivado. Entestam. Reentestam. E estralam as chifrancas.

Soronho fincou a aguilhada, e Tiãozinho correu, atarantado, sem saber se oleava o cocão ou se acalmava os dois da guia, que, ouvindo bulha lá atrás, pensavam que havia ordem para caminhar.

– Ôa!… – Dá de prancha, com a vara, nos topetes dos bois, que desviam para fora os nós dos joelhos, e travam pausa, imóveis perfeitamente. Então o candieiro volta para azeitar o eixo, depois de deixar a vara apoiada no peito da canga – obstáculo esse que Buscapé e Namorado resguardam com respeito.

Mas Agenor Soronho olhou para o sol, enrugando a cara. Pisca, pisca, e mais se enfeza.

– Que martírio!… De vez que não acaba mais com isso, ou tu pensa que os outros vão ficar no arraial com o cemitério aberto; esperando a gente?!…

– Já vou, seu Soronho… Já vai…

– É, nheinhein?!… Ai, que sina, esta minha, trabalhando em sol e chuva, e inda tendo de aguentar este mamão-macho sem preceito!… Tu fala macio, mas p’ra trabalhar comigo tu não presta… Mais em antes eu queria um rapazinho carapuçudo e arapuado, que fosse malcriado mas com sustância que nem eu, p’ra trabucar… Que me importa, se a gente chega de noite no arraial?! O pai não é meu, não… O pai é seu mesmo… Só que tu não tem aquela coisa na cara… Mas, agora, tu vai ver… Acabou-se a boa vida… Acabou-se o pagode!…

Chora-não-chora, Tiãozinho retoma seu posto. “O pai não é meu, não… O pai é seu mesmo…” Decerto. Ele bem que sabe, não precisa de dizer. É o seu pai quem está ali, morto, jogado para cima das rapaduras… Deixou de sofrer… Cego e entrevado, já de anos, no jirau… Tiãozinho nem se lembrava dele de outro jeito, nem enxergando nem andando… Às vezes ele chorava, de noite, quando pensava que ninguém não estava escutando. Mas Tiãozinho, que dormia ali no chão, no mesmo cômodo da cafua, ouvia, e ficava querendo pegar no sono, depressa, para não escutar mais… Muitas vezes chegava a tapar os ouvidos, com as mãos. Malfeito! Devia de ter, nessas horas, puxado conversa com o pai, para consolar… Mas aquilo era penoso… Fazia medo, tristeza e vergonha, uma vergonha que ele não sabia bem por que, mas que dava vontade na gente de querer pensar em outras coisas… E que impunha, até, ter raiva da mãe…

– Ôa!… Ôa, boi teimoso… Buscapé, demônio!

Ah, da mãe não gostava!… Era nova e bonita, mas antes não fosse… Mãe da gente devia de ser velha, rezando e sendo séria, de outro jeito… Que não tivesse mexida com outro homem nenhum… Como é que ele ia poder gostar direito da mãe?… Ela deixava até que o Agenor carreiro mandasse nele, xingasse, tomasse conta, batesse… Mandava que ele obedecesse ao Soronho, porque o homem era quem estava sustentando a família toda. Mas o carreiro não gostava de Tiãozinho… E era melhor, mesmo, porque ele também tinha ojeriza daquele capeta!… Ruço!… Entrão!… Malvado!… O demônio devia de ser assim, sem tirar e nem pôr… Vivia dentro da cafua… Só não embocava era no quartinho escuro, onde o pai ficava gemendo; mas não gemia enquanto o Soronho estava lá, sempre perto da mãe, cochichando os dois, fazendo dengos… Que ódio!…

O caminho, descurvo, vai liso para a frente. E, lá léguas, meão roxo, é o Morro Selado, onde mora um sujeito maluco, que tem ouro enterrado no chão.

Pobre do pai!… Tiãozinho tinha de levar a cuia com feijão, para comer junto com ele, porque nem que a mãe não tinha paciência de pôr comida na boca do paralítico… E ela, com seu Soronho, tinham, para comer, outras coisas, melhores… Deviam de ter… Mas, com isso, Tiãozinho não se importava… O que doía era o choro engasgado do pai, que não falava quase nunca… Mas Deus havia de castigar aquilo tudo, Não estava direito, não estava não!…

– Cristo! Cris-pim-cris-pim-cris-pim-crispim!

Um par de joãos-de-barro arruou no caminho, pouco que aos pés de Tiãozinho. Galinhando aos pulos, abrem bico e papo, num esganiço de alarido, mesmo de propósito, com rompante. Arrepicam e voam embora, soprando penas. Marido e mulher.

– Ôa, Namorado!… – E Tiãozinho faz meia-volta e dá uma corrida de costas, pelejando para conter os da guia, golpeando-lhes as testorras e picando-os com o ferrão. Foi Namorado, o boi vermelhengo, que tomou um repente e chegou a catucar o candieiro, com uma cornada de través. Mas, agora, está pondo olhos mansos, em fito desconsolado, enquanto Buscapé se socorna.

Boi urubu é boi Brilhante, que afunda cachaço e cara, angular, para o chão da frente. Preto e movente, assombra, que nem estranho enorme bicho d’água, com óleo e lustro no pelo, esgueirando-se a custo, quase rampante. E boi Brilhante pensa falado:

“Estou andando e procurando… As coisas pequenas vêm vindo, lá de trás, na cabeça minha, mas não encontro as coisas grandes, não topo com aquilo, não…”

Ora caminhando de frente, ora aos recuões, Tiãozinho tem de ficar espertado, porque os bois agora deram para se agitar. Se o guia pega a pensar demais, se descuidando, logo se alerta com o bafo quente nas orelhas e a baba lhe respingando na nuca.

– Ôa, Namorado!…

Também, quem tem a culpa d’eles ficarem assim desinquietos é o carreiro, que vem picando os bois, à toa, à toa, sem precisão. É mau mesmo. “Mas, agora, tu vai ver!… Acabou-se a boa vida… Acabou-se o pagode!”… P’ra que falar isso?!… Seu Soronho sempre não xingou, não bateu, de cabresto, de vara-de-marmelo, de pau?!… E sem ter caso para mão brava, nem hora disso, pelo que ele lidava direito, o dia inteiro, capinando, tirando leite, buscando os bois no pasto, guiando, tudo… Mas Tiãozinho espera… Há de chegar o dia!… Quando crescer, quando ficar homem, vai ensinar ao seu Agenor Soronho… Ah, isso vai!… Há de tirar desforra boa, que Deus é grande!…

Um mandiocal. O cafezal: de cimo a chão, moita e folha. As bananeiras.

“Bhu! Muff”… De repente, boi Brilhante projetou a cabeça, que sai do enquadramento – canga, canzis e brocha – como o pescoço de um jabuti que se desencaixa para beber chuva. E fanha, e funga:

“Achei a coisa, aquilo!… Foi o boi que pensava de homem, o-que-come-de-olho-aberto…”

– Era o boi Rodapião…

“Era o boi Rodapião. E foi. Chegou, um dia, não se sabe…”

– Veio de manhã…

“Pequeno ele, pouco chifre, vermelho café de vez… Era quase como nós, aquele boi Rodapião… Só que espiava p’ra tudo, tudo queria ver… E nunca parava quieto, andava p’ra lá e p’ra cá…”

– Eu também pastei junto, com esse boi Rodapião…

Estão passando agora em frente à Fazenda do seu Gervásio. Os cachorros vêm fazer algazarra cá embaixo na estrada, só para assustar os bois. Agenor Soronho manda no que é seu: – Canindé, Realejo!… Ôa, Brabagato! Ô’r’vai!… –; e grita mais pelo Diabo, que “diabo” é o seu refrão.

A casa está aberta, mas não se vê ninguém. Todos foram ao canavial, pois é o começo do tempo de corte, marcar a cana caiana que vão moer amanhã de manhã.

– Vamos, Buscapé!… Va-amos!…

O casarão avarandado já ficou para trás, com a latomia dos cachorros e as frondes do laranjal. Tiãozinho começa a cansar. Que calor!… E a poeira seca a goela da gente. Estará sentindo dor-por-dentro no pescoço? São Brás! São Brás!… Não quer penar como o Didico da Extrema, que caiu morto, na frente de seus bois…

Tinha só dez anos o Didico, menor do que Tiãozinho. Mas trabalhava muito, também. Foi num dia assim quente, de tanta poeira assim… Ele teve de ir carrear sozinho, porque era o carro pequeno, só com duas juntas e carga pouca, de balaios de algodão. Na hora de sair, se queixou: – “Estou com uma coisa me sufocando… Não posso tomar fôlego direito, nem engolir… E tenho uma dor aqui…” (Lá nele, Didico)…

Ninguém se importou; falaram até de ser manha, porque o Didico era gordinho e corado, parecendo um anjo de estampa, de olhinhos gaiteiros e azuis.

Mas estava custando muito a voltar. Nunca mais aparecia com o carro. E foram encontrá-lo, lá longe, na covanca da Abóbora-d’Água, já frio. Os bois haviam parado, para não pisar em cima, e estavam muito quietos, pois às vezes eles gostam de ficar assim. Menos os da guia, que tinham mascado e comido quase toda a roupinha do pobre do Didico… – São Brás!…

Vão por um trato de campo ondulado, com pastagem áspera de capim-guiné verde-azul. Só aqui ou ali uma árvore: ou pau-doce ou pau-terra ou pau-santo, quase sempre com um ninho de guaxe pendurado de um galho, como enorme coador de café.

E aí, que todos estugam as passadas, boi Brilhante desdorme, em velho vezo de conversação:

“Comigo, na mesma canga, prenderam o boi Rodapião… Chegou e quis espiar tudo, farejar e conhecer… Era tão esperto e tão estúrdio, que ninguém não podia com ele… Acho que tinha vivido muito tempo perto dos homens, longe de nós, outros bois… E ele não era capaz de fechar os olhos p’ra caminhar… Olhava e olhava, sem sossego. Um dia só, e foi a conta de se ver que ninguém achava jeito nele. Só falava artes compridas, ideia de homem, coisas que boi nunca conversou. Disse, logo: – Vocês não sabem o que é importante… Se vocês puserem atenção no que eu faço e no que eu falo, vocês vão aprendendo o que é que é importante… – Mas, por essas palavras mesmas, nós já começamos a ver que ele tinha ficado quase como um homem, meio maluco, pois não…”

– Ôa!

Estacam todos, bois e carro, no meio do chapadão. Foi o guia Tiãozinho, que teve de parar para segurar as calças, que lhe tinham caído de repente até aos pés. Depôs a vara no chão, depressa, porque estava até vermelho, só em camisão e perninhas magrelas, que vergonha. E agora está-lhe custando para amarrar a tira de pano na cintura e ficar composto outra vez.

Com o céu todo, vista longe e ar claro – da estrada suspensa no planalto – grandes horas do dia e horizonte: campo e terras, várzea, vale, árvores, lajeados, verde e cores, rotas sinuosas e manchas extensas de mato – o sem-fim da paisagem dentro do globo de um olho gigante, azul-espreitante, que esmiúça: posto no dorso da mão da serrania, um brinquedo feito, pequeno, pequeno: engenhoca minúscula de carro, recortado; e um palito de vara segura no corpo de um boneco homem-polegar, em pé, soldado-de-chumbo com lança, plantado, de um lado; e os boizinhos-de-carro de presépio, de caixa de festa. E o menino Tiãozinho, que cresce, na frente, por mágica. Pronto. As calças não vão cair mais!

Arre! que nunca foi tão penosa uma ida ao arraial. Também, com tudo tão triste, carreando o pai para a cova, coitado do pai… Mas, deve de ter subido para o Céu, direito, na mesma da hora… Na véspera de morrer, de noite, ele ainda pedira para Tiãozinho tirar reza junto… E Tiãozinho puxara o terço, cochilando… Estava com muito sono, porque tinha ido, a pé, ao Marçal Velho, levar um recado… Depois da salve-rainha, o pai pôs nele a bênção, e ele deitou no enxergão, para dormir logo, esquentando os molambos… Também não adiantou nada estar dormindo no mesmo canto; só deu fé daquela tristeza toda foi quando viu a mãe, chorando, sacudindo-o para levantar. Aí, Tiãozinho tinha chorado também…

Mas, a mãe, por que é que ela havia de chorar?! por que? Ela não gostava do pai… Tiãozinho pouco pudera ver, pelos buracos da parede de pau-a-pique, quando eles estavam lavando o corpo… A cafua se enchera, não cabendo, de gente… E seu Agenor Soronho estava muito galante com todos. Estava mesmo alegre, torcendo as pontas do bigode vermelho, mas fazendo de estar triste, às vezes, de repente… E até quando Tiãozinho, zonzo de tanta confusão, se sentara na pedra que faz degrau na porta da cozinha, o carreiro tinha vindo consolar sua tristeza, dizendo que daí em diante ia tomar conta dele de verdade, ia ser que nem seu pai…

Os vizinhos bem que estavam às ordens, para carregar cristão defunto. Mas eram seis léguas apuradas, e, como seu Agenor estava mesmo para levar uma carga de rapadura do Major Fréxes, dispensou os préstimos para o cortejo, e atrelou quatro juntas, porque na volta ia trazer o carro cheio, com os rolos de arame farpado que estavam esperando por ele, na estação do arraial…

Não havia caixão: só o esquife tosco, entre padiola e escada, com as barras atadas com embira e cipó. Ajeitaram o morto em cima do ladrilhado das rapaduras. Tiãozinho, já pronto, esperava no seu lugar, com muita pressa de sair, porque aquilo tudo estava sendo ruim demais… A mãe ficara na porta, chorando sempre, exclamando bobagens, escorada nas outras mulheres todas, que ajudavam a chorar… E o resto do povo tinham feito o pelo sinal e virado as costas, porque faz mal a gente ficar espiando um enterro até ele se sumir.

O caminho fundo corta uma floresta de terra boa, onde cansa a gente olhar para cima: árvores velhas, de todas as alturas – braçudas braúnas, jequitibás esmoitados, a colher-de-vaqueiro em pirâmides verdes, o lanço gigante de um angico-verdadeiro, timbaúbas de copas noturnas, e o paredão dos açoita-cavalos, escuros. Cheiro bom de baunilha, sombra muito fresca, cantos de juritis, gorgear de bicudos, o trilo batido da pomba-mineira, e, mais longe, mais dentro, na casa do mato, o pio tristonho do nhambu-chororó.

Tiãozinho atrasa o passo, para aproveitar. Mas ainda está triste. Não quer pensar no pai depois – tem medo de pôr a ideia no corpo que vem em riba da pilha das rapaduras. Só aguenta pensar nele de-em-antes, na cafua… Pega a imaginar outras coisas. Fala os bois, sem precisão: – Buscapé!… Brabagato!… – Depois, faz força para se lembrar dos nomes das vacas todas do seu Major Gervásio: Espadilha… Bolívia… Azeitona… Mexerica é a turína. Porcelana é a toda branca, desmochada. Guiamina é a preta, de cinturão branco no cilhador…

Mas, o chapéu na cabeça? Não pode… Tira o chapeuzinho de palha, que também não tapa o sol e nem nada. Vai levar na mão. Também… Não quer pensar mais no pai em antes. Mas não tem ideia para poder deixar de pensar… O pai gemendo… Rezando com ele… E se rezasse também agora?… Devia…

E começa a rezar, meio alto, só como sabe, enquanto a estrada sai do mato para o calorão do cerrado, com enfezadas arvorezinhas: muricis de pernas tortas, manquebas; mangabeiras pedidoras-de-esmola; barbatimãos de casca rugosa e ramos de ferrugem; e, no raro, um araticum teimoso, que conseguiu enfolhar e engordar.

Da garupa de Brabagato a cauda cai como uma cobra grossa, oscilando, e o pincel zurze o ar, quase nos chifres de Brilhante, que fechou de todo os olhos e vergou o toutiço.

…“Cada dia o boi Rodapião falava uma coisa mais difícil p’ra nós bois. Deste jeito: – Todo boi é bicho. Nós todos somos bois. Então, nós todos somos bichos!… Estúrdio…”

“Quando a gente não saía com o carro, e ficava o dia no pasto, ele falava mais em mais.” Uma vez, ele disse: – Nós temos de pastar o capim, e depois beber água… Invés de ficar pastando o capim num lugar só em volta, longe do córrego, p’ra depois ir beber e voltar, é melhor a gente começar de longe, e ir pastando e caminhando, devagar, sempre em frente… Quando a gente tiver sede, já chegou bem na beira d’água, no lugar de beber; e assim a gente não cansa e tem folga p’ra se poder comer mais! – E ele foi logo fazendo assim, do jeito como tinha falado; mas nós nem podíamos pensar em fazer que nem ele. Porque a gente come o capim cada vez, onde o capinzal leva as patas e a boca da gente…

“Outra vez, boi Rodapião disse: – Quando o boi Carinhoso ficou parado, na beirada do valo do pasto, e não quis comer de jeito nenhum, o homem veio e levou o boi Carinhoso no curral, e pôs p’ra ele muito sal, no cocho… Se nós ficarmos também sem comer, todos, parados na beirada do valo, o homem. Nos dará milho e sal, no curral, no cocho grande… – E ele fez assim mesmo, e aquilo deu certo; e boi Rodapião comeu sal muito e ficou alegre. Nós, não.”

O rangido do carro de novo se reforça. Brilhante dormiu. Veio um silêncio. E todos, de olhos quase fechados, ficam vivendo na cabeça coisas mais fundas que o pensamento e o sonho, e, assim, sem pressa, chegam ao vau do ribeirão.

Está um mormaço pesado, mas o ribeirão corre debaixo de árvores, no bem-bom. Tiãozinho entra, até os joelhos, na água, fria que faz cócegas. Molha os pulsos. O chapeuzinho furado é peneira para vazar. Então, ele abaixa as mãozinhas juntas, e bebe.

A junta da guia, com simetria perfeita, baixa os três arcos da canga, para trazer as belfas ao rés da correnteza; e, abrindo as fuças em conchas moles, os bois sorvem, demoradamente.

De eis, Buscapé, e depois Namorado, acabaram; sacodem o molhado das caras, lambem os beiços, devagar, e ficam espiando, à espera. Que santos de grandes, e cheirando forte a bondade, bois companheiros, que não fazem mal a ninguém; criação certa de Deus, olhando com os olhos quietos de pessoa amiga da gente!… E Tiãozinho corre os dedos pelo cenho de Buscapé, e passa também mão de mimo no pescoço de Namorado – imóveis, os dois.

Todos já beberam; mesmo Realejo não tem mais sede: mantém o focinho abaixado, só porque, no limo que se esfiapa das pedras do fundo, supõe talvez uma raça de capim de luxo, que deve de ser macio…

Aí é que Agenor Soronho está mesmo com o demo:

– Vam’bora, lerdeza! Tu é bobo e mole; tu é boi?!… Carece de ficar aí a vida inteira, feito estaca de dentro d’água, feito esteio de moinho?!… Vamos, Canindé!… Dançador! Vamos!…

Quando as rodas entram no córrego, Agenor Soronho não se molha, porque já está trepado, entre o pigarro e a chavelha, no cabeçalho, que avança como um talhamar. E fez bem, porque, depois da passagem, por metros, há um alagadiço perene: um tremembé atapetado de alvas florinhas de bem-casados e de longos botões fusiformes de lírios.

– Entra p’ra o lado de lá, que aí está embrejado fundo… Mais, dianho!… Mas não precisa de correr, que não é sangria desasada… Tu não vai tirar o pai da forca, vai?… Teu pai já está morto, tu não pode pôr vida nele outra vez!… Deus que me perdoe de falar isso, pelo mal de meus pecados, mas também a gente cansa de ter paciência com um guia assim, que não aprende a trabalhar… Ôi, seu mocinho, tu agora mesmo cai de nariz na lama!… – E Soronho ri, com estrépito e satisfação.

Tiãozinho olhou, assim meio torto. “Teu pai já morreu, tu não pode pôr vida nele outra vez…” Por que é que não foi seu Agenor Carreiro quem a morte veio buscar?! Havia de ter sido tão bom!…

Os bois tafulham as munhecas, com cloques sonoros; quando desatolam, para outra passada, a água suja escorre, chorrilhando, para encher os moldes dos cascos, e, no mais mole, as bainhas – as fundas cisternas cavadas pelos mocotós.

Enlameado até à cintura, Tiãozinho cresce de ódio. Se pudesse matar o carreiro… Deixa eu crescer!… Deixa eu ficar grande!… Hei de dar conta deste danisco… Se uma cobra picasse seu Soronho… Tem tanta cascavel nos pastos… Tanta urutu, perto de casa… Se uma onça comesse o carreiro, de noite… Um onção grande, da pintada… Que raiva!…

Mas os bois estão caminhando diferente. Começaram a prestar atenção, escutando a conversa de boi Brilhante.

“Então, boi Rodapião ainda ficou mais engraçado de-todo”. Falava: – A gente deve de pensar tudo certo, antes de fazer qualquer coisa. É preciso andar e olhar, p’ra conhecer o pasto bem. Eu conheço todos os lugares, sei onde o capim é mais verde, onde os talos ficam quase o dia inteiro molhados de orvalho, p’r’a gente poder pastar mais tempo sem ter sede. Sei onde é que não dá tanto mosquito, onde que a sombra, e o limpo do chão; e, pelo jeito do homem, sei muitas vezes o que é que ele vai fazer… Olho p’ra tudo, e sei, toda hora, o que é o melhor… Não tenho nunca dor-de-barriga, porque não pasto por engano capim navalha-de-mico, no meio do jaraguá… Vocês não fazem como eu, só porque são bois bobos, que vivem no escuro e nunca sabem porque é que estão fazendo coisa e coisa. Tantas vezes quantas são as nossas patas, mais nossos chifres todos juntos, mais as orelhas nossas, e mais: é preciso pensar cada pedaço de cada coisa, antes de cada começo de cada dia…

“E nós não respondíamos nada, porque não sabemos falar desse jeito, e mesmo porque, cada horinha, as coisas pensam p’r’a gente…”

“Mas boi Rodapião ia ficando sempre mais favorecido com suas artes, e era em longe o mais bonito e o mais gordo de nós todos. Até que chegou um dia…”

– Firme, Realejo!… Canindé, boi bom!…

Vão descer uma rampa de grande declive, e os bufalões destamanhos da junta do coice aguentam o peso do carro, fazendo freio e firmando no chão os cascos, fendidos como enormes grãos de café.

– Vamos!…

A traquitana continua a se afundar morro abaixo, agora uma ladeira mais calma, com as juntas da frente apressadas, as ferragens tinindo e toda a apeiragem fazendo balbúrdia, nas chapas e nos ganchos.

Mal o caminho se deita, Canindé solta uma interjeição bovina pouco amável: sim de orelhas, sopro frouxo e três oitavos de mugido; e Realejo faz qualquer monossílabo, com ironia também soprosa, de ventas dilatadas, contraídas as falsas-ventas. Mas, lá na guia, obliquando a carantonha, comenta Buscapé:

As coisas corriam lisas, como um córrego… Passavam as touceiras do bengo, ligeiras… Passavam as moitas, subindo o morro… Corria o capim-angola, ainda em mais correnteza… Eu estou com fome. Não gosto de puxar o carro… Queria ficar pastando na malhada, sozinho… Sem os homens.

– Eu acho que nós, bois, – Dançador diz, com baba – assim como os cachorros, as pedras, as árvores, somos pessoas soltas, com beiradas, começo e fim. O homem, não: o homem pode se ajuntar com as coisas, se encostar nelas, crescer, mudar de forma e de jeito… O homem tem partes mágicas… São as mãos… Eu sei…

Mas já Brilhante endureceu as orelhas, soslaiando Dançador:

“Chegou um dia, nós reparamos que já estava trecho demais sem chover. Tempo e tempo. Coisa como nunca em antes tinha sido. Quase que nem capim seco não tinha mais, e a gente comia gravetos, casca de árvores, e desenterrava raiz funda, p’ra pastar. Foi ruim…”

“Então, os homens vieram, e chamaram todos os bois p’ra fora do pasto rapado, e foram levando a gente p’ra longe. Muitos dias, muito longe. Depois, chegamos… E puseram os bois nós todos num pasto diferente, desigual de todos os pastos, e que era todo num morro frio, serra a-pique, sem capim conhecido de nenhum de nós… Aí a gente pegou a comer, quase sem levantar as cabeças… Mas, o boi Rodapião…”

Lés a lés, de mato para mato, cruzou uma borboleta grande, uma panã-panã de céu e brilho, que, a cada vez redonda de abrir asas, parecia tornar a se recortar e desdobrai de um papel azul.

… “– O bebedouro fica longe, – disse o boi Rodapião. – Cansa muito ir até lá, p’ra beber… Vou pensar um jeito qualquer, mais fácil… Pensando, eu acho…”

“Aí, nós nem respondemos. Aquilo era mesmo do boi Rodapião. Porque eu não tinha precisado de pensar, p’ra achar onde era que estava o bebedouro, lá em baixo, mais longe.”

– Brilhante, vaca diabo!…

Lá vem seu Soronho, que nem um demônio, pernas e pernas, caminhando nas tiradeiras esticadas, pulando entremeio às juntas, e achando jeito para meter o aguilhão na cruz espessa de Realejo e na cernelha pontuda de Dançador.

Tiãozinho baixa a cabeça, e aperta a vara na mão, com mais força. O raio!… Bem que ele podia cair… Mas não cai. Agenor Soronho, na sua terra, é o melhor carreiro do mundo. Pisando nos paus e correntes, vai de cambão em cambão, como um imenso macaco; chega até cá na guia, para fazer colo, e então salta no chão, que nem um artista decirco-de-cavalinhos, mas zangando com Tiãozinho e caçoando dos bois.

– O que tu ‘tá tretando aí, não me fala!…

Agora é preciso cuidado e lentidão de passo, pois a estrada tora entre despenhadeiro e barranco. – Õa, boizinho, ôa! – avisou já Tiãozinho, olhando para cada um deles, assustado, quase que pedindo para passarem com modos, pelo-amor-de-deus: Buscapé, Namorado; Capitão, Brabagato. E Brilhante:

“Mas boi Rodapião foi espiando tudo, sério, e falando: – Em todo lugar onde tem árvores juntas, mato comprido, tem água”. Lá, lá em-riba, quase no topo do morro, estou vendo árvores, um comprido de mato. Naquele ponto tem água! – E ficou todo imponente, e falou grosso: – Vou pastar é lá, onde tem aguada perto do capim, na grota fresca!…

“Eu também olhei p’r’a ladeira, mas não precisei nem de pensar, p’ra saber que, dali de onde eu estava, tudo era lugar aonde boi não ir. Mas boi Rodapião falou como o homem: – Eu já sei que posso ir por lá, sem medo nenhum: a terra desses barrancos é dura, porque em ladeira assim parede, no tempo das águas, correu muita enxurrada, que levou a terra mole toda… Não tem perigo, o caminho é feio, mas é firme. Lá vou…”

“Eu não disse nada, porque o sol estava esquentando demais. E boi Rodapião foi trepando degrau no barranco: deu uma andada e ficou grande; caminhou mais, ficou maior. Depois, foi subindo, e começou a ficar pequeno, já indo por lá, bem longe de mim…”

– E daí? E foi?

“Escutei o barulho dele: boi Rodapião vinha lá de cima, rolando poeira feia e chão solto… Bateu aqui em baixo e berrou triste, porque não pôde se levantar mais do lugar das suas costas…”

– E foi?

“Ajudar eu não podia e nem ninguém… Chamei os outros, que não vinham e não estavam de se ver… Aí, olhei p’ra o céu, e enxerguei coisa voando… E então espiei p’ra baixo e vi que já tinham chegado e estavam chegando desses urubus, uns e muitos… E fui-m’embora, por não gostar de tantos bichos pretos, que ficaram rodeando aquele boi Rodapião.”

– E nunca se soube se tinha água no alto do morro, então?

“Contei minha história, agora vou cochilar… Sei não.”

Mas, agora, está ali defronte um carro quebrado, e as juntas de bois, folgando em ordem, mais no alto, na escarpa.

– Ôi Tiãozinho, vamos devagar e para aí mais adiante. É o carro da Estiva, com o João Bala carreando… Eli, espandongado… Diabo! Despencou morro abaixo, vamos ver só o que foi… A modo e coisa que… ‘Tá’í! O que é que adianta esse gosto bobo de ter todos os bois laranjos, de uma cor só?… Ah, esta subidinha ladeira do Morro-do-Sabão não é brinquedo cujo p’ra qualquer um não!… Eu sempre falo: p’ra carrear fazendo zoeira, e dando ferroadas, e gritando, todo-o-mundo é fácil… Mas não tem muita gente capaz de saber falar o gado direito, nem determinar o coice na descida, nem espertar a guia e zelar a contra-guia na subida, nem fazer um colo bem feito, nem repartir o movimento com lição…

– Ôa, Dançador!… Ôa… Espera aí, Tiãozinho, que eu vou lá ver o Bala, que está com cara de cachorro que quebrou panela, todo amontado no sem-jeito…

Mal que prosa de carreiro é coisa de si por si engraçada, pois estão sempre arrumando a voz, por traquejo de fazer a fala, e só no sestro de esticar olho para os dois lados da frente, que nem vigiando seus bois; mas, desta vez, Agenor Soronho está olhando mesmo de propósito, todo de-luxo com os estragos do carro do outro:

– Oh, seu João Bala!… Que pouca sorte da nenhuma foi isso por aí com o senhor?…

– O que foi, foi o que o senhor está vendo, seu Angenor!…

– Chí-i!… Partiu a cheda, o cabeçalho, no encontro… Ví-i!… O chazeiro do outro lado não teve nada, mas rachou o tabuleiro também … Vai ser um despesão, muito mais do que uns seiscentos e cinquenta mil-réis ou o dobro, só p’ra poder mandar consertar uma má metade dos estragos… E tinha muita coisa dentro?

– Só tinha, graças-a-deus, aqueles dois pipotes de cachaça, porque eu ia era buscar a família do patrão no arraial…

– Vigia só como é que espatifou tudo! São coisas que acontecem com qualquer um de nós; nenhum carreiro mestre, com certeza de mão, não está livre disto… Inda tem cachaça ali um pouquinho, p’ra se aproveitar… Mas, como é que o desmando se deu, seu João Bala?

– Com’é? Ora, seu Angenor, como é que havia de poder ter sido?!… O senhor, carreiro velho, calejado, hão está vendo a sola e a sovela? Não foi vergonha nenhuma p’ra mim. A gente aí vinha subindo o morro… Tudo ia indo direito. Eu estava dentro do carro, mesmando… Mas, de repente, quando eu vi, foi a coisada toda desandando morro abaixo: primeiro, foi um estralo… E eu vi que tinha rebentado o rabo da tiradeira do contra-coice…

– Ô diabo!

– Ficou feio, seu Soronho! Ficou feio. Deus e demo, que o carro descambava p’ra trás, feito doido, tinindo e arrastando a junta cio coice, que foi a única que ficou presa, com os bois enforcados quase. Aquilo eles vinham que vinham mesmo, ajuntando o capim nos cascos e arrastando o capim p’ra trás!…

– Credo!

– Mas, aí, quando eu vi que estava ali estava morto sem santos-óleos, clamei o nome de Nossa Senhora, porque pular é que eu não podia pular mais… Então, me deu um repente, e eu fiquei brabo e gritei ordens: – Segura, Camurça! Segura, Melindre!… – Ai, meus boizinhos da minha junta do coice, boizinhos bons, de peso e sujeição!…

– Sei deles… Bois de lei…

 Ilustração de Poty, Sagarana, de João Guimarães Rosa

– Ara, se ara!… Abaixo de Deus, eu tiro o chapéu p’ra eles dois, porque foram que me salvaram!… Só eu gritar, e eles estacando e estribando, e não arredaram mais. Foi mesmo no lugar da ladeira a pique, ali no meio do escorregador da descida… Sem desageração, mas era só o carro fazendo p’ o p’ra descer, e cortando, sem licença de aluir do lugar, porque Melindre mais Camurça sojigavam o chão com os cascos, mas não entregavam o corpo!… Eu mesmo nunca vi bois p’ra terem tanto poder desse jeito: aquilo eles garraram a sapatear, virando roda, e ficaram tremendo assim:

– E pois?

– Aí eu aproveitei, e torei fora… Se tivesse demorado um tiquinho mais p’ra saltar, estava moído: porque foi só mais outro estralo, e partiram os tamoeiros e o resto, e os bois ficaram soltos, e até garraram a subir o morro todo, numa corrida como se tivessem ficado malucos só nessa hora, e então foi que o carro tiniu direito, saindo p’ra banda de fora da estrada e dando de rabo por essas pirambeiras… Foi tudo num relance tão ligeiro, que só depois é que eu vi que tinha visto…

… Mas, bonito, foi! Foi bonito!… O diabo espatifou lá em baixo, e as pipas de cachaça ele tangeu p’ra longe. ‘Magina, se não fossem os meus boizinhos abençoados!… Olha só como é que estão lá em-riba me esperando… Ei, Camurça mais Melindre, ensinadinhos, certos de fala, bons de ouvido… Em qualquer descida mais pior, era só eu mostrar a vara p’ra os dois, e eles, que são bois-mestres de coice, iam sentando, e a canga jogando a junta p’ra riba! Por mesmo que as outras relaxassem, estava tudo firme em casa…

… Agora, o material é que não prestou paga: nem um apeiro p’ra ter valia. Só essas tiradeiras de pau, sem um palmo de corrente p’ra reforçar… Tinha de dar no que deu! O que é que eu podia fazer, seu Angenor, de melhor?!

– Ah, pois, decerto, seu João Bala! Até, se alguém me perguntar, vou dizer isto mesmo, p’ra todo-o-mundo… Mas, por falar nisso, olhe aqui, que eu me vou indo, em-desde que não posso ajudar em nada, porque estou levando ali defunto-morto p’ra se enterrar no arraial…

– Virgem!… Quem é o tal, seu Angenor?… Ah, é o pobre do seu Jenuário?!… Pois vá com Deus, companheiro, que por ora eu não preciso mesmo de adjutório, porque mandei o meu guia ir buscar gente no Monjolo, que graça-a-deus não é longe… Até, enquanto isso, eu vou ficar rezando um padre-nosso e umas três ave-marias, por alma do pobre do falecido… A gente deve de se consolar é com uns assim, no pior do que nós, o senhor não acha? Agora, vou ver algum resto daquela cachacinha, só p’ra não deixar desperdiçar. O senhor não quer? Bom, p’ra o fígado e p’ra estômago ruim, não é mesmo muito bom, não. Té outro dia, seu Angenor!…

Agenor Soronho volta para o seu carro, abanando o corpo de sorridente. Foi tapar a traseira.

– Bestagem!… Patranha de violeiro ruim, que põe a culpa na viola. Tião, esperta, que eu quero mostrar p’ra esse João Bala como é que a gente sobe o Morro-do-Sabão!… E vou em pé no cabeçalho, que é só p’ra ele ver como é que carreiro de verdade não conhece medo, não!… Vamos, Brabagato!… Namorado!… Realejo!… Vamos!…

Vai Tiãozinho, vão os bois, vai o carro, que empina para entrar na subida, rangendo a cantoria rezinguenta.

– Va-amos!… – As jugadas avançam, dançando as cangas nos cangotes, e Soronho grita e se mexe, curvando e levantando o busto, com os braços abertos e segurando com as duas mãos a vara, na horizontal: – Olha aí, Tiãozinho, tu que é também um guia brioso, conversa por mim com esses bois!… Vamos bonito, Dançador! Brabagato, boi meu!…

– Ôô-a!…

A subida brava acabou, com fadiga para todos e glória para Agenor Soronho.

– Uf! Pfú… – sopra Brilhante.

– Muh! Muung!… – tuge Brabagato.

– Oon! Oung!… – bufa Buscapé.

E desde que o carro acaba de virar para trás das rodas a dobra do espigão, até alcançar a chapada de terra vermelha, são trezentos e cinquenta metros de silêncio, antes de Dançador voltar a cara, espiando, e de Capitão perguntar:

– Que é que está fazendo o carro?

– O carro vem andando, sempre atrás de nós.

– Onde está o homem-do-pau-comprido?

– O homem- do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta está trepado no chifre do carro…

– E o bezerro-de-homem-que-caminha-sempre-na-frentedos-bois?

– O bezerro-de-homem-que-caminha-adiante vai caminhando devagar… Ele está babando água dos olhos…

Aqui, no tabuleiro, o caminho está ainda pior que ruim, com o facão alto e escorregoso, no meio, separando as regueiras feitas pelas enxurradas e pelas rodeiras de outros carros e carretões. Os bois avançam de sobremão. Calados. Só tilinta o cincerro, quando Brabagato cabeceia. Aí, de coice a guia, por via cruzada, vem outra informação:

– O homem está dormindo, assentado bem na ponta do carro… O pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta também está dormindo… Por isso é que ele parou de picar a gente.

Pela mesma rota – Namorado a Capitão, Brabagato a Dançador, Brilhante a Realejo – viaja a conversa dos bois dianteiros:

– O bezerro-de-homem está andando mais devagar ainda. Ele também está dormindo. Dorme caminhando, como nós sabemos fazer. Daqui a pouco ele vai deixar cair o seu pau-comprido, que nem um pedaço quebrado de canga… Já babou muita água dos olhos… Muita…

Os guardas do cabeçalho devolvem a fala:

– O homem está escorregando do chifre-do-carro!… Vai muito pouco de cada vez, mas nós temos a certeza: o homem está pendendo para fora do chifre-do-carro… Se ele cair, morre…

Outra vez, pelo itinerário alternado, de focinho a focinho, é transmitida a visão da guia:

– O bezerro-de-homem quase cai nos buracos… Ele está mesmo dormindo… Daqui a pouco, ele cai… Se ele cair, morre…

Mesmo meio no sono está Tiãozinho. Mais de meio: tão só uma pequena porção dele vigie, talvez. O resto flutua em lugares estranhos. Em outra parte… E a pequenina porção alerta em Tiãozinho está alegre, muito alegre e leve… Não sente mais raiva… O dia desesquentou, refrescou, mesmo.

– Mmuh… – Boi Canindé sacudiu o perigalho, e engrolou: – Que é o que está dizendo o boi Dançador?

– Que nós, os bois-de-carro, temos de obedecer ao homem, às vezes…

– O homem não sabe.

– O bezerro-de-homem não sabe… O nosso pensamento de bois é grande e quieto… Tem o céu e o canto do carro… O homem caminha por fora. No nosso mato-escuro não há dentro e nem fora…

– É como o dia e a noite… O dia é barulhento, apressado… A noite é enorme…

– O bezerro-de-homem sabe mais, às vezes… Ele vive muito perto de nós, e ainda é bezerro… Tem horas em que ele fica ainda mais perto de nós… Quando está meio dormindo, pensa quase como nós bois… Ele está lá adiante, e de repente vem até aqui… Se encosta em nós, no escuro… No mato-escuro-de-todos-os-bois… Tenho medo de que ele entenda a nossa conversa…

– É como o dia e a noite… A noite é enorme.

– Olha! Escuta!… Escuta, boi Brabagato; escuta, boi Dançador!

– Que foi? Que há, boi Buscapé?

– É o boi Capitão! É o boi Capitão! Que é que está dizendo o boi Capitão?!

– Mhú! Hmoung!… Boi… Bezerro-de-homem… Mas, eu sou o boi Capitão!… Moung!… Não há nenhum boi Capitão… Mas, todos os bois… Não há bezerro-de-homem!… Todos… Tudo… Tudo é enorme… Eu sou enorme!… Sou grande e forte… Mais do quê seu Agenor Soronho!… Posso vingar meu pai… Meu pai era bom. Ele está morto dentro do carro… Seu Agenor Soronho é o diabo grande… Bate em todos os meninos do mundo… Mas eu sou enorme… Hmou! Hung!… Mas, não há Tiãozinho! Sou aquele-que-tem-um-anel-branco-ao-redor-das-ventas!… Não, não, sou o bezerro-de-homem!… Sou maior do que todos os bois e homens juntos.

– Mû-úh… Mû-ûh!… Sim, sou forte… Somos fortes… Não há bois… Tudo… Todos… A noite é enorme… Não há bois-de-carro… Não há mais nenhum boi Namorado…

– Boi Brabagato, boi Brabagato! … Escuta o que os outros bois estão falando. Estão doidos?!…

– Bhúh!… Não me chamem, não sou mais… Não existe boi Brabagato!… Tudo é forte. Grande e forte… Escuro, enorme e brilhante… Escuro-brilhante… Posso mais do que seu Agenor Soronho!…

– Que estão falando, todos? Estão loucos?!… Eu sou o boi Dançador… Boi Dançador… Mas, não há nenhum boi Dançador!… Não há o-que-tem-cabeça-grande-e-murundu-nas-costas… Sou mais forte do que todos… Não há bois, não há homem… Somos fortes… Sou muito forte… Posso bater para todos os lados… Bato no seu Agenor Soronho!… Bato no seu Soronho, de cabresto, de vara de marmelo, de pau… Até tirar sangue… E ainda fico mais forte… Sou Tião… Tiãozinho!… Matei seu Agenor Soronho… Torno a matar!… Está morto esse carreiro do diabo!… Morto matado… Picado… Não pode entrar mais na nossa cafua. Não deixo!… Sou Tiãozinho… Se ele quiser embocar, mato outra vez… Mil vezes!… Se a minha mãe quiser chorar por causa dele, eu também não deixo… Ralho com a minha mãe… Ela só pode chorar é pela morte do meu pai… Tem de cuspir no seu Soronho morto… Tem de ajoelhar e rezar o terço comigo, por alma do meu pai… Quem manda agora na nossa cafua sou eu… Eu, Tiãozinho!… Sou grande, sou dono de muitas terras, com muitos carros de bois, com muitas juntas… Ninguém pode mais nem falar no nome do seu Soronho… Não deixo!… Sou o mais forte de todos… Ninguém pode mandar em mim!… Tiãozão… Tiãozão!… Oung… Hmong… Mûh!…

Tranco… tranco… Bate o carro, em traquetreio e solavanco. Mas, no caminho escabroso, com brocotós e buracos por todos os lados, Tiãozinho não cai nem escorrega, porque não está de-todo adormecido nem de-todo vigilante. Dormir é com o Seu Soronho, escanchado beato, logo atrás do pigarro.

De lá do coice, voz nasal, cavernosa, rosna Realejo. E todos falam.

– Se o carro desse um abalo maior…

– Se nós todos corrêssemos, ao mesmo tempo…

– O homem-do-pau-comprido rolaria para o chão.

– Ele está na beirada…

– Está cai-não-cai, na beiradinha…

– Se o bezerro, lá na frente, de repente gritasse, nós teríamos de correr, sem pensar, de supetão…

– E o homem cairia…

– Daqui a pouco… Daqui a pouco…

– Cairia… Cairia…

– Agora! Agora!

– Mûung! Mûng!

– … rolaria para o chão.

– Namorado, vamos!!!… – Tiãozinho deu um grito e um salto para o lado, e a vara assobiou no ar… E os oito bois das quatro juntas se jogaram para diante, de uma vez… E o carro pulou forte, e craquejou, estrambelhado, com um guincho do cocão.

– Virgem, minha Nossa Senhora!… Ôa, ôa, boi!… Ôa, meu Deus do céu!…

Agenor Soronho tinha o sono sereno, a roda esquerda lhe colhera mesmo o pescoço, e a algazarra não deixou que se ouvisse xingo ou praga – assim não se pôde saber ao certo se o carreiro despertou ou não, antes de desencarnar. Tanto mais que, do cabeçalho ao chão, a distância é pequena; e uma rodeira de carro, bem ferrada, chapeada nas bandejas e com o aro ondulado de gomos metálicos, pesa no mínimo setenta quilos, mormente se, para cantar direito, foi feita de madeira de jacaré ou de peroba-da-miúda, tirada no espigão…

– Mô-oung!… Que é que estão falando os bois de trás?

– Que tudo o que se ajunta espalha…

– Que tudo o que se ajunta espalha.

– Mû-û? … Que é que estão dizendo os bois da guia?

– Nenhum não sabe.

Arrepelando-se todo. Chorando. Como um doido. Tiãozinho. – “Meu Deus! Como é que foi isto?!… Minha Nossa Senhora!…” – Sentado na beira dum buraco. Com os pés dentro do buraco. – “Eu tive a culpa… Mas eu estava meio cochilando… Sonhei… Sonhei e gritei… Nem sei o que foi que me assustou…” – Com os bois olhando. Olhando e esperando. Calmos. Bons. Mansos. Bois de paz. E sem atinar com o que fazer. – “Minha Virgem Santíssima que me perdoe!… Meus boizinhos bonitos que me perdoem!… Coitado do seu Agenor! Quem sabe se ele ainda pode estar vivo?!…” – Fazer promessa. Todos os santos. Rezar depressa. E gente chegando. Os dois cavaleiros. – Sossega, meu filho! Nem um gole d’água, p’ra dar a este menino. Sem água para a goela seca. Ajuda aqui, Nhô Alcides! Goela seca. Tremor. Já é de-tardinha. Desentala o corpo!… Quase degolado, o pobre do carreiro. Não quero ver. Chorando outra vez. – “Coitado do seu Agenor!… Era brabo, mas não era mesmo mau-de-todo, não… Tinha coração bom… Mas, não foi por meu querer… Juro, meu Nosso Senhor!…” – Com jeito, seu Quirino! Credo, Nhô Alcides, já tinha outro defunto aqui dentro!… Meu pai. Não tem culpa. Tristeza. Frio. O sol foi-s’embora. Mas é preciso ajudar. Estou bem, não tive nada. Negócio urgente de Nhô Alcides. Seu Quirino carreia. A cavalo mesmo. Os bois querem caminhar. – “Vamos, Buscapé! Namorado, va-amos!…”

E logo agora, que a irara Risoleta se lembrou de que tem um sério encontro marcado, duas horas e duas léguas para trás, é que o caminho melhorou. Tiãozinho – nunca houve melhor menino candieiro – vai em corridinha, maneiro, porque os bois, com a fresca, aceleram. E talvez dois defuntos deem mais para a viagem, pois até o carro está contente – renhein… nhein… – e abre a goela do chumaço, numa toada triunfal.

– João Guimarães Rosa, no livro “Sagarana”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

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