Em memória de Araceli, cabe-nos a tarefa de reinventar o 18 de maio para
fazer dele um clamor por justiça social, democracia e direitos humanos. E isto
só será possível se as mobilizações e ações pelo Brasil afora tenham um olhar
mais atento aos fatores que geram a violência sexual contra crianças e
adolescentes
Chegamos ao mês de maio em que novamente o dia 18 foi reavivado como Dia
Nacional de Enfrentamento do Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e
Adolescentes. Como nas 18 edições anteriores, neste ano os entes estatais e a
sociedade civil estão a planejar e implementar diferentes medidas
mobilizatórias, educativas e sensibilizadoras para colocar em debate a
violência sexual contra crianças e adolescentes.
Mas estes são tempos de avanço do conversadorismo político (militar e
religioso) no governo federal e no Congresso Nacional (e em diferentes entes em
níveis municipal e estadual), e por certo na gestão dos direitos de crianças e
adolescentes. Na véspera da chegada do mês de maio o presidente Jair Bolsonaro
fez um discurso discriminando o que chamou de “turismo gay” e incentivando “quem
quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher, fique à vontade”, assim forjando
mais um discurso de homem-branco-burguês-heterossexual naturalizando a
exploração sexual contra as mulheres, incluindo crianças e adolescentes.
Conjugado a isto, tem-se a proliferação de discursos de ódio contra sujeitos e
movimentos sociais que representam as identidades subalternizadas,
criminalizadas e exterminadas, incluindo os ataques aos movimentos de mulheres
que historicamente estiveram ligados a defesa dos direitos de crianças e
adolescentes. Logo, é preciso refletir se a própria linha política do 18 de
maio não estaria seguindo a mesma onda conversadora.
Por certo, não podemos localizar esta guinada conversadora nos direitos
de crianças e adolescentes apenas ao momento atual, ou emergindo com a eleição
de Jair Bolsonaro para a presidência da República. A onda conversadora da
aplicação e interpretação destes direitos já existe há bastante tempo, com: (1)
a instrumentalização dos cargos de conselheiros tutelares por organizações
religiosas e partidos políticos – diria que o coronelismo político-religioso
municipal, em muitos locais, começa justamente pelo Conselho Tutelar, e vai se
expandir ainda mais com a mudança normativa que permite reeleições ilimitadas,
via Lei n. 13.824/2019, e com autorização para porte de arma por conselheiros
tutelares, definida no Decreto n. 9.785/2019; (2) os usos cada vez mais
punitivistas das medidas socioeducativas, em que 70% das sentenças judiciais
são para aplicação de medida de internação, segundo levantamento do antigo
Ministério dos Direitos Humanos em 2016, transformando em hegemônica o que
deveria ser a exceção dentre as seis medidas socioeducativas estabelecidas no
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990), com o beneplácito
ideológico de uma ampla parte de promotores de justiça e juízes; (3) o
cerceamento da liberdade da docência nas escolas públicas, com a ameaça de
criminalização a muitos docentes, feitas pelos próprios discentes e
patrocinadas pelos apoiadores da Escola Sem Partido; (4) ainda no campo da
educação escolar, o aumento do número de escolas militarizadas, em que a
educação para a obediência ganha ares de panaceia para os problemas estruturais
da educação pública, isto sem falar nos cortes orçamentários generalizados nas
políticas educacionais; (5) o descompromisso de gestores públicos para com a
manutenção de condições adequadas de operação e orçamento dos Conselhos de
Direitos da Criança e do Adolescente, e, quando muito, a instrumentalização
política para atuarem como órgãos de apoio político à gestão governamental, e
não de controle social dela.
No caso da violência sexual, já há algum tempo advogo que o debate sobre
o tema, quando restrito unicamente à análise e discussão da violência em si,
acaba desconsiderando toda uma série de conteúdos relativos aos direitos
sexuais de crianças e adolescentes que problematiza os aspectos positivos da
promoção da sexualidade infanto-adolescente com responsabilidade, segurança e
autonomia. Sob um discurso de que este tema não pode ser tratado com crianças e
adolescentes, pois seriam ainda muitos novos e “facilmente influenciados”,
escamoteia-se toda uma reprodução adultocêntrica da infância e da adolescência
como seres imaturos e incapazes de ligar com conhecimentos e sentimentos,
enfim, com seus corpos e sexualidades, de modo a colocar um interdito onde
deveriam frutificar espaços de diálogo para a melhor compreensão das relações
de gênero, das sexualidades e dos aspectos protetivos que engendram estas
discussões.
O que passa no campo dos direitos de crianças e adolescentes, com o
avanço do conservadorismo político (religioso e militar), é cada vez mais o
tratamento individualizante, de viés moralista, dos casos atendidos pela rede
de proteção e o crescimento dos usos punitivista, discriminatório e tutelar dos
“novos direitos” surgidos com a Constituição Federal de 1988.
Por tratamento individualizante concebo o modo como se trabalha as
condições de garantia ou violação dos direitos de crianças e adolescentes
desconectado dos fatores sociais, econômicos e culturais da sociedade,
sobretudo sem problematizar os efeitos cada vez mais deletérios da desigualdade
socioeconômica (ante ao avanço do capitalismo neoliberal, proporcional à
redução do Estado no atendimento de políticas sociais, consequência previsível
desde a implantação da Emenda Constituição n. 95/2016) e da associação deste
primeiro elemento com o patriarcado, a LGBTIfobia, o racismo, a intolerância
religiosa, o adultocentrismo, entre outras opressões sociais.
O isolamento do atendimento de determinada violência à análise restrita
da relação agressor-vítima ou criança-família, tende a promover medidas de
responsabilização penal-civil aos agressores (quando não a impunidade por seus
atos violentos, assim como a ineficácia de ressocialização na
internação/prisão) e de correções morais às famílias, muitas vezes travestidos
em discursos de fortalecimento dos vínculos familiar. Porém, muito pouco sobre
a problematização de como precisamos transformar nosso modo de viver em
sociedade para que não fiquemos só atenuando os efeitos (a violência ou a
vulnerabilidade) de questões sociais com causas mais complexas.
E isso se liga aos usos cada vez mais correntes dos “novos direitos” das
crianças e dos adolescentes pelo triplo viés: punitivista, tendo por sujeitos
preferenciais os/as adolescentes negros/as, e com o boom de aplicação após a
implantação da normativa de (des)criminalização do consumo e tráfico de drogas;
discriminatório, sobretudo às diversidades étnicas, raciais, sexuais e de
gênero do “ser criança e adolescente”, em que opera a lógica universalista ou
ideal de se hierarquizar as infâncias e adolescências, associado ao
paternalismo adultocêntrico e patriarcal que ora as colocam numa redoma de
proibição à aprendizagem de conhecimentos fundamentais para suas vidas, ora
forjam o imaginário que justifica as violências, sobretudo as sexuais, que seus
pais, familiares e outros agentes sociais realizam contra seus corpos
infanto-adolescentes, mas também corpos marcados por relações desiguais de
gênero, sexualidade, raça/etnia e classe social; e tutelar, pautada na
desconsideração à opinião, participação e mobilização social de crianças e
adolescentes, cada vez mais atuando um discurso criminalizador das ações
sociais promovidas por grupos organizados de crianças e adolescentes, vistas
pelos adultos como riscos à ordem pública e passíveis de repressão policial e
judicial.
Por tudo isso, nossa tarefa neste 18 de maio de 2019 torna-se ainda mais
desafiante para repensar e reinventar os sentidos sociais e organizacionais
desta data, de modo a faze-la um marco simbólico para a mobilização em prol do
avanço dos direitos (sexuais) de crianças e adolescentes, e não a reprodução do
conservadorismo político e moral. Para tanto, é preciso olhar para o futuro com
a vívida memória do passado e da razão de existência desta data. É necessário,
portanto, lembrar de Araceli, a menina de 8 anos que no dia 18 de maio de 1973,
na cidade de Serras, no Espírito Santo, foi vítima de rapto e posteriormente
sofreu uma série de atrocidades contra seu corpo, sexualidade, identidade e,
finalmente, vida; um caso que até hoje não responsabilizou os culpados, ainda
que três homens tenham sido inicialmente responsabilizados (num processo
judicial que demorou quatro anos para ter a sentença), todos membros de
famílias de grande poder econômico e político, e que posteriormente foram
absolvidos pelo Tribunal de Justiça.
Com isso, nos lembramos que o 18 de maio é uma data para marcar a
revolta contra as violências que mutilam corpos, desfiguram rostos e dilaceram
projetos de vida. Mas tais violências não são autoexplicativas, elas foram
geradas numa sociedade que coisifica os corpos de crianças e adolescentes em
associação aos seus marcadores de gênero, de sexualidade e raça, para faze-los
objetos de desejos sexuais alimentados por construções de masculinidade que
normalizam a dor e o sofrimento da mulher, por um adultocentrismo que silencia
a voz dos mais novos e por uma desigualdade social que torna o poder
político-econômico de determinadas famílias um salvo conduto para a impunidade,
a coação e a corrupção – numa corrupção moral que banaliza a vida e os direitos
para manter a ordem socialmente favorável aos que se beneficiam econômica,
política e sexualmente de crianças e adolescentes.
A memória de Araceli precisa ser canalizada para nos indignar contra os
que comentem violências sexuais contra crianças e adolescentes, mas também
contra os que permitem a reprodução do adultocentrismo, do patriarcado, do
racismo, das desigualdades sociais e das impunidades, sobretudo quando
instituídos em funções de Estado, a exemplo do atual presidente da República.
Só que é preciso ir mais além disso, nos colocarmos em ação para discutir
medidas viáveis para materializar os direitos sexuais de crianças e
adolescentes respeitando a laicidade do Estado e a prioridade absoluta da
proteção integral destes direitos.
Em memória de Araceli, cabe-nos a tarefa de reinventar o 18 de maio para
fazer dele um clamor por justiça social, democracia e direitos humanos. E isto
só será possível se as mobilizações e ações pelo Brasil afora tenham um olhar
mais atento aos fatores que geram a violência sexual – e que permitem sua
manutenção e impunidade – e à concepção mais ampla dos direitos sexuais e dos
direitos de crianças e adolescentes, compreendendo-os no contexto de nossa
sociedade marcada pela presença histórica de múltiplas opressões sociais que se
concentram nos corpos infanto-adolescentes.
Por Araceli, é tempo de fazermos integrar nesta luta também o
enfrentamento à estas opressões sociais, em articulação com uma diversidade de
movimentos e organizações sociais, incluindo ativamente os organizados por
crianças e adolescentes, e de pressionar para que o Estado assuma suas
responsabilidades com a criação e/ou melhoria de políticas públicas e de
orçamentos adequados para custeio, assim como repense as formas de promover os
direitos antes de tratar (ou fomentar) as violências.
Assis
da Costa Oliveira
Assis da Costa Oliveira é Professor da
Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará (UFPA), Campus de
Altamira. Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
de Brasília. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA. Graduado
em Direito pela UFPA. Coordenador do Grupo de Trabalho Direitos, Infâncias e
Juventudes do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais. Advogado.
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