Para ser grande, sê inteiro: nada
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
14-2-1933
– Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz
de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 148. (1ª publ. in Presença ,
nº 37. Coimbra: Fev. 1933)
Ricardo Reis —
vida dele
O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de
1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma
discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte
moderna. Segundo o meu processo de sentir as coisas sem as sentir, fui-me
deixando ir na onda dessa reação momentânea. Quando reparei em que estava
pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia
desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo
princípios que não adopto nem aceito. Ocorreu-me a ideia de a tornar um
neoclassicismo “científico” […] reagir contra duas correntes — tanto contra o
romantismo moderno, como contra o neoclassicismo à Maurras. […]
– 1914?
Páginas Íntimas e de Autointerpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos
e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática,
1996, p. 385.
Ricardo Reis
Quando há alguma coisa de belo a dizer em vida, esculpe-se; quando há
alguma coisa de belo a dizer em alma, faz-se versos. A prosa é para a
correspondência – quer a correspondência particular, quer a correspondência
geral, chamada literatura. A poesia não é literatura: é Arte.
s.d.
–
Pessoa por Conhecer – Textos para um Novo Mapa. Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa,
1990, p. 410.
Leia poemas e odes de Ricardo Reis (Fernando Pessoa)
Uns, com os
olhos postos no passado
Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.
Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
28-8-1933
Odes
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 154.
§
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre
Cada um cumpre o destino que
lhe cumpre.
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos
canteiros
O Fado nos dispõe, e ali
ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor
conhecimento
Do que nos coube que de que
nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.
29-7-1923
Odes
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 171.
§
Cada coisa a seu
tempo tem seu tempo
Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.
30-7-1914
Odes
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 38.
§
Não só vinho, mas nele o olvido, deito
Não só vinho, mas nele o
olvido, deito
Na taça: serei ledo, porque a
dita
É ignara. Quem, lembrando
Ou prevendo, sorrira?
Dos brutos, não a vida, senão
a alma,
Consigamos, pensando;
recolhidos
No impalpável destino
Que não espera nem lembra.
Com mão mortal elevo à mortal
boca
Em frágil taça o passageiro
vinho,
Baços os olhos feitos
Para deixar de ver.
13-6-1926
Odes
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 100. (1ª publ. in Presença , nº
6. Coimbra: Jul. 1927).
§
Breve o dia,
breve o ano, breve tudo
Breve o dia, breve o ano, breve tudo.
Não tarda nada sermos.
Isto, pensando, me de a mente absorve
Todos mais pensamentos.
O mesmo breve ser da mágoa pesa-me,
Que, inda que magoa, é vida.
27-9-1931
Odes
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 134.
§
Enquanto eu vir o sol luzir nas folhas
Enquanto eu vir o sol luzir
nas folhas
E sentir toda a brisa nos
cabelos
Não quererei mais nada.
Que me pode o Destino conceder
Melhor que o lapso sensual da
vida
Entre ignorâncias destas?
Sábio deveras o que não
procura,
Que, procurando, achara o
abismo em tudo
E a dúvida em si mesmo.
Pomos a dúvida onde há rosas.
Damos
Quase tudo do sentido a
entendê-lo
E ignoramos, pensantes.
Estranha a nós a natureza
extensa
Campos ondula, flores abre,
frutos
Cora, e a morte chega.
Terei razão, se a alguém razão
é dada,
Quando me a morte conturbar a
mente
E já não veja mais
Que à razão de saber porque
vivemos
Nós nem a achamos nem achar se
deve,
Impropícia e profunda.
16-6-1927
Poemas
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.)
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994. – 119.
§
Estás só. Ninguém o sabe. Cala e finge
Estás só. Ninguém o sabe. Cala
e finge.
Mas finge sem fingimento.
Nada esperes que em ti já não
exista,
Cada um consigo é triste.
Tens sol se há sol, ramos se
ramos buscas,
Sorte se a sorte é dada.
6-4-1933
Odes
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 152.
§
Nada fica de
nada. Nada somos [1]
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da húmida terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, porque não elas?
Somos contos contando contos, nada.
28-9-1932
Poemas
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.)
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, p. 168.
§
O mar jaz. Gemem em segredo os ventos [2]
O mar jaz. Gemem em segredo os
ventos
Em Éolo cativos,
Apenas com as pontas do
tridente
Franze as águas Neptuno,
E a praia é alva e cheia de
pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Eu quisera, Neera, que o
momento,
Que ora vemos, tivesse
O sentido preciso de uma frase
Visível nalgum livro.
Assim verias que certeza a
minha
Quando sem te olhar digo
Que as cousas são o diálogo
que os deuses
Brincam tendo conosco.
Se esta breve ciência te
coubesse,
Nunca mais julgarias
Ou solene ou ligeira a clara
vida,
Mas nem leve nem grave,
Nem falsa ou certa, mas assim,
divina
E plácida, e mais nada.
6-10-1914
Odes
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 186.
§
Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo
Sábio é o que se contenta com
o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.
Coroem-no pâmpanos. ou heras.
ou rosas volúveis,
Ele sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta a flor como a ele
De Átropos a tesoura.
Mas ele sabe fazer que a cor
do vinho esconda isto,
Que o seu sabor orgíaco
Apague o gosto ás horas,
Como a uma voz chorando
O passar das bacantes.
E ele espera, contente quase e
bebedor tranquilo,
E apenas desejando
Num desejo mal tido
Que a abominável onda
O não molhe tão cedo.
19-6-1914
Odes
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994), p. 32.
§
Tornar-te-ás só
quem tu sempre foste
Tornar-te-ás só quem tu sempre foste.
O que te os deuses dão, dão no começo.
De uma só vez o Fado
Te dá o fado, que és um.
A pouco chega pois o esforço posto
Na medida da tua força nata —
A pouco, se não foste
Para mais concebido.
Contenta-te com seres quem não podes
Deixar de ser. Ainda te fica o vasto
Céu p’ra cobrir-te, e a terra,
Verde ou seca a seu tempo.
12-5-1921
Poemas
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.)
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, p. 91. (1ª publ. in Poesias
Inéditas de Fernando Pessoa. (1919-1930). Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1956)
§
Vive sem horas. Quanto mede pesa
Vive sem horas. Quanto mede
pesa,
E quanto pensas mede.
Num fluido incerto nexo, como
o rio
Cujas ondas são ele,
Assim teus dias vê, e se te
vires
Passar, como a outrem, cala.
8-9-1932
Odes
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de
Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp. 1994), p. 146.
§
Amo o que vejo
porque deixarei
Amo o que vejo porque deixarei
Qualquer dia de o ver.
Amo-o também porque é.
No plácido intervalo em que me sinto,
Do amar, mais que ser,
Amo o haver tudo e a mim.
Melhor me não dariam, se voltassem,
Os primitivos deuses,
Que também, nada sabem.
11-10-1934
Poemas
de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, p. 181.
Fonte:
Revista Prosa Verso e Arte
Nenhum comentário:
Postar um comentário