Por:
Erick Moraes
Permanecer ou sair da caverna?
Uma questão que atravessa a história desde que os homens se compreendem como
homens. É melhor desfrutar de uma realidade fantasiosa, mas confortável ou
vivenciar a verdade com toda a sua dureza? Viver como sujeito consciente tem um
alto preço psicológico. No próprio mito da caverna, percebemos que os homens
tendem a preferir se contentar com as sombras, do que conhecer o lado de fora,
afinal, por mais falsas que as sombras sejam, elas estão sob a proteção
constante das rochas da caverna. Isso significa que, ao decidir sair, não há
mais volta, pois as rochas que o olhar de servo entende como de proteção — para
os que despertam — representam aprisionamento.
O desconhecido magnetiza pelo
medo. Dessa forma, na maior parte das vezes, preferimos permanecer onde
estamos, por mais adversa que a situação seja, uma vez que o velho goza do
benefício do conhecimento e da permanência, o que o torna menos temido do que o
novo, o qual ainda não se conhece e não se sabe o que cobrará de nós. Dito de
outro modo, ainda que a situação que vivenciamos seja adversa, tendemos ao
comodismo pelo medo do que ainda não se conhece e, portanto, pode ser pior do
que o que já se vivencia.
Esse comodismo ou
complacência, entretanto, não se restringe ao medo do desconhecido, mas também
a própria falta de vontade em esforçar-se para que a condição seja modificada,
o que, consequentemente, faz com que os elementos e institutos aplicados com a
finalidade de manutenção do status quo sejam bem-sucedidos. Não à toa vivemos
na era da servidão voluntária.
No entanto, se vivemos em um
mundo “fantasioso”, não é possível que a alcunha de “era da servidão
voluntária” possa ser exposta de maneira clarividente. É necessário que ela
seja transformada, melhor: ressignificada – para usar um termo de Baudrillard,
filósofo que tão bem falou sobre a nossa Matrix – e, assim, a servidão
voluntária se transforma em admirável mundo novo, lugar em que a técnica, com
todo o seu esplendor, consegue suprir todas as necessidades humanas.
Evidentemente, as revoluções
técnicas que aconteceram, grosso modo nos últimos duzentos anos, trouxeram
importantes conquistas, descobertas e aperfeiçoamentos que tornaram a nossa
vida melhor em vários aspectos. Contudo, a história nos mostra que entre a real
capacidade dessas revoluções e o que delas se extrai (e como se extrai) há um
grande abismo. Sendo assim, a nossa realidade se aproxima muito mais das
grandes distopias do século XX do que de um éden 3D.
Embora essa realidade esteja
mais do que clara, o que se observa, ao contrário do seu questionamento, é o
fortalecimento da mesma. Nesse sentido, o avanço técnico é fundamental, já que
quanto mais os sistemas de controle se desenvolvem, maior é a capacidade de
“gerir” a vida dos subordinados. À vista disso, é interessante perceber que o
indivíduo administrado se acha bem atendido nas suas necessidades, o que hoje,
resume-se em grande parte, ou na totalidade, em consumir.
Com um sistema posto para que
os indivíduos se sintam “confortáveis” ou, no mínimo, em uma potencial condição
de satisfazer as suas “necessidades” e, por conseguinte, sentir-se
“confortáveis” e “bem-atendidos”, uma vez que o consumo (pedra angular da
satisfação e do controle) está sempre ao alcance das mãos (aliás, nem é preciso
sair do lugar para entrar na roda de felicidade do consumo); torna-se
extremamente fácil manter a sociedade em ordem.
E como estamos falando de uma
sociedade de controle, não é preciso dizer que existe dura repressão para todos
os que fogem à ordem posta, os quais são vistos como “inadequados” ou como
prefere Huxley em sua obra – “selvagens”. Todavia, como todo bom sistema que
evolui, a repressão não ocorre de modo explícito ou através de chicotes, e sim,
de maneira “invisível”, a partir da “liberdade” que gozamos, posto que a
repressão mais perfeita é aquela que não precisa acontecer, pois é introjetada
pelo próprio indivíduo em si mesmo.
Diante de tantas condições
favoráveis à escravidão e dissociadas, portanto, da liberdade, torna-se fácil
compreender o porquê da maior parte de nós preferir continuar na caverna e
tomar o ilusório como real. Da mesma maneira que se compreende o motivo de
sermos agentes repressivos contra os que fogem do sistema, sejam os outros,
sejam nós mesmos. O que implica dizer que glorificamos a mentira e tomamos por
impostores os que se dedicam à verdade, afinal, como disse Orwell: “Quanto mais
a sociedade se distancia da verdade, mais ela odeia aqueles que a revelam”.
Posto isso, há de se
considerar que ao aceitar o modo como a sociedade se organiza e todos os seus
ditames, automaticamente decidimos permanecer na caverna e contribuir para a
manutenção de um sistema de organização social que por trás de alegria, gozo e
satisfação, esconde exploração, desigualdade e ignorância. Apesar de não haver
condições próprias para que haja um despertar do indivíduo da sua situação de
ignorância, como já exposto, é imperioso que se entenda que o modo hierárquico
da sociedade não se modificará de cima para baixo, de tal forma que é
necessário a cada indivíduo, dentro das suas oportunidades, tentar buscar
pontos de luz que o ajudem a encontrar a saída da sua ignorância e, por
conseguinte, da sua condição escrava.
Se o desconhecido magnetiza
pelo medo, é apenas o conhecimento e a liberdade que nos permitem enfrentá-lo,
sabendo que todo aquele que desperta sempre apontará para as correntes daqueles
que permanecem presos. Todavia, também devemos ter em mente que muitos, por
mais oportunidades que recebam, irão preferir permanecer na sua ignorância, na
caverna, na Matrix ou qualquer palavra que representa o antônimo da liberdade,
pois o estado de espectador é sempre mais cômodo, já que, ainda que no filme
apresentado os exploradores sejam os protagonistas, sempre há pipoca e
refrigerante suficientes para manter os explorados de boca fechada.
Assim sendo, levantar do
cinema, ser um selvagem ou tomar a pílula vermelha, continuam sendo atos de
coragem, espalhados e diminutos, pois como disse Nietzsche: “Por vezes as
pessoas não querem ouvir a verdade, porque não desejam que as suas ilusões
sejam destruídas”. Entretanto, é necessário destruir as nossas belas e
confortáveis ilusões para que possamos ser sujeitos autônomos e livres, porque
é o medo que possuímos da verdade que provoca a força da ignorância e permite o
nosso controle.
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