Por Edival
Lourenço
A literatura não é um fenômeno recente. Antes mesmo das inscrições
rupestres, ela já existia em sua forma oral. É fácil imaginar o Homo sapiens,
ainda na era das cavernas, no fim do dia, ao redor do fogo, narrando suas
façanhas de caçador. Certamente aquele que tivesse a melhor estratégia
narrativa acabava por angariar vantagens competitivas naquela civilização
incipiente. Poderia exercer algum posto de liderança e comando, reivindicar as
melhores glebas de caça, reservar para si as mulheres mais saudáveis e gerar as
proles mais bem-sucedidas. É razoável supor que, pela prevalência do mais apto,
somos descendentes de uma linhagem de trogloditas contadores de histórias. As
linhagens sem aptidões narrativas certamente pereceram ao longo do tempo.
Mas o registro literário desde a escrita rupestre, passando pela escrita
cuneiforme, pelo papiro, pelo pergaminho, pelos incunábulos dos escribas dos
mosteiros medievais, sempre permeou a vida da humanidade. Mas só o suporte de
papel, em um chumaço impresso e encadernado, numa técnica desenvolvida por
Gutenberg, no século 15, vulgarmente conhecido como livro, permitiu a
disseminação massiva dos conteúdos literários.
A propósito, quem milita com Literatura neste mundo de coisas
utilitárias de hoje em dia, às vezes se vê instigado a responder de pronto:
para que serve mesmo a Literatura? A resposta parece óbvia, mas na hora de
responder assim de chofre e de forma objetiva, acaba-se caindo em apuros.
Em primeiro lugar, para se dar uma resposta que convença minimamente,
será preciso admitir que há, ainda hoje, certos fatores que entram na
composição das forças do mundo que são, digamos, sutis. Como a força do Papa,
que não tem nenhuma divisão de brigada, mas conseguiu interferir em muitas
guerras e questões relevantes ao longo da História. Inclusive agora,
recentemente, com o papa Francisco protagonizando sutilmente o reatamento
diplomático entre os Estados Unidos e Cuba, que viviam um embargo por mais de
cinco décadas. São forças não passíveis de avaliação imediatamente em números,
peso, medida ou valor monetário. São coisas que não entram no cálculo do PIB,
nem no superávit primário, mas são primordiais. Como o ar que respiramos, que
ninguém calcula o seu preço, mas sem ele não existiríamos para dar preço às
outras coisas. Com uma diferença significativa: o ar é natural; a Literatura é
invenção humana, no desenrolar de sua cultura. Seja como for, valendo-me
inclusive de um ensaio de Umberto Eco, aí vão alguns exemplos de utilidade da
Literatura que consegui elencar:
1º — A Literatura
contribui para a formação, estabilização e desenvolvimento de uma língua, como
patrimônio coletivo. O que seria da língua portuguesa sem Luís de Camões? O que
seria do italiano sem Dante Alighieri? O que seria do espanhol sem Cervantes? O
que seria do inglês sem Shakespeare? O que seria da civilização e da língua
grega sem Homero? O que seria da língua russa sem Púchkin? É bom lembrar que
impérios que não tiveram uma Literatura que sobressaísse entraram em decadência
sem alcançar o apogeu, como o vasto império mongol de Genghis Khan, o maior em
extensão territorial da história.
2º — A Literatura
mantém o exercício, o arejamento, o frescor da língua, que é o principal fator
de criação de identidade, de noção de comunidade, do sentimento de pátria e
pertencimento a uma placenta cultural que nos acolhe e nos dá sentido à vida
tanto individual quanto coletivamente.
3º — A Literatura
proporciona o aprendizado, de uma forma lúdica e segura, ao mesmo tempo em que
permite o acesso das novas gerações aos valores acumulados pelo processo
civilizatório e universalmente aceitos como válidos, como a honestidade, o
respeito ao próximo, a importância da cultura, enfim a transmissão de valores
morais, bons ou ruins e o senso crítico de escolha dentre eles ou até de
rejeitá-los por inteiro.
4º — A Literatura
expande a rede neural do leitor, possibilitando a diversidade das ideias, a
capacidade de reflexão, a noção de flexibilidade e a tolerância para com o
diferente, proporciona a empatia (capacidade de se colocar no lugar do outro —
pré-condição para a existência da ética na sociedade), prevenindo as pessoas
contra o sectarismo político, o fanatismo, a submissão cega a líderes
maliciosos, a ideologias e a religiões.
5º — A Literatura enseja
o surgimento e a disseminação de valores estéticos, aguça a sensibilidade,
introduzindo na vida das pessoas o verdadeiro sentido do belo, distinguindo-nos
da fauna geral, onde gosto não se discute.
6º — A confabulação da
literatura nem sempre segue o caminho retilíneo desejado pelo leitor,
possibilitando a ele entrar em contado com a frustração ficcional, como
exercício de amadurecimento para o enfrentamento das frustrações reais impostas
pela vida de fato, às quais é bom que resista e supere.
7º — A Literatura, como
toda arte, estimula o cruzamento de informações, possibilita a sinergia do
pensamento, amplia a visão da realidade e até cria realidade nova.
8º — A Literatura faz a
aproximação entre a ciência e a vida. No dizer de Roland Barthes: “A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é
para corrigir essa distância que a literatura nos importa”.
9° — A Literatura cria
as pré-condições para que os atos e os fatos ganhem dimensão simbólica. E é na
dimensão simbólica das coisas que a vida ganha sentido. Afinal, como diz o
axioma histórico: “Os atos e os fatos não existem por si, mas nascem do sentido
que lhes é atribuído”.
10° — Pelo que foi
listado, a Literatura não é uma panaceia — remédio para todos os males —, mas a
base, a plataforma de lançamento de cidadãos melhores, numa sociedade portadora
de um clima onde pessoas de boa vontade possam ver implantados seus ideais de
paz, respeito, leveza, cordialidade, lisura, honestidade, preservação e
desenvolvimento sustentado.
Certamente o leitor verá na Literatura “utilidades” diferentes ou mesmo
complementares a estas aqui apresentadas.
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