Em 1893, quando se dava na baía da nossa cidade a revolta
Saldanha-Custódio, meu pai exercia um pequeno emprego de almoxarife das
Colônias de Alienados, na ilha do Governador. Um belo dia, os revoltosos,
capitaneados por um oficial de Marinha, de cuja patente no tempo não me lembro,
o Senhor Eliézer Tavares, que morreu almirante, tendo por segundo um
cirurgião-dentista, o Senhor Nogueira da Gama, lá desembarcaram, mataram bois,
carregaram gêneros, medicamentos e roupas e se foram em paz. Assisti tudo.
Na manhã seguinte, de falua, com alguns móveis e outros pertences
domésticos, transportávamos nós, isto é, a minha gente, para a ponta do Caju,
tomando caminho pelos canais pouco profundos que ficam entre os mangues e
praias de Inhaúna e as ilhas do Fundão (aí o canal é fundo), Caqueirada, Bom
Jesus e outras, cujos nomes me escapam. Emigrávamos.
Ficou estabelecido, entre as altas autoridades, que meu pai ficasse no
Engenho da Pedra, litoral da Penha, com o depósito de gêneros necessários ao
alimento de duzentos doentes que estavam na ilha, e ali fosse morar, para
guardá-los e enviá-los em rações diárias para os dementados em abandono.
Assim fez ele.
Todas as manhãs, eu e meu pai saíamos, ele, a fim de providenciar para o
envio diário de gêneros, e eu, menino de doze anos, para acompanhá-lo até onde
Deus fosse servido mandar-nos.
Embarcávamos os gêneros no lugar denominado Engenho da Pedra, fronteiro
a uma das colônias, Conde de Mesquita, tendo de permeio, no canal, a ilha do
Fundão, coberta de grandes e frondosas árvores. Aquelas manhãs primaveris eram
lindas e plácidas. Tudo muito azul; as árvores muito verdes e roçagantes; as
águas do mar, espessas de azul da prússia; os longes dos Órgãos solenes,
soberbos e altos; tristonho, o ilhéu do Cambambe, com as ruínas de um sobrado
que parecia ter sido incendiado, à vista dos vestígios de fumaça nas paredes,
nuas e eretas; risonha, a ilha do Raimundo, com o seu bananal verde-claro a
mirar as águas mansas do mar pela manhã; e a de Saravatá, lá longe, com o seu
paiol abandonado — todo este quadro imarcescível me ficou gravado na memória
até hoje, indelevelmente, como se fosse impresso à máquina.
Nós morávamos numa casinha de telha-vã, muito poeticamente situada a
meia encosta de uma colina, cavalgando a estrada que levava ao porto de
embarque. Na frente, a vista era curta, pois do outro lado da via pública, no
alto de um monte que se erguia rapidamente, havia ruínas de uma capela,
barrando, morrote e ruínas, o horizonte fronteiro da nossa casinha.
Aos lados, porém, a vista era vadia e larga, apesar de, à esquerda,
existir construções meio acabadas de uma fábrica de vidros que não chegou a
funcionar.
Todas as manhãs íamos, eu e meu pai, até o “porto”, ver o embarque de
gêneros para a ilha.
Havia aí um destacamento de polícia, comandado por um alferes ou
tenente. Lembro-me ainda de alguns fatos que lá assisti.
Uma manhã, quando estávamos à beira da praia, conversando meu pai com o
comandante do destacamento, apareceu entre as Freixeiras, ilha do Governador e
a ilha de Saravatá, uma lancha revoltosa. Logo se viu que ela disparava o seu
canhão-revólver contra nós. Abrigamo-nos; os soldados apanharam as carabinas e
entrincheiraram-se no casebre que lhes servia de quartel.
Fosse porque fosse, após dois ou três disparos, a pequena embarcação
armada voltou para donde viera, e o sossego tornou de novo ao local em que
estávamos.
No eirado, assim que o perigo cessou, o comandante disse para o meu pai:
– Olha, Barreto: se “eles” desembarcassem, eu fazia assim...
E mostrou como viraria a blusa pelo avesso.
Esse caso, porém, não é o que nos interessa agora. É outro. Uma dessas
manhãs, antes ou depois do aparecimento da lancha na ilha de Saravatá — não me
lembro bem — um soldado ou cabo chamou meu pai de parte e pôs-se a conversar
com ele.
Fiquei afastado, olhando o mar encrespado pelo terral, as gaivotas e as
belas mangueiras do Galeão, lá no outro lado, que tinham visto Dom João VI e
recebido, por várias vezes, a sagrada visita do raio, na sua secular
existência.
Acabada a conversa, veio meu pai para mim. Nada me disse logo; mais
tarde, porém, confidenciou-me:
— Você sabe o que aquele soldado queria?
— Não, papai.
— Queria que eu lhe dissesse por que esses dois homens estão brigando.
Esses dois homens eram Floriano e Custódio.
Esse pequeno fato, que podia passar completamente despercebido, feriu-me
imensamente naquela fraca idade que eu tinha então. Nunca podia imaginar que um
homem arriscasse sua vida sem saber por que, nem para quê. Pareceu-me isto
estúpido e indigno mesmo da condição de homem. Um ato desses, de jogar a
própria existência, devia ser perfeitamente refletido e consciente. Ficou-me o
fato; e, anos depois, muitos anos mesmo, quando fui ler o formidável Guerra e
paz, de Tolstoi, encontrei uma cena, não idêntica, mas do mesmo fundo. Não me
recordo bem como é; mas dela se depreende que o soldado nada sabe dos motivos
por que combate.
E assim é feita a guerra.
As massas de combatentes, homens simples e sem luzes, em geral, não
sabem nitidamente por que dão tiros uns contra os outros.
Às vezes, os seus chefes e diretores conseguem instilar no espírito
deles vagos motivos patrióticos; mas, na última guerra, tal coisa não pode ser
concebida como movendo árabes, gurcos, senegaleses, curdos etc., a se matarem e
a matar.
Esta última guerra foi uma mistificação de parte a parte. Vimos, agora,
depois que veio à tona o “negócio dos navios”, como e por que nós entramos na
guerra; como estávamos ameaçados de morrer aos milhares no norte da França,
unicamente para que alguns especuladores ganhassem, em suma, um, dois ou mais
milheiros de contos. Eis aí a guerra, na sua essência.
O que, porém, faz ressaltar, de um modo cortante, o feitio de
inconsciência com que a massa dos combatentes é levada para os campos de
batalha, é este trecho das burocráticas memórias do teimoso Ludendorff, que o
Correio da Manhã publicou, em 18 do corrente.
Ei-lo:
Atravessando as montanhas, eu abordei uma sentinela.
Respondeu-me, em não sei que língua estranha, umas
coisas que não compreendi. Os oficiais austro-húngaros
que me acompanhavam também não compreenderam.
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É eloquente o patriotismo desse pobre-diabo de sentinela, que não
compreende os seus oficiais e os seus oficiais não o compreendem! Perdido entre
as montanhas, sofrendo frio e outras privações, com risco de morte, ele tudo
isto sofre, a tudo se arrisca, certamente sem saber por que, e nem ao menos
entende a língua dos seus chefes!
É incrível!
As causas da luta lhe devem ser perfeitamente estranhas, pois nem no
mínimo pode compreender as exortações dos interessados nela; ele não tem nenhum
interesse próximo ou remoto na contenda; mas ele vai morrer!...
É estranho, meu Deus! Não parece ser um homem; parece um boi de canga...
Afonso
Henriques de Lima Barreto (Rio de Janeiro, RJ, 1881-1922) - romancista,
contista, cronista e jornalista. Circulou no Rio de Janeiro de 1915 até meados
de 1934. A Revista A.B.C. circulou no Rio de Janeiro de 1915 até meados de
1934.
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