Pesquisar este blog

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Crônica: Meu ideal seria escrever...


Julho, 1957 – Rubem Braga. Melhores crônicas. São Paulo: Global, 2013, pp. 197-198. Coleção Melhores Crônicas.


Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse – “ai meu Deus, que história mais engraçada!”. E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse, rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria “mas essa história é mesmo muito engraçada!”.

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse – e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas pobres mulheres colhidas na  calçada e lhes dissesse – “por favor, se comportem, que diabo! eu não gosto de prender ninguém!”. E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago – mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: “Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina”.

E quando todos me perguntassem – “mas de onde é que você tirou essa história?” – eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história...”.

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

Sobre o autor:
Rubem Braga [Cachoeiro do Itapemirim (ES), 1913 – Rio de Janeiro (RJ), 1990]. Cronista, poeta e jornalista. Em 1929, escreveu suas primeiras crônicas para o jornal Correio do Sul, de Cachoeiro do Itapemirim. Ingressou na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, mas finalizou a graduação na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, em 1932. Ainda estudante, iniciou no jornal Diário da Tarde a sua carreira como jornalista. Considerado um dos maiores escritores brasileiros, produziu cerca de 15.000 crônicas, publicadas em diversos jornais e revistas. Para entender em sua obra o apego à linguagem simples e ao lirismo das coisas do cotidiano e da vida, o próprio autor afirmava que um dos versos mais bonitos de Camões ”A grande dor das coisas que passaram” fora escrito apenas com palavras corriqueiras do idioma.

Nenhum comentário:

Postar um comentário