Cropsey, Hudson River, dec 1890
Quando depois de incontáveis invernos, buscas
infrutíferas, corredores mal cheirosos, intermináveis filas e volteamanhãs,
afinal descobriu o local onde lhe haviam sepultado o corpo, começou a segunda
parte de sua viúva agonia.
Foram necessárias muitas outras horas de inferno.
Muitos papéis, carimbos e novos volteamanhãs. Mas finalmente conseguiu que as
autoridades liberassem os restos do marido morto nas guerrilhas urbanas.
Fez que não ouviu a frase estúpida de um funcionário estúpido
sobre o porque de tanto trabalho por um montinho de carne putrefata de alguém
que dedicara a vida a uma causa ainda mais podre.
Era seu marido. Ela o amava. Rezara por ele nos
imensos períodos em que desaparecia, sabe Deus pra onde, para voltar, por fim,
sujo, cansado, os olhos animais, um cheiro de ódio nas mãos prematuramente
envelhecidas.
Um dia não voltara.
Os jornais anunciaram o fim da subversão. A vitória
sobre os agitadores.
E então começara sua agonia primeira.
Buscou-o entre os prisioneiros, nos corredores do
terror. Nos esconderijos invisíveis. Nas listas de desaparecidos.
Buscou-o por entre os mendigos que se estendiam nas
calçadas. Por entre os bêbados de todos os bares noturnos. Trazendo sempre, bem
dentro, aquela certeza de que ele já não estava em lugar algum que pudesse
alcançar.
Disseram-lhe certa vez que, em tentativa de fuga, ele
se atirara a um riacho e jamais lhe encontraram o corpo.
Nas noites insones, ela o revia, tal como costumava
ser em seus breves regressos. Vinha rude, envelhecido, embrutecido. Mas de sua
boca saiam as mais ternas palavras. Transpirava amor por todos os poros,
confiava em sua luta, acreditava na força do povo e descrevia, para os atentos
ouvidos dela, o hipotético futuro de justiça social, de dignidade e de paz.
Faziam um amor faminto.
Depois ele lhe acariciava a face, olhava para o filho
no berço e partia para dentro da noite.
A presença dele enchia por semanas a casa. Ela
identificava as palavras dele em certas expressões, certos rostos, que
encontrava nas ruas, nos ônibus, na fábrica.
Não descansou até encontrar-lhe o corpo. Fora
sepultado como indigente. Exumado, reconheceu-lhe a aliança. Alguém disse a ela
que era uma sorte ter por marido um marginal tão descuidado a ponto de entrar
em ação com o nome da esposa gravado num pedaço de metal dourado.
Conseguiu sepultá-lo em um cemitério humilde da
periferia. Alguns parentes e amigos—poucos: eram tempos de perigo— a
acompanharam, disseram umas palavras chochas sobre a valentia do companheiro
que perdera a vida para que os homens do futuro tivessem um mundo mais limpo e
se foram, rápido, entre palavras estéreis e cumprimentos gelados.
Ela ficou por ali, ajeitando umas flores meio murchas,
com os olhos secos, pois que todas as lágrimas já chorara.
De repente, sentiu. Um vento morno abraçou-a com os
braços dele e o eco de sua voz guiou-lhe os olhos até o arbusto que descansava,
anônimo e digno, no ângulo formado pelos muros últimos do cemitério. Abandonou,
possuída de um sentimento de urgência, a sepultura.
A partir de então, todas as tardes, fazia — o menino
nos braços — o longo percurso que separava sua casa e seu trabalho daquele arbusto.
Todas as tardes, sentava-se ali para ver o céu despencar em azuis e lilases e
todas as tardes o vento morno a abraçava e as folhas murmuravam-lhe as
palavras, as ideias e os sonhos que ele não tivera tempo de dizer-lhe.
Houve, porém, aquela tarde em que o vento não soprou e
as folhas lhe pareceram secas e toda aquela paisagem cotidiana despiu-se de
encanto e, quando ela fechou os olhos, nenhuma voz ouviu.
O filho, que brincava por ali, puxou-lhe a manga do
casaco. Voltou-se para o menino e este lhe dizia: “Mãe, a gente num precisa vim mais aqui não”. Sorriu. Respondeu,
subitamente alegre: “Eu sei”.
E foi-se embora – para sempre – em direção à noite.
11 de agosto de 1980
Nenhum comentário:
Postar um comentário