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quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Crepúsculo – conto de Isabel Fomm de Vasconcellos


 Cropsey, Hudson River, dec 1890

Quando depois de incontáveis invernos, buscas infrutíferas, corredores mal cheirosos, intermináveis filas e volteamanhãs, afinal descobriu o local onde lhe haviam sepultado o corpo, começou a segunda parte de sua viúva agonia.

Foram necessárias muitas outras horas de inferno. Muitos papéis, carimbos e novos volteamanhãs. Mas finalmente conseguiu que as autoridades liberassem os restos do marido morto nas guerrilhas urbanas.

Fez que não ouviu a frase estúpida de um funcionário estúpido sobre o porque de tanto trabalho por um montinho de carne putrefata de alguém que dedicara a vida a uma causa ainda mais podre.

Era seu marido. Ela o amava. Rezara por ele nos imensos períodos em que desaparecia, sabe Deus pra onde, para voltar, por fim, sujo, cansado, os olhos animais, um cheiro de ódio nas mãos prematuramente envelhecidas.

Um dia não voltara.

Os jornais anunciaram o fim da subversão. A vitória sobre os agitadores.

E então começara sua agonia primeira.

Buscou-o entre os prisioneiros, nos corredores do terror. Nos esconderijos invisíveis. Nas listas de desaparecidos.

Buscou-o por entre os mendigos que se estendiam nas calçadas. Por entre os bêbados de todos os bares noturnos. Trazendo sempre, bem dentro, aquela certeza de que ele já não estava em lugar algum que pudesse alcançar.

Disseram-lhe certa vez que, em tentativa de fuga, ele se atirara a um riacho e jamais lhe encontraram o corpo.

Nas noites insones, ela o revia, tal como costumava ser em seus breves regressos. Vinha rude, envelhecido, embrutecido. Mas de sua boca saiam as mais ternas palavras. Transpirava amor por todos os poros, confiava em sua luta, acreditava na força do povo e descrevia, para os atentos ouvidos dela, o hipotético futuro de justiça social, de dignidade e de paz. Faziam um amor faminto.

Depois ele lhe acariciava a face, olhava para o filho no berço e partia para dentro da noite.

A presença dele enchia por semanas a casa. Ela identificava as palavras dele em certas expressões, certos rostos, que encontrava nas ruas, nos ônibus, na fábrica.

Não descansou até encontrar-lhe o corpo. Fora sepultado como indigente. Exumado, reconheceu-lhe a aliança. Alguém disse a ela que era uma sorte ter por marido um marginal tão descuidado a ponto de entrar em ação com o nome da esposa gravado num pedaço de metal dourado.

Conseguiu sepultá-lo em um cemitério humilde da periferia. Alguns parentes e amigos—poucos: eram tempos de perigo— a acompanharam, disseram umas palavras chochas sobre a valentia do companheiro que perdera a vida para que os homens do futuro tivessem um mundo mais limpo e se foram, rápido, entre palavras estéreis e cumprimentos gelados.

Ela ficou por ali, ajeitando umas flores meio murchas, com os olhos secos, pois que todas as lágrimas já chorara.

De repente, sentiu. Um vento morno abraçou-a com os braços dele e o eco de sua voz guiou-lhe os olhos até o arbusto que descansava, anônimo e digno, no ângulo formado pelos muros últimos do cemitério. Abandonou, possuída de um sentimento de urgência, a sepultura.

A partir de então, todas as tardes, fazia — o menino nos braços — o longo percurso que separava sua casa e seu trabalho daquele arbusto. Todas as tardes, sentava-se ali para ver o céu despencar em azuis e lilases e todas as tardes o vento morno a abraçava e as folhas murmuravam-lhe as palavras, as ideias e os sonhos que ele não tivera tempo de dizer-lhe.

Houve, porém, aquela tarde em que o vento não soprou e as folhas lhe pareceram secas e toda aquela paisagem cotidiana despiu-se de encanto e, quando ela fechou os olhos, nenhuma voz ouviu.

O filho, que brincava por ali, puxou-lhe a manga do casaco. Voltou-se para o menino e este lhe dizia: “Mãe, a gente num precisa vim mais aqui não”. Sorriu. Respondeu, subitamente alegre: “Eu sei”.

E foi-se embora – para sempre – em direção à noite.

11 de agosto de 1980

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