“Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a
escolher entre sentimentos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido
original da palavra “pensar” que significa “curar” ou “tratar” um ferimento.
Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar das doenças pelas
quais padece.”
– Mia
Couto, em interinvenções “Quebrar armadilhas”, do livro “E se Obama fosse
africano?: e outras interinvenções / Ensaios”. Lisboa: Editorial Caminho, 2009.
“Quebrar
armadilhas” intervenção de Mia Couto no
Congresso de Leitura COLE, em Campinas/SP, no ano de 2007. O COLE homenageou
naquele ano o poeta Ferreira Gullar. A conferência foi publicada no livro de
ensaios “E se Obama fosse africano?: e outras interinvenções / Ensaios” (2009).
Quebrar
armadilhas
[…] Eu sou um poeta e sinto-me
feliz pelo facto de a poesia atuar como estrela inspiradora para um encontro
desta natureza. A poesia prova assim não ser apenas um gênero literário, mas um
olhar revelador de mistérios e uma sabedoria resgatadora da nossa profunda
humanidade. A poesia é um modo de ler o mundo e
escrever nele um outro mundo. Buscar iluminação na voz de um poeta já é
um primeiro quebrar de armadilhas.
[…] Compete-nos
desarmadilhar o mundo para que ele seja mais nosso e mais solidário. Todos queremos
um mundo novo, um mundo que tenha tudo de novo e muito pouco de mundo. A isso chamaram de utopia. Sabendo que esta palavra
contém já uma cilada. A palavra “utopia”, que vem do grego, quer dizer o
“não-lugar” (em contraponto com o lugar concreto que é o nosso mundo real). Mas
eu não estaria fazendo poesia se dissesse que, nas condições de hoje, aconteceu
uma curiosa inversão: o chamado mundo real é aquele que se apresenta como um
verdadeiro não-lugar, um lugar vazio onde cabemos apenas como ilusão virtual.
Não sei se poderemos chamar de lugar ao território onde vivemos uma vida que
nunca chega a ser nossa e que, cada vez mais, nos surge como uma vida pouco
viva. […]
Mia
Couto – ‘Quebrar armadilhas’
A leitura é o propósito que aqui nos junta. Nós queremos todos que se
promova a leitura e se valorize o livro. E eu queria falar exatamente da
palavra “ler”. Muitas vezes pensamos a nossa língua como algo que sempre
existiu e que sempre existiu tal como a conhecemos hoje. Mas as palavras
nascem, mudam de rosto, envelhecem e morrem. É importante saber onde nasceu
cada uma delas, conhecer-lhe os parentes e saber do namoro que a fez nascer.
Entender a origem e a história das palavras faz-nos ser mais donos de um idioma
que é nosso e que não apenas dá voz ao pensamento como já é o próprio
pensamento. Ao sermos donos das palavras somos mais
donos da nossa existência.
A palavra “ler” vem do latim legere
e queria dizer “escolher”. Era isso que faziam os antigos romanos quando, por
exemplo, selecionavam entre os grãos de cereais. A raiz etimológica está bem
patente no nosso termo “eleger”. Ora o drama é que hoje estamos deixando de
escolher. Estamos deixando de ler no sentido da raiz da palavra. Cada vez mais
somos escolhidos, cada vez mais somos objeto de apelos que nos convertem em
números, em estatísticas de mercado.
A armadilha do idioma é já um primeiro tropeço no
caminho para chegarmos aos outros e a nós mesmos. Pensamos na nossa língua mas
não pensamos essa mesma língua. Do mesmo modo, deixamos de ler a nossa própria
língua. E porque deixamos de ler somos surpreendidos por ausências e
desfasamentos. Conceitos e categorias que nos parecem inocentes e universais
não se apresentam universalmente do mesmo modo. Eu vivo num país, Moçambique,
em que se costuram várias fronteiras interiores. São fronteiras de culturas,
línguas, etnias, religiões. Esse convívio com a diversidade me obriga a
revisitar palavras e conceitos que me parecem impensadamente globais. E vou
aprendendo coisas curiosas. Por exemplo, vou sabendo de pais que são tios, de
tias que são mães, de primos que são irmãos. Tudo isto porque as relações de
parentesco não podem ser traduzidas com a facilidade de um assunto técnico. E
vou sabendo de leões que, afinal, são pessoas, de crocodilos que são animais de
alguém, de pessoas que, depois da morte, renascem em perdizes, em leopardos, em
morros de muchém.
Livro
contendo todos os continentes do mundo. (aquarela, autora: Алена Марусева) imagem
Shutterstock
As armadilhas de
dentro
A nossa tentação é quase sempre maniqueísta. A visão simples que separa
os “bons” dos “maus” é sempre a mais imediata. Quanto
menos entendemos, mais julgamos.
A cilada maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de
nós, num mundo que temos por cruel e desumano. Ora, por muito que nos custe,
nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem
profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas
do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o
nosso próprio olhar. Precisamos de passar um programa antivírus pelo
nosso hardware mental.
Escolhi falar dessas ratoeiras interiores que nos convertem em nómadas
deambulando entre ecos e sombras.
A armadilha da
realidade
Uma das primeiras armadilhas interiores é aquilo que chamamos de
“realidade”. Falo, é claro, da ideia de realidade que atua como a grande
fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de não
ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam de “razão”, outros de
“bom-senso”. A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado
real para ser verdadeira. Nós não temos sempre que a levar tão a sério.
Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu
escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu:
“Eu desvalorizei as paredes”. Essa lição se converteu num lema da minha
conduta.
Ho Chi Minh ensinou a si próprio a ler para além dos muros da prisão.
Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher
entre sentidos visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da
palavra “pensar” que significava “curar” ou “tratar” um ferimento. Temos de
repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece.
Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade da transcendência,
recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação
de um medicamento chamado inquietação crítica. Significa fazermos com a nossa
vida quotidiana aquilo que fizemos neste congresso que é deixar entrar a luz da
poesia na casa do pensamento.
A armadilha da
identidade
A mais perigosa armadilha é aquela que possui a aparência de uma
ferramenta de emancipação. Uma dessas ciladas é a ideia de que nós, seres
humanos, possuímos uma identidade essencial: somos o que somos porque estamos
geneticamente programados. Ser-se mulher, homem, branco, negro, velho ou
criança, ser-se doente ou infeliz, tudo isso surge como condição inscrita no ADN.
Essas categorias parecem provir apenas da Natureza. A nossa existência
resultaria, assim, apenas de uma leitura de um código de bases e nucleótidos.
Esta biologização da identidade é uma capciosa armadilha. Simone de
Beauvoir disse: a verdadeira natureza humana é não ter natureza nenhuma. Com
isso ela combatia a ideia estereotipada da identidade. Aquilo que somos não é o
simples cumprir de um destino programado nos cromossomas, mas a realização de
um ser que se constrói em trocas com os outros e com a realidade envolvente.
A imensa felicidade que a escrita me deu foi a de poder viajar por entre
categorias existenciais. Na realidade, de pouco vale a leitura se ela não nos
fizer transitar de vidas. De pouco vale escrever ou ler se não nos deixarmos
dissolver por outras identidades e não reacordarmos em outros corpos, outras
vozes.
A questão não é apenas do domínio de técnicas de decifração do alfabeto.
Trata-se, sim, de possuirmos instrumentos para sermos felizes. E o segredo é
estar disponível para que outras lógicas nos habitem, é visitarmos e sermos
visitados por outras sensibilidades. É fácil sermos tolerantes com os que são
diferentes. É um pouco mais difícil sermos solidários com os outros. Difícil é
sermos outros, difícil mesmo é sermos os outros.
A armadilha da
hegemonia da escrita
Uma terceira armadilha é pensar que a sabedoria tem residência exclusiva
no universo da escrita. É olhar a oralidade como um sinal de menoridade. Com
alguma condescendência, é usual pensar a oralidade como património tradicional
que deve ser preservado. O culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o
propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade.
Certa vez, um menino de rua em Maputo veio-me devolver um livro que ele
vira nas mãos de uma estudante à saída da escola. Notando a minha fotografia na
capa, esse menino acreditou que a estudante me tinha roubado o livro.
Me comoveu esse menino que atravessou a cidade para me devolver algo
que, no entender dele, me pertencia. Mas o que ele me entregava era mais do que
um objeto. Ele me entregava a inquietação profunda, a interrogação: a quem
pertence realmente um livro? Ele é nosso porque o adquirimos, sim. O livro deve
ser objeto e mercadoria para chegar às nossas mãos. Mas só somos donos desse
objeto quando ele deixa de ser objeto e deixa de ser mercadoria. O livro só
cumpre o seu destino quando transitamos de leitores para produtores do texto,
quando tomamos posse dele como seus co-autores.
A mais importante linha divisória em Moçambique não é tanto a fronteira
que separa analfabetos e alfabetizados, mas a fronteira entre a lógica da
escrita e a lógica da oralidade. A absoluta maioria dos 20 milhões de
moçambicanos vive e funciona num tipo de racionalidade que tem pouco a ver com
o universo urbano. Mas em Moçambique, como no resto do mundo, a lógica da
escrita instalou-se com absoluta hegemonia. Nesses casos, pressupostos
filosóficos do mundo rural correm o risco de ser excluídos e extintos. Algumas
das ideias que venho defendendo nesta comunicação estão claramente presentes na
epistemologia da ruralidade africana.
A concepção relacional da identidade, inscrita no provérbio: “Eu sou os
outros”; a ideia de que a felicidade se alcança não por domínio mas por
harmonias; a ideia de um tempo circular; o sentimento de gerir o mundo em
diálogo com os mortos: todos estes conceitos constam da rica cosmogonia rural
africana.
É evidente que não se pode romantizar esse mundo não urbanizado. Ele
necessita de enfrentar o confronto com a modernidade. O desafio seria
alfabetizar sem que a riqueza da oralidade fosse eliminada. O desafio seria
ensinar a escrita a conversar com a oralidade.
Não são só os livros que se leem
Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O
senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a
um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas
nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página.
Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as
pessoas não leem livros. Mas o déficit de leitura é muito mais geral. Não
sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o ato de ler nos converte
num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do
que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos
simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar apenas silêncio?
Lembrei aqui o episódio do menino de rua porque tudo começa aí, na
infância. A infância não é um tempo, não é uma idade, uma coleção de memórias.
A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis
para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire
nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo.
A verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma
menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um
estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva
dentro de nós.
Recordo-me de que a guerra tinha deflagrado no meu país e o meu pai me
levava a passear por antigas vias-férreas à procura de minérios brilhantes que
tombavam dos comboios. Em redor, havia um mundo que se desmoronava mas ali
estava um homem ensinando o seu filho a catar brilhos entre as poeiras do chão.
Essa foi uma primeira lição de poesia. Uma lição de leitura do chão que todos
os dias pisava. Meu pai me sugeria uma espécie de intimidade entre o chão e o
olhar. E ali estava uma cura para uma ferida que eu não saberei nunca localizar
em mim, uma espécie de memória de alguém que viveu em mim e fechou atrás de si
um cortinado de brumas.
Pois eu vivo praticando a lição de leitura do meu pai que promove o chão
em página. E estou aplicando o ensinamento de Ho Chi Minh que despromove a
prisão em possibilidade de página. Deste modo aprendendo algo que sei que nunca
chegarei a saber.
Enquanto escrevia o meu romance O último voo do flamingo viajei pelo
litoral do sul de Moçambique à procura de mitos e lendas sobre o mar. Mas tal
não aconteceu. Dificilmente havia histórias ou lendas. O imaginário destes
povos pertencia invariavelmente à terra firme. Apesar de habitarem o litoral,
os seus sonhos moravam longe do oceano.
Aos poucos fui entendendo — aquelas zonas costeiras eram habitadas por
gente que chegou recentemente à beira-mar. São agricultores-pastores que foram
sendo empurrados para o litoral. A sua cultura é a da imensidão da savana interior.
Em suas línguas não existem palavras próprias para designar barco. O pequeno
barquinho toma o nome a partir do inglês — bôte.
O navio grande é chamado de xitimela xa
mati (literalmente, “o comboio da água”). O próprio oceano é chamado de
“lugar grande”. Pescar diz-se “matar o peixe”. Deitar a rede é “peneirar a
água”. As armadilhas de pesca são construídas à semelhança daquelas usadas na
caça. Os territórios de coleta de mariscos na praia são parcelados e sujeitos a
pousio, exatamente como se faz nos terrenos agrícolas. Ao contrário do que
sucede no centro e no norte de Moçambique, estes povos pescam sem serem
pescadores. São lavradores que também colhem no mar. O seu assunto continua
sendo a semente e o fruto. Os seus sonhos moram em terra e os deuses viajam
pela chuva.
Nós estamos todos como esses povos que desconheciam a relação com o mar.
O chamado “progresso” nos empurrou para uma fronteira que é recente, e olhamos
o horizonte como se fosse um abismo sem fim. Não sabemos dar nome às coisas e não
sabemos sonhar neste tempo que nos cabe como nosso. Os nossos deuses
dificilmente têm moradia no actual mundo.
Mas é exatamente nesse espaço de fronteira que estamos aprendendo a ser
criaturas de fronteira, costureiros de diferenças e viajantes de caminhos que
atravessam não outras terras mas outras gentes. A poesia de Gullar deu mote a
este encontro. O poeta Gullar defende que a poesia tem por missão desafiar o
impossível e dizer o indizível. O que o poeta faz é mais do que dar nome às
coisas. O que ele faz é converter as coisas em aparência pura. O que o poeta
faz é iluminar as coisas. Como nos versos com que encerro:
Toda coisa tem peso:
uma noite em seu
centro.
O poema é uma
coisa
que não tem nada
dentro,
a não ser o
ressoar
de uma imprecisa
voz
que não quer se
apagar
— essa voz somos
nós.
– Mia
Couto, extrato da conferência “Quebrar armadilhas”, no livro “‘E se Obama fosse
africano?: e outras interinvenções/Ensaios”. Lisboa: Editorial Caminho, 2009;
Companhia das Letras, 2011.
“Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais, quebrar o mundo de
armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar.”
– Mia
Couto, em interinvenções “Quebrar armadilhas”, do livro “‘E se Obama fosse
africano?’ e outras interinvenções / Ensaios”. Lisboa: Editorial Caminho, 2009.
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