Com a palavra, o poeta…
“Escrevo-lhe hoje por uma
necessidade sentimental — uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se
depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto — que estou hoje no fundo de uma
depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim. Estou num daqueles dias
em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em
torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá, e é esta a
razão intima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum
para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu
há muito tempo […] Se eu não estivesse
escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as
cousas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que sinto. Mas você
sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é uma realidade […] E de que cor
será o sentir?” (Carta de
Fernando Pessoa para o amigo Sá-Carneiro, Lisboa, 14 de Março de 1916.)
Segue um trecho do poema “Insônia”.
“Não durmo, nem espero dormir.
Não durmo; não posso ler
quando acordo de noite,
Não posso escrever quando
acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo
de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar
quando acordo de noite!
Ah, o ópio de ser outra pessoa
qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver
acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um
pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas,
coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me
arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas,
coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me
arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas,
coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me
culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter
energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do
quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa
coisa toda.
Um grande silêncio apavorante
noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que
eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos
realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho
nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos,
versos, versos…
Tantos versos…
E a verdade toda, e a vida
toda fora deles e de mim!
Tenho sono, não durmo, sinto e
não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa
correspondente,
Uma abstração de
autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir
consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê…
Não durmo. Não durmo. Não
durmo.
Que grande sono em toda a
cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto
no poder dormir!
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para
estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada,
para mais nada…
Ó madrugada, tardas tanto…
Vem…
Vem, traz a esperança, vem,
traz a esperança […]“
Álvaro de Campos, in “Poemas”
(heterônimo de Fernando Pessoa)
O nosso poeta é um exemplo da capacidade que o ser humano tem para
produzir tanta beleza mesmo em meio a dor.
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