Chega um momento na vida em que nós nos
tornamos “pais” de nossos pais. Quando eles não estão mais em perfeitas
condições, é o nosso momento de retribuir todo o amor e cuidado que eles sempre
nos ofereceram de todo o coração.
Muitas vezes, somos
responsáveis por reeducá-los, estabelecer limites e os apresentarmos diferentes
realidades de vida. Isso pode ser um grande desafio para nós, já que estamos
acostumados a ser cuidados, mas não nos sentimos totalmente capazes de cuidar
daqueles que nos cuidaram por toda a vida.
Ainda assim, essa pode ser uma
das experiências mais enriquecedoras e emocionantes que podemos viver em nossas
vidas. Nossos pais são algumas das pessoas mais importantes para nós, e fazer o
nosso melhor por eles enquanto ainda estão ao nosso lado é um grande privilégio
que precisamos reconhecer.
Abaixo está um texto
emocionante de Valter Hugo Mãe, publicado originalmente em Público, sobre a sua
rotina cuidando de sua mãe que nos propõe uma grande reflexão: o quanto estamos
fazendo por essas pessoas que sempre fizeram tudo por nós? Nosso cuidado é
fruto da obrigação ou do prazer, do amor? Leia o texto e inspire-se pelas
palavras de Valter.
Cuidar dos pais – Valter Hugo Mãe
A minha mãe é a minha filha. Preciso
dizer-lhe que chega de bolo de chocolate, chega de café ou de andar às pressas.
Vai engordar, vai ficar elétrica, vai começar a doer-lhe a perna esquerda.
Cuido dos seus mimos. Gosto de
lhe oferecer uma carteira nova e presto muita atenção aos lenços bonitos que
ela deita ao pescoço e lhe dão um ar floral, vivo, uma espécie de elemento
líquido que lhe refresca a idade. Escolho apenas cores claras, vivas. Zango-me
com as moças das lojas que discursam acerca do adequado para a idade. Recuso
essas convenções que enlutam os mais velhos.
A minha mãe, que é a minha
filha, fica bem de branco, vermelho, gosto de vê-la de amarelo-torrado, um azul
de céu ou verde. Algumas lojas conhecem-me. Mostram-me as novidades. Encontro
pessoas que sentem uma alegria bonita em me ajudar. Aniversários ou Natal, a
Primavera ou só um fim de semana fora, servem para que me lembre de trazer-lhe
um presente. Pais e filhos são perfeitos para presentes. Eu daria todos os
melhores presentes à minha mãe.
Rabujo igual aos que amam.
Quando amamos, temos urgência em proteger, por isso somos mais do que
sinaleiros, apontando, assobiando, mais do que árbitros, fiscalizando para que
tudo seja certo, seguro. E rabujamos porque as pessoas amadas erram, têm caprichos,
gostam de si com desconfiança, como creio que é normal gostarmos todos de nós
mesmos. Aos pais e aos filhos tendemos a amar incondicionalmente, mas com medo.
Um amigo dizia que entendeu o pânico depois de nascer o seu primeiro filho.
Temia pelo azedo do leite, pelas correntes de ar, pelo carreiro das formigas,
temia muito que houvesse um órgão interno, discreto, que desfuncionasse e
fizesse o seu filho apagar.
Quem ama pensa em todos os perigos e
desconta o tempo com martelo pesado. Os que amam sem esta fatura não amam
ainda. Passeiam nos afetos. É outra coisa.
Ficar para tio parece
obrigar-nos a uma inversão destes papéis a dada altura. Quase ouço as minhas
irmãs dizerem: “Não casaste, agora tomas
conta da mãe e mais destas coisas.” Se a luz está paga, a água, refilar
porque está tudo caro, há uma porta que fecha mal, estiveram uns homens
esquisitos à porta, a senhora da mercearia não deu o troco certo, o cão ladra
mais do que devia, era preciso irmos à aldeia ver assuntos e as pessoas. Quem
não casa deixa de ter irmãos. Só tem patrões. Viramos uma central de
atendimento ao público. Porque nos ligam para saber se está tudo bem, que é o
mesmo que perguntar acerca da nossa competência e responsabilizar-nos mais
ainda. Como se o amor tivesse agentes. Cupidos que, ao invés de flechas, usam
telefones. E, depois, espantam-se: ah, eu pensei que isso já tinha passado,
pensei que estava arranjado, naquele dia achei que a doutora já anunciara a
cura, eu até fiz uma sopa, no mês passado, até fomos de carro ao Porto,
jantamos em modo fino e tudo.
Quando passamos a ser pais das nossas
mães, tornamo-nos exigentes e cansamo-nos por tudo. Ao contrário de quem é pai
de filhas, nós corremos absolutamente contra o tempo, o corpo, os preconceitos,
as cores adequadas para a idade. Somos centrais telefônicas aflitas.
Queremos sempre que chegue a
Primavera, o Verão, que haja sol e aquecem os dias, para descermos à marginal a
ver as pessoas que também se arrastam por cães pequenos. Só gostamos de quem
tem cães pequenos. Odiamos bicharocos grotescos tratados como seres delicados.
O nosso Crisóstomo, que é lingrinhas, corre sempre perigo com cães musculados
que as pessoas insistem em garantir que não fazem mal a uma mosca. Deitam-nos
as patas ao peito e atiram-nos ao chão, as filhas que são mães podem cair e
partir os ossos da bacia. Porque temos bacias dentro do corpo. Somos todos
estranhos. Passeamos estranhos com os cães na marginal e o que nos aproveita
mesmo é o sol.
A minha mãe adora sol. Melhora de tudo.
Com os seus lenços como coisas líquidas e cristalinas ao pescoço, ela fica
lindíssima! E isso compensa. Recompensa. Comemos ao sol. Somos, sem grande
segredo, seres que comem ao sol. Por isso, entre as angústias, sorrimos.
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