O impacto do ensino da arte (ou da falta
dele) na percepção do mundo’ – Camille Paglia
“A arte é o casamento do ideal e do real.
Fazer arte é um ramo da artesania. Artistas são artesãos, mais próximos dos
carpinteiros e dos soldadores do que dos intelectuais e dos acadêmicos, com sua
retórica inflacionada e autorreferencial. A arte usa os sentidos e a eles fala.
Funda-se no mundo físico tangível.”
– Camille Paglia, em ‘Imagens cintilantes’.
A escritora norte-americana Camille Paglia é
conhecida por desafiar as ideias em voga nos mais diversos campos. Professora
de Humanidades e Estudos Midiáticos da University of the Arts da Filadélfia, é
autora de obras que misturam cultura pop, história da arte, sexualidade e os
diferentes meios que tornam o homem um espectador: seja na frente da televisão,
de um Pollock ou de sua própria vida.
Em sua mais recente obra
Imagens cintilantes – uma viagem através da arte desde o Egito a ‘Star Wars’
(Apicuri, 2014), Camille retorna ao local que a consagrou, a crítica à arte
contemporânea. No livro, a autora analisa 29 obras que considera fundamentais na
história da arte e afirma, com certa decepção, que os jovens deixaram ofícios
como a pintura e a escultura para emprestar sua lealdade à tecnologia e ao
design industrial.
Paglia resumiu o panorama que
motivou a criação de Imagens cintilantes:
“O olho sofre com anúncios piscando na
rede. Para se defender, o cérebro fecha avenidas inteiras de observação e
intuição. A experiência digital é chamada interativa, mas o que eu vejo como
professora é uma crescente passividade dos jovens, bombardeados com os estímulos
caóticos de seus aparelhos digitais. Pior: eles se tornam tão dependentes da
comunicação textual e do correio eletrônico, que estão perdendo a linguagem do
corpo.”
De acordo com ela, esta
degeneração gradativa da percepção/expressão tem um grande inimigo: o mercado –
das galerias às instituições de ensino. Segundo a norte-americana, este mercado
não é apenas um objeto a ser combatido, mas sim um profundo problema de visão
sobre a vida, que parte, também, do espectador. Ensinado a enxergar o mundo apenas
de forma política e ideológica, o homem contemporâneo teria perdido a esfera do
sensível, do invisível, do metafísico. Este contexto de constante estímulo
atinge a sociedade como um todo, como Camille argumenta logo na introdução da
obra:
“A vida moderna é um mar de imagens. Nossos
olhos são inundados por figuras reluzentes e blocos de texto explodindo sobre
nós por todos os lados. O cérebro, superestimulado, deve se adaptar rapidamente
para conseguir processar esse rodopiante bombardeio de dados desconexos. A
cultura no mundo desenvolvido é hoje definida, em ampla medida, pela
onipresente mídia de massa e pelos aparelhos eletrônicos servilmente
monitorados por seus proprietários. A intensa expansão da comunicação global
instantânea pode ter concedido espaço a um grande número de vozes individuais,
mas, paradoxalmente, esta mesma individualidade se vê na ameaça de sucumbir.
Como sobreviver nesta era da vertigem?
Precisamos reaprender a ver. Em meio à tamanha e neurótica poluição visual, é
essencial encontrar o foco, a base da estabilidade, da identidade e da direção
na vida. As crianças, sobretudo, merecem ser salvas deste turbilhão de imagens
tremeluzentes que as vicia em distrações sedutoras e fazem a realidade social,
com seus deveres e preocupações éticas, parecer estúpida e fútil. A única
maneira de ensinar o foco é oferecer aos olhos oportunidades de percepção
estável – e o melhor caminho para isso é a contemplação da arte.”
Ainda em seu texto
introdutório, Camille critica as instituições de ensino por falharem
completamente no ensino da visão que nos tiraria desta vertigem. Se precisamos
reaprender a ver, as faculdades de arte, para ela, poderiam ser consideradas
mais um empecilho do que uma parceira nesta tarefa.
Leia, abaixo, o que ela tem
dizer sobre isso a partir de excerto do livro Imagens cintilantes:
“É de uma obviedade alarmante que as
escolas públicas norte-americanas têm feito um mau serviço na educação
artística dos estudantes. Da pré-escola em diante, a arte é tratada como uma
prática terapêutica – projetos com cartolina do tipo “faça você mesmo” e
pinturas com os dedos para liberar a criatividade oculta das crianças. Mas o
que de fato faz falta é um quadro histórico de conhecimentos objetivos acerca
da arte. As esporádicas excursões ao museu, mesmo que haja um por perto, são
inadequadas. Os cursos de história da arte deveriam ser integrados ao currículo
do ensino primário, fundamental e médio – uma introdução básica à grande arte e
a seus estilos e símbolos. O movimento multiculturalista que se seguiu à década
de 1960 ofereceu uma tremenda oportunidade para expandir o nosso conhecimento
do mundo da arte, mas suas abordagens têm com demasiada frequência sacrificado
a erudição e a cronologia em favor de um partidarismo sentimental e de queixumes
rotineiros.
Era de se esperar que as faculdades que
oferecem cursos de artes liberais dessem ênfase à educação artística, mas não é
esse o caso. O atual currículo, de estilo self-service, torna os cursos de
história da arte disponíveis, mas não obrigatórios. Com raras exceções, as
universidades abandonaram toda noção de um núcleo de aprendizado. Os
departamentos de humanidades oferecem uma mixórdia de cursos feitos sob medida
para os interesses de pesquisa dos professores. Tem havido um gradual eclipse,
nos Estados Unidos, do curso de história geral da arte, que cobria
magistralmente, em dois semestres, da arte das cavernas ao modernismo. Apesar
de sua popularidade entre os estudantes, que se recordam deles como pontos
culminantes em suas vivências universitárias, os cursos gerais são cada vez
mais vistos como excessivamente pesados, superficiais ou eurocêntricos – e não
há mais vontade institucional de estendê-los para a arte mundial.
Jovens professores, criados em meio ao
pós-estruturalismo, com sua suspeita mecânica da cultura, consideram-se
especialistas, e não generalistas, e não foram treinados para pensar sobre
trajetórias tão vastas. O resultado final é que muitos alunos de humanidades se
formam com pouco senso da cronologia ou da deslumbrante procissão de estilos
que constituía a arte ocidental.
A questão mais importante acerca da arte é:
o que permanece e por quê?
As definições de beleza e os padrões de
gosto mudam constantemente, mas padrões persistentes subsistem. Defendo uma
visão cíclica da cultura: os estilos crescem, chegam ao ápice e decaem para
tornarem a florescer, num renascer periódico. A linha de influência artística
pode ser vista claramente na cultura ocidental, com várias interrupções e
recuperações, desde o Egito antigo até hoje – uma saga de 5 mil anos que não é
(como diria o jargão acadêmico) uma “narrativa” arbitrária e imperialista.
Grande número de objetos teimosamente concretos – não apenas “textos”
vacilantes e subjetivos – sobrevivem desde a antiguidade e as sociedades que
moldaram.
A civilização é definida pelo direito e
pela arte. As leis governam o nosso comportamento exterior, ao passo que a arte
exprime nossa alma. Às vezes, a arte glorifica o direito, como no Egito; às
vezes, desafia a lei, como no Romantismo.
O problema com abordagens marxistas que
hoje permeiam o mundo acadêmico (via pós-estruturalismo e Escola de Frankfurt)
é que o marxismo nada enxerga além da sociedade. O marxismo carece de
metafísica – isto é, de uma investigação da relação do homem com o universo,
inclusive a natureza. O marxismo também carece de psicologia: crê que os seres
humanos são motivados apenas por necessidades e desejos materiais. O marxismo
não consegue dar conta das infinitas refrações da consciência, das aspirações e
das conquistas humanas.
Por não perceber a dimensão espiritual da
vida, ele reduz reflexivamente a arte à ideologia, como se o objeto artístico
não tivesse outro propósito ou significado além do econômico ou do político.
Hoje, ensinam aos estudantes a olhar a arte
com ceticismo, por seus equívocos, suas parcialidades, suas omissões e ocultos
jogos de poder. Admirar e honrar a arte, exceto quando transmite mensagens
politicamente corretas, é considerado ingênuo e reacionário. Um único erudito
marxista, Arnold Hauser, em seu épico estudo de 1951, A história social da
arte, teve bom êxito na aplicação da análise marxista, sem perder a magia e o
mistério da arte. E Hauser (uma das influências iniciais do meu trabalho)
trabalhava com base na grande tradição da filologia alemã, animada por uma
ética erudita que hoje se perdeu.
A arte é o casamento do ideal e do real.
Fazer arte é um ramo da artesania. Artistas são artesãos, mais próximos dos
carpinteiros e dos soldadores do que dos intelectuais e dos acadêmicos, com sua
retórica inflacionada e autorreferencial. A arte usa os sentidos e a eles fala.
Funda-se no mundo físico tangível.
O pós-estruturalismo, com suas origens
linguísticas francesas, tem a obsessão pelas palavras e, com isso, é
incompetente para interpretar qualquer forma de arte além da literatura. O
comentário sobre arte deve abordá-la e descrevê-la em seus próprios termos.
Deve-se manter um delicado equilíbrio entre os mundos visível e invisível.
Aqueles que subordinam a arte a uma agenda política contemporânea são tão
culpados de propaganda e rigidez literal como qualquer pregador vitoriano ou
burocrata stalinista.”
Fonte:
Fronteiras do Pensamento
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