Se eu pudesse viver minha vida novamente…
Quando o li pela primeira vez, fiquei comovido. Era
uma mistura de sabedoria e tristeza. Seu título era “Instantes”, e começava
assim:
Se eu pudesse viver novamente a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros […].
Correria mais riscos,
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres.
E ia assim, parágrafo após parágrafo, listando coisas
que haviam sido feitas e que não deveriam ter sido feitas, e coisas que não
haviam sido feitas e que deveriam ter sido feitas. Até o final melancólico:
Mas, já viram, tenho 85 anos
e sei que estou morrendo.
O texto era uma advertência aos mais moços: só temos o
momento. Não percam o agora.
Estou a ponto de “desfazer” setenta anos, muito embora
os distraídos insistam em usar o verbo fazer. O fato é que a celebração de mais
um ano de vida é a celebração de um desfazer, um tempo que deixou de ser, não
mais existe. Fósforo que foi riscado. Nunca mais acenderá. Daí a profunda
sabedoria do ritual de soprar as velas em festas de aniversário. Se uma vela
acesa é símbolo de vida, uma vez apagada ela se torna símbolo de morte. O que
não entendo é a razão pela qual os participantes, diante das velas apagadas, se
ponham a bater palmas e a rir, quando o certo seria que chorassem. Eu prefiro
um ritual mais alegre: acender uma vela bem grande, como um bruxedo de invocação
dos anos ainda não nascidos cujo número não sei!
Os números redondos, creio que por razões estéticas,
são mais poderosos que os números quebrados. Ninguém acharia nada de
extraordinário com o número 7073565 da sua carteira de identidade. Mas, se o
número for 5000000, isso será razão para as mais fantásticas conjecturas.
Assim, ao ensejo do número redondo 70, pensei em fazer um documento parecido
com o “Instantes”, confessando erros e dando conselhos aos mais jovens. Mas
desisti. E isso porque, “se eu pudesse viver minha vida novamente”, eu quereria
vivê-la do jeito mesmo como a vivi, com seus desenganos, fracassos e equívocos.
Doidice? Imaginem que eu estivesse infeliz. Eu teria então todas as razões para
voltar atrás e tentar consertar os lugares onde errei. Mas eu não estou
infeliz. Vivo um crepúsculo bonito, com a suíte nº 1 de Bach, para violoncelo.
Se houve sofrimentos no caminho, imagino que, se não os tivesse tido, talvez a
suíte nº 1 de Bach não estivesse sendo ouvida. Estou onde estou pelos caminhos
e descaminhos que percorri.
Faz muitos anos, nos tempos em que eu era ainda
professor da Unicamp, um aluno que eu não conhecia telefonou-me dizendo que
precisava falar comigo. Marcamos um encontro na minha casa. Ele chegou, abriu
um caderno e começou a fazer-me perguntas. A primeira pergunta – que abortou
todas as outras – foi a seguinte: “Como é que o senhor planejou a sua vida para
que chegasse aonde chegou?” Percebi logo. Ele me admirava. Queria ser como eu.
Queria que eu lhe contasse o segredo. Que lhe revelasse o caminho. Mas minha
resposta pôs a perder as suas expectativas. Foi isso que eu lhe disse: “Eu
estou onde estou porque todos os meus planos deram errado.”
Isso é absolutamente verdadeiro. As pontes que
construía para chegar aonde eu queria ruíam uma após a outra. Eu era então
obrigado a procurar caminhos não pensados. E aconteceu, por vezes, que nem
mesmo segui, por vontade própria, os caminhos alternativos à minha frente.
Escorreguei. A vida me empurrou. Fui literalmente obrigado a fazer o que não
queria.
Por exemplo: meu pai, homem muito rico, foi à
falência. Ficou pobre. Teve de mudar de cidade para começar vida nova. Se isso
não tivesse acontecido, é provável que hoje eu fosse um rico fazendeiro guiando
uma F 1000 e contabilizando cabeças de gado.
Quando me mudei para o Rio de Janeiro, aos 12 anos de
idade, menino do interior de Minas com um sotaque caipira, fui objeto de
zombarias e chacotas. Nunca me senti tão sozinho. Nunca fui convidado a ir à
casa de um colega e nunca tive coragem para convidar um colega para ir à minha
casa. Sofri a dor da solidão e da rejeição. Mas foi esse espaço de solidão na
minha alma que me fez pensar coisas que de outra forma eu não teria pensado.
Lutei muito para ser pianista. Trabalhei duro, horas e
horas por dia. Se tivesse dado certo, eu seria hoje um pianista medíocre.
Pianista bom não precisa fazer força. É dom de Deus, como é o caso do Nelson
Freire. A diferença entre nós é que, enquanto eu tentava colocar dentro de mim
um piano que estava fora, o problema do Nelson era colocar para fora um piano
que morava dentro dele desde o nascimento. Para mim, o piano nunca passaria de
uma prótese. Mas, para o Nelson, o piano é uma expansão do seu corpo. Foi
preciso que eu fracassasse como pianista para que o escritor que morava dentro
de mim aparecesse. Assim, comecei a fazer música com palavras, acho que com a
mesma facilidade com que o Nelson toca piano.
Fui pastor protestante e é provável que, se tudo
tivesse acontecido nos conformes, eu hoje fosse um clérigo velho. Mas veio o
golpe militar, fui acusado de subversivo pelas zelosas e bondosas autoridades
da Igreja… Tive de me mudar para os Estados Unidos com a minha família – o que
foi ótimo para todos nós. Fiz meu doutoramento, fiz amigos novos, viajei,
conheci lugares, acampei, tive tempo para ler e pensar.
Cheguei onde estou por caminhos que não planejei. É um
lugar feliz com o qual nunca sonhei. Nunca me passou pela ideia que eu viria a
ser escritor. E, em especial, que escreveria estórias para crianças – e que as
crianças as amariam (e me amariam por causa delas…). Tanto assim que não me
preparei para o ofício. Sou ruim em gramática, erro a acentuação. E há mesmo
uma pessoa que se dedicava a escrever-me longas cartas para corrigir meu
português. Parou de escrever. Acho que desistiu. Como é bem sabido, eu, um mau
aluno, especialmente quando o professor quer ensinar-me coisas que não quero
aprender. Pena que o dito professor, voluntário, nunca tivesse feito comentário
algum sobre o que eu escrevia. Concordo mesmo é com o Patativa do Assaré: “É
melhor escrever errado a coisa certa do que escrever certo a coisa errada…”
Plantei árvores, tive filhos, escrevi livros, tenho
muitos amigos e, sobretudo, gosto de brincar. Que mais posso desejar? Se eu
pudesse viver minha vida novamente, eu a viveria como a vivi porque estou feliz
onde estou.
Rubem Alves, no livro “Se eu pudesse viver minha vida novamente”.
Campinas, SP: Verus Editora, 2012.
Abaixo o poema
citado por Rubem Alves:
*Instantes*
Se eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima
trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido; na verdade, bem poucas coisas levaria
a sério.
Seria menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria
mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais
rios. Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos
lentilha, teria mais problemas reais e menos imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e
produtivamente cada minuto da sua vida. Claro que tive momentos de alegria.
Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos. Porque,
se não sabem, disso é feito a vida: só de momentos – não percas o agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um
termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas; se
voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar
descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria
mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais
crianças, se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e sei que estou morrendo.
Don Herold
* Poema “Instantes”, indevidamente atribuído a Jorge Luis Borges e também
a Nadine Stair. A mais antiga publicação comprovada deste texto está nas
Seleções do Reader’s Digest, de outubro de 1953, e seu autor é Don Herold
(1889-1966), escritor e humorista, autor de cerca de uma dúzia de livros.
Versões diferentes podem ser encontradas pela internet.
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