André
J. Gomes
Repare. Em algum lugar, de alguma sorte, alguém está fazendo uma coisa
boa por nós. Talvez você nem note. Mas tem alguém compensando nossa
truculência, atenuando a dureza do mundo, nivelando a vida por cima. Tem alguém
levando à frente a compaixão divina num gesto de bondade simples, à toa. Alguém
de coração disposto e mãos ativas. Tem, sim. Em algum lugar por aí, tem alguém
pensando em você com ternura.
De repente, vem um sentimento breve de calma. Um silêncio bom entre
tanto grito, um remanso imprevisto no corre-corre, estio na tempestade, trégua
na guerra. Sensação inesperada e inexplicável de que tudo vai dar certo. Não é
nada, não. É só alguém, em algum canto, fazendo algo bonito por nós.
A avó que recorda com grande saudade quando éramos pequenos. Os pais que
falam de nós com carinho até aos desconhecidos. Os velhos professores que nos
comparam em silêncio a seus alunos de hoje, quase dizendo “ahh… como fulano era bom” ou “no
tempo do sicrano era outra coisa”.
O amigo distante que assiste a um filme antigo e nos relembra em
dolorida mudez, machucado de lembranças do tempo em que éramos novos e
próximos, um sorriso imenso nos olhos de choro. As almas boas que nos bendizem
pelas costas. As criaturas justas que nos dão sua palavra e cumprem o que
prometem, os cães e os gatos que nos oferecem a barriga em festa. Aquela gente
que nos ama sem mais o quê.
Quando alguém nos faz uma coisa bela, o mundo entra nos eixos. Temos
todos o direito a receber afagos e o dever de redistribuí-los. De atravessar o
mundo partilhando beleza e ofertando decência até chegar enfim aos braços que
nos cabem e ao abraço em que cabemos.
A beleza é a matéria-prima de todo ofício honesto. É o que nos resta e o
que nos sobra. Às cantoras e aos cantores, às atrizes e aos atores e artistas
de todo gênero, alguém no escuro da plateia dispara seu aplauso comovido de fé
e alegria sem ser visto, e comprova o quanto é bonito retribuir a quem nos dá
seja lá o quê.
Aos operários e aos médicos, guardas noturnos e secretárias, pintores e
cozinheiras, juízes e manobristas, marceneiros e esportistas e a toda gente sob
o céu há de existir gratidão e conforto antes, durante e depois da lida.
Há de haver beleza em cada “obrigado”, “por favor”, “pois não” e outras
gentilezas essenciais esperando quem os diga.
E quem os diz é alguém fazendo algo bonito pela mera volúpia bondosa de
nos abrir os braços. Nos pontos de ônibus, no trânsito parado, nas salas de
espera ou na solidão do quarto escuro, aguardamos todos quem nos faça uma coisa
bela. Assim, na espera, compreendemos enfim nossa responsabilidade de fazer e
espalhar beleza, nosso mais poderoso e sublime ofício nessa vida.
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