Pesquisador encontra em jornal uma letra de Machado de Assis para o hino
nacional. Os versos inéditos foram escritos em 1867 para celebrar aniversário
de Dom Pedro 2º.
Os velhos papéis, quando não são consumidos pelo fogo, às vezes acordam
de seu sono para contar notícias do passado.
É assim que se descobre algo novo de um nome antigo, sobre o qual já se
julgava saber tudo, como Machado de Assis.
Por exemplo, você provavelmente não sabe que o autor carioca, morto em
1908, escreveu uma letra do hino nacional em 1867 – e não poderia saber mesmo,
porque os versos seguiam inéditos. Até hoje.
Essa letra acaba de ser descoberta, em um jornal antigo de Florianópolis,
pelo pesquisador independente Felipe Rissato – o mesmo que, nos últimos anos,
fez diversas descobertas sobre Machado de Assis e Euclydes da Cunha, incluindo
fotos e textos desconhecidos dos autores.
“Das florestas
em que habito/ Solto um canto varonil:/ Em honra e glória de Pedro/ O gigante
do Brasil”, diz o começo do hino, composto de sete estrofes em redondilhas
maiores, ou seja, versos de sete sílabas poéticas. O trecho também é o refrão
da música.
O Pedro mencionado é o imperador dom Pedro 2º. O bruxo do Cosme Velho
compôs a letra para o aniversário de 42 anos do monarca, em 2 de dezembro
daquele ano -o hino seria apresentado naquele dia no teatro da cidade de
Desterro, antigo nome de Florianópolis.
“As pesquisas que tenho feito
comprovam que há muitas coisas [de Machado] sabidamente perdidas, como peças
dramáticas, e várias outras coisas cuja existência era desconhecida, como uma
crônica anônima [que descobri]”, afirma Rissato.
Rissato sabia desde 2016 da existência desse hino, porque o jornal O
Mercantil, guardado no acervo da Biblioteca Nacional, anunciava na véspera um
“esplêndido espetáculo”.
“Ao levantar o pano ver-se-á
em riquíssimo dossel, e, em ponto natural, a efígie de S. M. o Imperador, tal
qual este Adorado Monarca se apresenta por ocasião da fala do trono e será
cantado pela companhia o Hino Nacional sendo a letra apropriada a este dia,
pelo distinto escritor brasileiro o Snr. Machado d’Assis”, dizia o anúncio.
Mas O Mercantil não publicou, nas edições seguintes, a transcrição da
letra. A chave para o mistério estava num jornal catarinense chamado O
Constitucional, em duas edições de 1867.
Em uma delas, a publicação avisa que o espetáculo do dia 2 foi adiado,
porque dois músicos ficaram doentes. Em outra, de 11 de dezembro daquele ano,
transcreve a letra – mas não cita o nome do autor dela.
“Enche o peito
brasileiro/Doce luz, almo fervor,/ Ante o dia abençoado/ Do seu grande
Imperador”*, escreve Machado em outro trecho.
As publicações foram preservadas no acervo da Biblioteca Pública de
Santa Catarina. No Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional só tem edições de O
Constitucional a partir de 1868 -ou seja, um ano após a execução do hino de
Machado de Assis.
Edição
do jornal O Constitucional, de 1867, com hino
nacional
escrito por Machado de Assis
Edição
do jornal O Constitucional, de 1867, com hino
nacional
escrito por Machado de Assis
Edição
do jornal O Constitucional, de 1867, com hino
nacional
escrito por Machado de Assis
A descoberta de Rissato também se soma à história dos hinos imperiais
brasileiros. O primeiro deles, “O Hino da
Independência”, foi composto por dom Pedro 1º em 1822. Depois da
abdicação do imperador em favor do filho, em 1831, surgiria mais um, escrito
por Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva.
Houve mais um hino imperial, de data incerta e autor desconhecido – a
referência mais antiga aos versos é uma partitura publicada em 1869, mas
provavelmente ele foi escrito para a coroação de dom Pedro 2º, em 1841.
Assim, o hino de Machado se torna o quarto conhecido do império, antes
da chegada do atual, já na República, escrito por Osório Duque Estrada.
Os versos foram compostos pelo autor de “Dom Casmurro” em uma época em
que ele era principalmente poeta. Seu primeiro romance, “Ressurreição”, só
viria em 1872. Já “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, só em 1881.
A produção poética de Machado é pouco conhecida, mas ele se dedicou a
versos de ocasião – e não era a primeira homenagem que ele fazia à família
imperial.
No aniversário de 30 anos de Pedro 2º, ele já havia composto um soneto
para o monarca: “Nesse
trono, Senhor, onde esculpido/ Tem a destra do Eterno um nome amado,/ Vês
nascer este dia abrilhantado/ Sorrindo a ti, Monarca esclarecido!”.
Os versos permitem ver uma simpatia de Machado pela monarquia. Em 2015,
descobriu-se, na fotografia clássica da missa campal pela abolição da
escravatura, o rosto de Machado entre as figuras próximas à princesa Isabel – o
que denota prestígio na corte.
Em 1867, mesmo ano em que escreveu o hino, o escritor seria nomeado para
seu primeiro emprego ligado ao sistema monárquico, de assistente do diretor do
Diário Oficial. Em 1873, o autor virou primeiro oficial da secretaria de Estado
do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas – iniciando ali uma
carreira de burocrata de toda a vida.
O achado se soma a outros realizados por Felipe Rissato nos últimos
anos. O mais recente havia sido a descoberta do que agora é a última fotografia
de Machado, feita meses antes de ele morrer.
Antes disso, ele já havia encontrado a única imagem do autor presidindo
uma sessão na Academia Brasileira de Letras e uma crônica anônima dele sobre a
morte da mãe.
Machado ficou órfão em 1849, aos nove anos, e, no texto, contava como
corria atrás de borboletas azuis e colhia flores para dar a ela. “Eu sem ti, sem o perfume da flor que me
fazia feliz e crente, chorarei sempre sem consolação; porque uma mãe perde-se
uma vez e nunca mais se encontra”, escreveu na ocasião.
Agora, o desejo de Rissato é encontrar um poema de Machado intitulado “À
S. M. a Imperatriz”, dedicado à imperatriz Teresa Cristina e recitado nas
festividades de 7 de setembro de 1889, a última comemoração da Independência
antes de a República ser proclamada. Embora mencionado em publicações, o texto
continua perdido.
Autor descartou
sabiamente versos de circunstância
Graças a incansável operosidade e a constante devoção à causa
machadiana, o pesquisador Felipe Rissato nos brinda com texto até agora ausente
da bibliografia de Machado de Assis: um poema publicado unicamente no ano de
1867, em periódico de Florianópolis (à época, Desterro).
Antes de se tornar consumado mestre da narrativa, Machado de Assis foi
aplicado aprendiz de poesia.
Em 1864, estreara em verso com “Crisálidas”, de acentuada fatura
romântica. Como se sabe, a lírica do autor oscilou entre o romantismo algo
tardio das publicações poéticas iniciais – além de “Crisálidas”, “Falenas”
(1870) e “Americanas” (1875) – e o parnasianismo das derradeiras produções,
enfeixadas em “Ocidentais”, obra sem publicação autônoma, porém inserida, com
as anteriores, em “Poesias”, de 1901.
Sabiamente, Machado descartou a inclusão, no volume de 1901, desse
recém-descoberto hino nacional, bem como de outras peças da chamada poesia de
circunstância, que, a rigor, nada acrescentam ao legado do artista,
constituindo-se, porém, em mananciais que podem – como no caso – explicitar
posições políticas muitas vezes apenas subentendidas em textos de maior
complexidade e sutileza.
Os versos, indicadores do entusiasmo do jovem Machado pela figura do
imperador dom Pedro 2º, agrupam-se em sete estrofes de sete versos, com rimas
de palavras monossilábicas ou então oxítonas, ditas “agudas”, nos versos pares.
A rigor, contabilizam-se apenas quatro estrofes originais, na medida em que uma
delas, a primeira, repete-se ainda outras três vezes.
O tom é extremamente laudatório, descambando na caracterização hiperbólica
do monarca como “gigante do Brasil”, “grande Imperador”, “colosso Imperial”.
O mais curioso, porém, é que o eu lírico, supostamente porta-voz do povo
brasileiro – afinal, trata-se de um hino da nacionalidade-, emite seu discurso
a partir de local inusitado: “Das florestas em que
habito”. Avulta, portanto, uma perspectiva nativista ou indianista que
ainda iria ocupar o autor por alguns anos, elevando o tema à condição de eixo
principal de “Americanas”.
A floresta e o trono se enlaçam sem qualquer obstáculo ou mediação, como
se a monarquia fosse o desdobramento “natural” de um desejo latente na virgem
terra brasileira. A produção madura de Machado de Assis decerto descartaria
associações com tal teor de simplificação.
“O constitucional” publicou os versos em uma edição de 11 de dezembro de
1867. Eis a integra:*
Estribilho:
Das florestas em que habito
Solto um canto varoniil:
Em honra e glória de Pedro
O gigante do Brasil.
Letra:
Enche o peito brasileiro
Doce luz, almo fervor
Ante o dia abençoado
Do grande Imperador
Das florestas em que habito (est,)
Em firme o trono sentado
O colosso Imperial
Tem por base de grandeza
O coração nacional.
Das florestas em que habito (est,)
Correm anos, e este dia
Surge na terra da Cruz:
Abre-se a alma do povo
Jorra do Céu nova luz.
Das florestas em que habito… (est,)
Fonte:
FolhaPress/ Bem Paraná
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