Ensinar
é um exercício
de imortalidade.
De alguma forma
continuamos a viver
naqueles cujos olhos
aprenderam a ver o mundo
pela magia da nossa palavra.
O professor, assim, não morre
jamais…
– Rubem Alves
Ensinar o que
não se sabe
E chega o momento quando o Mestre toma o discípulo
pela mão, e o leva até o alto da montanha. Atrás, na direção do nascente, se veem
vales, caminhos, florestas, riachos, planícies ermas, aldeias e cidades. Tudo
brilha sob a luz clara do sol que acaba de surgir no horizonte. E o Mestre
fala:
Por todos estes
caminhos já andamos. Ensinei-lhe aquilo que sei. Já não há surpresas. Nestes
cenários conhecidos moram os homens. Também eles foram meus discípulos!
Dei-lhes o meu saber e eles aprenderam as minhas lições. Constroem casas, abrem
estradas, plantam campos, geram filhos… Vivem a boa vida cotidiana, com suas
alegrias e tristezas. Veja estes mapas!
Com estas palavras ele toma rolos de papel que trazia
debaixo do braço e os abre diante do discípulo.
Aqui se encontra
o retrato deste mundo. Se você prestar bem atenção, verá que há mapas dos céus,
mapas das terras, mapas do corpo, mapas da alma. Andei por estes cenários.
Naveguei, pensei, aprendi. Aquilo que aprendi e que sei, está aqui. E estes
mapas eu lhe dou, como minha herança. Com eles você poderá andar por estes
cenários sem medo e sem sustos, pisando sempre a terra firme. Dou-lhe o meu
saber.
Aí o Mestre fica silencioso, olhando dentro dos olhos
do discípulo. Ele quer adivinhar o que se esconde naquele olhar. Examina os
seus pés. Nos pés sólidos se revela a vocação para andar pelas trilhas
conhecidas. Quem sabe isto é tudo aquilo de que aquele corpo jovem é capaz!
Quem sabe isto é tudo o que aquele corpo jovem deseja! Se assim for, talvez que
o melhor seria encerrar aqui a lição e nada mais dizer.
Mas o Mestre não se contém e procura, nas costas do
seu discípulo, prenúncios de asas – asas que ele imaginara haver visto como
sonho, dentro dos seus olhos.
O Mestre sabe que todos os homens são seres alados por
nascimento, e que só se esquecem da vocação pelas alturas quando enfeitiçados
pelo conhecimento das coisas já sabidas.
Ensinou o que sabia. Agora chegou a hora de ensinar o
que não sabe: o desconhecido.
Volta-se então na direção oposta, o mar imenso e
escuro, onde a luz do sol ainda não chegou.
É este o seu
destino. Os poetas o têm sabido desde sempre: A solidez, da terra, monótona,
parece-nos fraca ilusão. Queremos a ilusão do grande mar, multiplicada em suas
malhas de perigo (Cecília Meireles).
É preciso
navegar. Deixando atrás as terras e os portos dos nossos pais e avós, nossos
navios têm de buscar a terra dos nossos filhos e netos, ainda não vista,
desconhecida. (Nietzsche).
Mas, para esta aventura meus mapas não lhe bastam.
Todos os diplomas são inúteis. E inútil todo o saber aprendido. Você terá de
navegar dispondo de uma coisa apenas: os seus sonhos. Os sonhos são os mapas
dos navegantes que procuram novos mundos. Na busca dos seus sonhos você terá de
construir um novo saber, que eu mesmo não sei… E os seus pensamentos terão de
ser outros, diferentes daqueles que você agora tem.
O seu saber é um pássaro engaiolado, que pula de
poleiro a poleiro, e que você leva para onde quer. Mas dos sonhos saem pássaros
selvagens, que nenhuma educação pode domesticar.
Meu saber o ensinou a andar por caminhos sólidos.
Indiquei-lhe as pedras firmes, onde você poderá colocar os seus pés, sem medo.
Mas o que fazer quando se tem de caminhar por um rio saltando de pedra em
pedra, cada pedra uma incógnita? Ah! Como são diferentes o corpo movido pelo
sonho, do corpo movido pelas certezas.
Sobre leves
esteios o primeiro salta para diante. a esperança e o pressentimento põem asas
em seus pés. Pesadamente o segundo arqueja em seu encalço e busca esteios
melhores para também alcançar aquele alvo sedutor, ao qual seu companheiro mais
divino já chegou. Dir-se-ia ver dois andarilhos diante de um regato selvagem,
que corre rodopiando pedras. o primeiro, com pés ligeiros, salta por sobre ele,
usando as pedras e apoiando-se nelas para lançar-se mais adiante, ainda que, atrás
dele, afundem bruscamente nas profundezas. O outro, a todo instante, detém-se
desamparado, precisa antes construir fundamentos que sustentem seu passo pesado
e cauteloso; por vezes isso não dá resultado e, então, não há deus que possa
auxiliá-lo a transpor o regato. (Nietzsche)
Até agora eu o ensinei a marchar. É isto que se ensina
nas escolas. Caminhar com passos firmes. Não saltar nunca sobre o vazio. Nada
dizer que não esteja construído sobre sólidos fundamentos. Mas, com o
aprendizado do rigor, você desaprendeu o fascínio do ousar. E até desaprendeu
mesmo a arte de falar. Na Idade Média (e como a criticamos!) os pensadores só
se atreviam a falar se solidamente apoiados nas autoridades. Continuamos a
fazer o mesmo, embora os textos sagrados sejam outros. Também as escolas e
universidades têm os seu papas, seus dogmas, suas ortodoxias. O segredo do
sucesso na carreira acadêmica? Jogar bem o boca de forno, a aprender a fazer
tudo o que seu mestre mandar…
©André Martins de Barros
Agora o que desejo é que você aprenda a dançar. Lição
de Zaratustra, que dizia que para se aprender a pensar é preciso primeiro
aprender a dançar. Quem dança com as ideias descobre que pensar é alegria. Se
pensar lhe dá’ tristeza e porque você só sabe marchar, como soldados em ordem
unida. Saltar sobre o vazio, pular de pico em pico. Não ter medo da queda. Foi
assim que se construiu a ciência: não pela prudência dos que marcham, mas pela
ousadia dos que sonham. Todo conhecimento começa com o sonho. O conhecimento
nada mais é que a aventura pelo mar desconhecido, em busca da terra sonhada.
Mas sonhar é coisa que não se ensina. Brota das profundezas do corpo, como a
água brota das profundezas da terra. Como Mestre só posso então lhe dizer uma
coisa: “Conte-me os seus sonhos, para que sonhemos juntos!”
– Rubem Alves, no livro “A alegria de ensinar”. São Paulo: Ars Poetica
Editora Ltda, 1994.
Fonte: Revista Prosa Verso e Arte
Nenhum comentário:
Postar um comentário