“A possibilidade
de futuro passa por estarmos abertos ao imprevisível”
A trajetória de Franco Berardi é no mínimo eclética. Na década de
60, ingressa no grupo Poder Operário, quando estudava na Faculdade de Letras e
Filosofia da Universidade de Bolonha, onde se licenciou em Estética. Em 1975,
funda a revista “A/Traverso”,
que se transforma no núcleo do movimento criativo de Bolonha, e centra o seu
trabalho intelectual na relação entre tecnologia e comunicação. Em finais da
década de 70 exila-se em Paris e, posteriormente, ruma a Nova Iorque. Quando
regressa a Itália, em meados dos anos 80, publica o
artigo “Tecnologia comunicativa”, que preconiza a expansão da internet
como fenómeno social e cultural decisivo. Com vasta obra publicada, o filósofo
italiano e professor de História Social dos Media na Accademia di Brera, em
Milão, continua a refletir sobre o papel dos media e da tecnologia de
informação no capitalismo pós-industrial, a precariedade existencial e a
necessidade de repensarmos “o nosso futuro económico”.
Entrevista* concedida à Ana
Pina/O jornal Económico (Portugal), em 17 de junho 2018.
Seguem alguns
trechos da entrevista com o filósofo italiano Franco Berardi:
O acrónimo inglês TINA – There Is No Alternative [não há alternativa] –
é usado recorrentemente para justificar a necessidade de trabalhar mais e de
aumentar a produtividade. Na sua opinião, não há mesmo alternativa?
Esse tem sido o discurso dos
líderes políticos nos últimos 40 anos, desde que Margaret Thatcher declarou que
“a sociedade não existe”. Existem apenas indivíduos, empresas e países
competindo e lutando pelo lucro. É este o objetivo do capitalismo financeiro. E
com esta declaração foi proclamado o fim da sociedade e o início de uma guerra
infinita: a competição é a dimensão económica da guerra. Quando a competição é
a única relação que existe entre as pessoas, a guerra passa a ser o ‘ponto de
chegada’, o culminar do processo. Penso que, em breve, acabaremos por assistir
a algo que está para além da nossa imaginação…
O que pode pôr em causa o capitalismo financeiro? Enfrenta alguma
ameaça?
A solidariedade é a maior
ameaça para o capitalismo financeiro. A solidariedade é o lado político da
empatia, do prazer de estarmos juntos. E quando as pessoas gostam mais de estar
juntas do que de competir entre si, isso significa que o capitalismo financeiro
está condenado. Daí que a dimensão da empatia, da amizade, esteja a ser
destruída pelo capitalismo financeiro. Mas atenção, não acredito numa vontade
maléfica. O que me parece é que os processos tecnológico e econômico geraram,
simultaneamente, o capitalismo financeiro e a aniquilação tecnológica digital
da presença do outro. Nós desaparecemos do campo da comunicação porque quanto
mais comunicamos menos presentes estamos – física, erótica e socialmente
falando – na esfera da comunicação. No fundo, o capitalismo financeiro assenta
no fim da amizade. Ora, a tecnologia digital é o substituto da amizade física,
erótica e social através do Facebook,
que representa a permanente virtualização da amizade. Agora diz-se que é preciso
“consertar o Facebook”. O problema
não está em “consertar” o Facebook,
mas sim em ‘consertarmo-nos’ a nós. Precisamos de regressar a algo que o Facebook apagou.
O pensamento crítico pode ajudar a “consertarmo-nos”?
Não há pensamento crítico sem
amizade. O pensamento crítico só é possível através de uma relação lenta com a
ciência e com as palavras. O antropólogo britânico Jack Goody explica na sua
obra “Domesticação do Pensamento Selvagem” que o pensamento crítico só é
possível quando conseguimos ler um texto duas vezes e repensar o que lemos para
podermos distinguir entre o bem e o mal, entre verdade e mentira. Quando o
processo de comunicação se torna vertiginoso, assente em multicamadas e
extremamente agressivo, deixamos de ter tempo material para pensarmos de uma
forma emocional e racional. Ou seja, o pensamento crítico morreu! É algo que
não existe nos dias de hoje, salvo em algumas áreas minoritárias, onde as pessoas
podem dar-se ao luxo de ter tempo e de pensar.
Como vê o papel dos media e das redes sociais nos tempos que correm?
Devo dizer que, nos dias de
hoje, a expressão “media” não é muito óbvia. Remete para quê exatamente? Remete
para o The New York Times (NYT) ou para o Facebook?
Digamos que, neste último ano, houve uma disputa cerrada entre o NYT e o Facebook e foi este que acabou por
vencer, porque o pensamento crítico morreu. E o pensamento imersivo está fora
do alcance da crítica. A imersividade é, pois, a única possibilidade. Esta é
outra questão relevante. Acredita que o Facebook
pode ser ‘consertado’? Pessoalmente não acredito. Em tempos, eu e muitas outras
pessoas acreditávamos que a Internet ia libertar a humanidade. Errado. As
ferramentas tecnológicas não vão libertar-nos. Só a humanidade pode libertar-se
a si própria. Voltando ao Facebook, como podemos defini-lo? O Facebook é uma máquina de aceleração
infinita. E esta aceleração, intensificação, obriga a distrair-nos daquilo que
é a genuína amizade.
Considera que as redes sociais padronizam formas de estar?
Sem dúvida. A nossa energia
emocional foi absorvida pelo mundo digital, por isso as pessoas esperam que os
outros “gostem” do que dizemos [nas redes sociais] e muita gente sente-se
infeliz quando os seus posts não produzem esse efeito. Uma das consequências
desse investimento emocional é o chamado ‘efeito da câmara de eco’, ou seja,
tendemos a comunicar, a trocar informações e opiniões com pessoas que pensam
como nós, ou que reforçam as nossas expetativas, e reagimos mal à diferença.
Podemos chamar-lhe psicopatologia da comunicação. O futuro só é imaginável
quando estamos dispostos a investir emocionalmente nos outros, na amizade, na
solidariedade e, claro, no amor. Mas se não formos capazes de sentir empatia, o
futuro não existe. São os outros que nos validam, que nos conferem humanidade.
Refere num artigo que o ser humano tem de abandonar o desejo de
controlar…
Hoje em dia, o grau de
imprevisibilidade aumentou de tal forma que pôs fim à potência masculina. O
ponto de vista feminino, por seu turno, representa a complexidade, a
imprevisibilidade da infinita riqueza da natureza e da tecnologia – não no
sentido de algo oposto à natureza, mas como uma forma de evolução natural.
Atualmente, só o ponto de vista feminino é que pode salvar a raça humana. O
ponto de vista masculino já não é capaz de fazer o tipo de ‘trabalho’ de que
fala Maquiavel: dominar a natureza. Isso já não é possível, por isso temos de
libertar a produtividade da natureza e da mente humana, isto é, o conhecimento.
Hoje em dia, o problema não está no excesso de tecnologia, mas sim na nossa
incapacidade de lidar com a tecnologia sem ficarmos reféns do preconceito do
poder, do controlo, da dominação. Temos de abandonar essa pretensão: a de
controlar.
Subscreve as palavras de Keynes: “o inevitável geralmente não acontece,
porque o imprevisível prevalece”.
Sem dúvida. E embora não seja
meu hábito fazer sugestões, deixo esta: as pessoas devem estar abertas ao
inesperado, ao imprevisível. Se olharmos para o presente, constatamos que a
guerra, a violência, o fascismo são inevitáveis. Mas o inevitável nunca
acontece porque existe o imprevisível. Ora, nós não sabemos o quão imprevisível
as coisas podem ser, mas podemos estar receptivos ao imprevisível. Devemos
estar atentos e procurar continuamente uma ‘linha de fuga’ para o inevitável,
sendo que isso requer muito empenho, uma enorme energia e atividade.
*Leia
a entrevista na íntegra no O Jornal Económico. (acessado em 22.11.2018)
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