Caio F. Abreu viveu pouco e intensamente. Ao deixar este mundo aos 48
anos, o escritor gaúcho que se tornou conhecido com o livro “Morangos Mofados”,
passara pelo existencialismo, pelo movimento beatnik, Woodstook, geração
hippie, golpe militar, desilusão contemporânea e pelo fantasma da Aids, até
encerrar sua existência no jardim, fazendo aquilo de que mais gostava: cuidar
das plantas.
“Nos últimos tempos, quando não conseguia mais escrever, ele ia para o
jardim cuidar das rosas. Ia cuidar da vida: tirar da terra a vida – e o Caio
morrendo. Fazer desabrochar a flor – e o Caio morrendo. Num planeta enfermo
como o nosso, num país, numa sociedade onde impera a boçalidade, a volúpia
materialista, foi magnífico contar com o Caio.”
– Lygia Fagundes Telles, em homenagem ao amigo Caio F. Abreu (quando ele
partiu).
Leia o conto “A
morte dos girassóis”
Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando,
pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás,
quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os
brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas
cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido.
Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira.” Eu disse
ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está
vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou
ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no
dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já
faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é
ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”
Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.
Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o
jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores
simples, fáceis, até um pouco brutas.
Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando
mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de
meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.
Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada.
Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada,
muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei
com o pintor: “Mas o senhor não sabe que
as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido
quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava,
que é sempre o que se deve fazer.
Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca.
O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse
a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação
esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do
que um girassol aberto.
Caio F. Abreu – foto: Adriana
Franciosi
Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem
dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa
espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá
estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da
espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia
quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã
estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e
coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente
Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a
flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como
endireitá-lo.
Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o
próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente
para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro. Um com o talo
torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três
dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre
as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a
ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona
fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaleia, vai saber que
tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.
Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que
comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve
decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas
acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.
(Zero
Hora, 18.3.1995)
Publicado
no livro “Pequenas epifanias”. Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 2014.
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