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terça-feira, 10 de abril de 2018

Crônica: Catadores de tralhas e sonhos


In: O Estado de S. Paulo. Caderno 2, 27/3/2015.
Disponível em cultura.estadao.com.br/noticias/geral,catadores-de-tralhas-e-sonhos-imp-,1658853.

São centenas, talvez milhares os catadores de papel nessa megalópole. Puxam ou empurram carroças e catam objetos no lixo ou nas calçadas. É um museu de tralhas variadas: restos de materiais para  construção, papel, caixas de papelão, embalagens de inúmeros produtos, e até mesmo objetos decorativos, alguns belos e antigos, desprezados por algum herdeiro.

Há carroças exóticas, pintadas com desenhos de figuras pop, seres mitológicos, nuvens, pássaros e vampiros. Em Santana, vi uma carroça que lembrava um jinriquixá, só que maior do que o veículo asiático.

Era puxada por um velho e transportava uma avó e seu netinho, sentados em pilhas de papel. Perguntei ao carroceiro quanto ele cobrava pelo transporte de passageiros.

“Depende... Pra perto daqui, cinco reais. Pra fora do bairro, cobro 15 ou 12, depende do passageiro e do dia. Não gasto gasolina, nem nada, é só força mesmo, amigo.”

E haja força, leitor. Mas esse meio de transporte é raro na metrópole. Quase todas as carroças só carregam quinquilharias, uma e outra exibem aforismos, poemas, ditados. Vi carroças líricas, políticas, filosóficas, cômicas, moralistas, anarquistas. Numa delas se lia: “A verdade é uma desordem... Alguém tem dúvida?”.

Noutra, pintada de verde e amarelo: “Aqui só carrego bagunça, mas sou homem de paz”. A que mais me chamou atenção foi uma carroça linda, com uma pintura geométrica que lembra um quadro de Mondrian. Na lateral, estava escrito: “Carrego todo tipo de tralha, e carrego um sonho dentro de mim”.

Era uma carroça mineira, pois ostentava uma bandeira de Minas. Conversei um pouco com esse carroceiro de São João del-Rei. Acho que perdeu a desconfiança nas ruas paulistanas, pois não se esquivou de mim, e ainda me mostrou uma luminária de aço, fabricada em Manchester (1946). Esse objeto havia sido abandonado numa caixa de papelão e recolhido pelo caprichoso carroceiro de Minas.

Especulei a origem da luminária e me indaguei: quantas páginas esse belo objeto tinha iluminado em noites do pós-guerra?

Depois o carroceiro abriu uma caixa e me mostrou livros velhos, em língua alemã. Disse que tinha encontrado tudo numa mesma calçada do Jardim Europa, e agora ia vender os livros para um sebo. Ele me olhou e acrescentou:

“Ando solto, não gosto de ser botado preso dentro de curral. A gente encontra cada coisa por aí... Só não encontra o que a gente sonha”.

Comprei a luminária desse filósofo ambulante, mas não me interessei pelos livros, que talvez sejam relidos por algum germanófilo de São Paulo.

Sei que não é fácil encontrar um sonho nas ruas; mas encontrei carroceiros simpáticos e um assunto para escrever esta crônica.

Sobre o autor:

Milton Hatoum (Manaus, AM, 1952). Romancista, contista, professor e tradutor. Viveu a infância e parte da juventude em Manaus. Mudou-se para Brasília e lá permaneceu até 1970, quando veio morar em São Paulo, onde cursou arquitetura na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Foi professor universitário de história da arquitetura e de literatura francesa. Ministrou aulas de literatura brasileira, como professor visitante, na Universidade da Califórnia (Berkeley), onde também foi escritor residente.  Estreou na ficção com Relato de um certo Oriente, publicado em 1989 e vencedor do prêmio Jabuti de melhor romance do ano. O segundo romance, Dois irmãos, de 2000, foi traduzido para oito idiomas e ganhou outro Jabuti. Com Cinzas do Norte, de 2005, Hatoum recebeu os prêmios Jabuti, Bravo, APCA e Portugal Telecom. Em 2008, publicou sua primeira novela, Órfãos do Eldorado, e em 2013 suas crônicas foram reunidas em Um solitário à espreita. Escreveu artigos e ensaios acerca de autores brasileiros e latino-americanos, em periódicos do Brasil e da Europa. Atualmente é colunista do jornal O Estado de S. Paulo e do site Terra Magazine.

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