Hoje
o indivíduo se explora e acredita que isso é realização – diz o filósofo
sul-coreano Byung-Chul Han
“A
sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade
de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos de
obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si
mesmos”.
–
Byung-Chul Han, em “Sociedade do Cansaço”. [tradução Enio Paulo Gianchini]. São
Paulo: Editora Vozes, 2015.
O
filósofo sul-coreano, um destacado dissecador da sociedade do hiperconsumismo,
fala sobre suas críticas ao “inferno do igual”
– por
Carles Geli (Barcelona, El País*)
*Originalmente publicado em El País, em 7.2.2018
As Torres Gêmeas, edifícios idênticos que se refletem mutuamente, um
sistema fechado em si mesmo, impondo o igual e excluindo o diferente e que
foram alvo de um ataque que abriu um buraco no sistema global do igual. Ou as
pessoas praticando binge watching
(maratonas de séries), visualizando continuamente só aquilo de que gostam: mais
uma vez, multiplicando o igual, nunca o diferente ou o outro… São duas das
poderosas imagens utilizadas pelo filósofo sul coreano Byung-Chul Han (Seul,
1959), um dos mais reconhecidos dissecadores dos males que acometem a sociedade
hiperconsumista e neoliberal depois da queda do Muro de Berlim. Livros como A
Sociedade do Cansaço, Psicopolítica e A Expulsão do Diferente reúnem seu denso
discurso intelectual, que ele desenvolve sempre em rede: conecta tudo, como faz
com suas mãos muito abertas, de dedos longos que se juntam enquanto ajeita um
curto rabo de cavalo.
“No 1984 orwelliano a
sociedade era consciente de que estava sendo dominada; hoje não temos nem essa
consciência de dominação”, alertou em sua palestra no Centro de Cultura
Contemporânea de Barcelona (CCCB), na Espanha, onde o professor formado e
radicado na Alemanha falou sobre a expulsão da diferença. E expôs sua
particular visão de mundo, construída a partir da tese de que os indivíduos
hoje se autoexploram e têm pavor do outro, do diferente. Vivendo, assim, “no deserto, ou no inferno, do igual”.
Autenticidade. Para Han, as
pessoas se vendem como autênticas porque “todos
querem ser diferentes uns dos outros”, o que força a “produzir a si mesmo”. E é impossível ser verdadeiramente diferente
hoje porque “nessa vontade de ser diferente prossegue o igual”. Resultado:
o sistema só permite que existam “diferenças
comercializáveis”.
Autoexploração. Na opinião do
filósofo, passou-se do “dever fazer” para o “poder fazer”. “Vive-se com a angústia de não estar fazendo tudo o que poderia ser
feito”, e se você não é um vencedor, a culpa é sua. “Hoje a pessoa explora a si mesma achando que está se realizando; é a
lógica traiçoeira do neoliberalismo que culmina na síndrome de burnout”. E
a consequência: “Não há mais contra quem
direcionar a revolução, a repressão não vem mais dos outros”. É “a alienação de si mesmo”, que no físico
se traduz em anorexias ou em compulsão alimentar ou no consumo exagerado de
produtos ou entretenimento.
‘Big data’. “Os macrodados tornam supérfluo o pensamento
porque se tudo é quantificável, tudo é igual… Estamos em pleno dataísmo: o
homem não é mais soberano de si mesmo, mas resultado de uma operação
algorítmica que o domina sem que ele perceba; vemos isso na China com a
concessão de vistos segundo os dados geridos pelo Estado ou na técnica do
reconhecimento facial”. A revolta implicaria em deixar de compartilhar
dados ou sair das redes sociais? “Não podemos
nos recusar a fornecê-los: uma serra também pode cortar cabeças… É preciso
ajustar o sistema: o ebook foi feito para que eu o leia, não para que eu seja
lido através de algoritmos… Ou será que o algoritmo agora fará o homem? Nos
Estados Unidos vimos a influência do Facebook nas eleições… Precisamos de uma
carta digital que recupere a dignidade humana e pensar em uma renda básica para
as profissões que serão devoradas pelas novas tecnologias”.
Comunicação. “Sem a presença do outro, a comunicação
degenera em um intercâmbio de informação: as relações são substituídas pelas
conexões, e assim só se conecta com o igual; a comunicação digital é somente
visual, perdemos todos os sentidos; vivemos uma fase em que a comunicação está
debilitada como nunca: a comunicação global e dos likes só tolera os mais
iguais; o igual não dói!”.
Jardim. “Eu sou diferente; estou cercado de aparelhos
analógicos: tive dois pianos de 400 quilos e por três anos cultivei um jardim
secreto que me deu contato com a realidade: cores, aromas, sensações…
Permitiu-me perceber a alteridade da terra: a terra tinha peso, fazia tudo com
as mãos; o digital não pesa, não tem cheiro, não opõe resistência, você passa
um dedo e pronto… É a abolição da realidade; meu próximo livro será esse:
Elogio da Terra. O Jardim Secreto. A terra é mais do que dígitos e números”.
Narcisismo. Han afirma que “ser observado hoje é um aspecto central do
ser no mundo”. O problema reside no fato de que “o narcisista é cego na hora de ver o outro” e, sem esse outro, “não se pode produzir o sentimento de
autoestima”. O narcisismo teria chegado também àquela que deveria ser uma
panaceia, a arte: “Degenerou em
narcisismo, está ao serviço do consumo, pagam-se quantias injustificadas por
ela, já é vítima do sistema; se fosse alheia ao sistema, seria uma narrativa
nova, mas não é”.
Os outros. Esta é a chave
para suas reflexões mais recentes. “Quanto
mais iguais são as pessoas, mais aumenta a produção; essa é a lógica atual; o
capital precisa que todos sejamos iguais, até mesmo os turistas; o
neoliberalismo não funcionaria se as pessoas fossem diferentes”. Por isso
propõe “retornar ao animal original, que
não consome nem se comunica de forma desenfreada; não tenho soluções concretas,
mas talvez o sistema acabe desmoronando por si mesmo… Em todo caso, vivemos uma
época de conformismo radical: a universidade tem clientes e só cria
trabalhadores, não forma espiritualmente; o mundo está no limite de sua
capacidade; talvez assim chegue a um curto-circuito e recuperemos aquele animal
original”.
Refugiados. Han é muito claro:
com o atual sistema neoliberal “não se
sente preocupação, medo ou aversão pelos refugiados, na verdade são vistos como
um peso, com ressentimento ou inveja”; a prova é que logo o mundo ocidental
vai veranear em seus países.
Tempo. É preciso
revolucionar o uso do tempo, afirma o filósofo, professor em Berlim. “A aceleração atual diminui a capacidade de
permanecer: precisamos de um tempo próprio que o sistema produtivo não nos
deixa ter; necessitamos de um tempo livre, que significa ficar parado, sem nada
produtivo a fazer, mas que não deve ser confundido com um tempo de recuperação
para continuar trabalhando; o tempo trabalhado é tempo perdido, não é um tempo
para nós”.
O “MONSTRO” DA UNIÃO EUROPEIA
“Estamos na Rede, mas não
escutamos o outro, só fazemos barulho”, diz Byung-Chul Han, que
viaja o necessário, mas não faz turismo “para
não participar do fluxo de mercadorias e pessoas”. Também defende uma
política nova. E a relaciona com a Catalunha, tema cuja tensão atenua
brincando: “Se Puigdemont prometer voltar
ao animal original, eu me torno separatista”.
Já no aspecto político, enquadra o assunto no contexto da União
Europeia: “A UE não foi uma união de
sentimentos, mas sim comercial; é um monstro burocrático fora de toda lógica
democrática; funciona por decretos…; nesta globalização abstrata acontece um
duelo entre o não lugar e a necessidade de ser de um lugar concreto; o especial
é incômodo, gera desassossego e arrebenta o regional. Hegel dizia que a verdade
é a reconciliação entre o geral e o particular e isso, hoje, é mais difícil…”.
Mas recorre à sua revolução do tempo: “O
casamento faz parte da recuperação do tempo livre: vamos ver se haverá um
casamento entre a Catalunha e Espanha, e uma reconciliação”.
BYUNG-CHUL HAN: O FILÓSOFO DA
SOCIEDADE MODERNA
Um dos mais reverenciados e inovadores filósofos da atualidade,
Byung-Chul Han nasceu em 1959, na Coreia do Sul, mas mudou-se de armas e
bagagens para a Alemanha, na década de 1980, familiarizando-se por lá com as
dissertações de pensadores como Martin Heidegger. É autor de mais de uma dezena
de ensaios que examinam algumas das principais ameaças do indivíduo na
sociedade moderna, entre as quais a escassez de tempo para a reflexão e o vazio
dos relacionamentos na era digital.
“A sociedade do trabalho e a
sociedade do desempenho não são sociedades livres. Elas geram novas coerções. A
dialética do senhor e escravo está, não em última instância, para aquela
sociedade na qual cada um é livre e que seria capaz também de ter tempo livre
para o lazer. Leva, ao contrário, a uma sociedade do trabalho, na qual o
próprio senhor se transformou num escravo do trabalho. Nessa sociedade
coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade
desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima
e agressor. Assim, acabamos explorando a nós mesmos. Com isso, a exploração é
possível mesmo sem senhorio”
–
Byung-Chul Han, em “Sociedade do Cansaço”. [tradução Enio Paulo Gianchini]. São
Paulo: Editora Vozes, 2015.
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