Há uns
15 anos, aproveitando a proximidade do Dia dos Mortos, Martha Medeiros, através
do texto 'A morte devagar', puxa as orelhas (não os pés) daqueles que apenas
atravessam o dia respirando e aos poucos morrem em vida.
"Morre
lentamente quem não troca de ideias, não troca de discurso, evita as próprias
contradições.
Morre
lentamente quem vira escravo do hábito, repetindo todos os dias o mesmo trajeto
e as mesmas compras no supermercado. Quem não troca de marca, não arrisca
vestir uma cor nova, não dá papo para quem não conhece.
Morre
lentamente quem faz da televisão o seu guru e seu parceiro diário. Muitos não
podem comprar um livro ou uma entrada de cinema, mas muitos podem, e ainda
assim alienam-se diante de um tubo de imagens que traz informação e entretenimento,
mas que não deveria, mesmo com apenas 14 polegadas, ocupar tanto espaço em uma
vida.
Morre
lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o preto no branco e os pingos
nos is a um turbilhão de emoções indomáveis, justamente as que resgatam brilho nos
olhos, sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.
Morre
lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não
arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na
vida, fugir dos conselhos sensatos.
MORRE
LENTAMENTE QUEM NÃO VIAJA QUEM NÃO LÊ QUEM NÃO OUVE MÚSICA, QUEM NÃO ACHA GRAÇA
DE SI MESMO.
Morre
lentamente quem destrói seu amor-próprio. Pode ser depressão, que é doença
séria e requer ajuda profissional. Então fenece a cada dia quem não se deixa
ajudar.
Morre
lentamente quem não trabalha e quem não estuda, e na maioria das vezes isso não
é opção e, sim, destino: então um governo omisso pode matar lentamente uma boa
parcela da população.
Morre
lentamente quem passa os dias queixando-se da má sorte ou da chuva incessante,
desistindo de um projeto antes de iniciá-lo, não perguntando sobre um assunto
que desconhece e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.
Morre
muita gente lentamente, e esta é a morte mais ingrata e traiçoeira, pois quando
ela se aproxima de verdade, aí já estamos muito destreinados para percorrer o
pouco tempo restante. Que amanhã, portanto, demore muito para ser o nosso dia.
Já que não podemos evitar um final repentino, que ao menos evitemos a morte em
suaves prestações, lembrando sempre que estar vivo exige um esforço bem maior
do que simplesmente respirar".
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